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A oposição {comer / vestir}

5. F IAR , TECER E PROCRIAR

Dir-se-ia, pois, que a preferência da carochinha pelos enfeites sintetiza um conjunto de atitudes prévias do casamento, representadas na preparação do bragal, que inclui não só o vestido de noiva e seus adornos mas também tudo aquilo que tem a ver com a vida do casal, designadamente a roupa de cama. Todas as actividades que têm a ver com isso – fiar, urdir, tecer, fazer vestes e vesti-las – é sintetizado neste estudo pela fórmula {vestir}. Por outro lado, nos enfeites da carochinha estariam simbolizados todos os adornos de que a noiva é uma espécie de mostruário de excelência; e os enfeites seriam como que o emblema das suas qualidades de boa dona de casa.

Tudo o que está relacionado com a preparação para o casamento é abundantemente tratado pela literatura popular, como se verá um pouco mais adiante. Para já, faremos uma breve introdução à questão estabelecendo a relação entre a história da carochinha e alguns textos de várias tradições, sobretudo grega (antiga e moderna) no que respeita ao vestir e ao casar, no pressuposto de que estas tradições tem alguma coisa em comum com os nossos conceitos e símbolos, já que a cultura portuguesa deriva, em parte, da grega,321

a qual criou

321

Existem entre estas culturas relações surpreendentes. Haja em vista a persistência dos símbolos ligados à terra que, sendo centrais, segundo a interpretação de Lévi-Strauss, no mito de Édipo, estiveram presentes na elaboração de alguns ritos ligados ao noivado numa aldeia da Beira Alta, como defendemos no estudo «O casamento exolocal numa aldeia da Beira Alta», Análise Social, 19 (77-78-79), pp. 645-65. Por outro lado, Estrabão refere as hecatombes que os lusitanos faziam segundo o rito grego: «Quin et ritu Greco heca- tombas cujusque generis instituunt.» (cit. in Leite de VASCONCELLOS, Tradições populares de Portugal, p. 165). E

um espaço semântico amplo onde todas as culturas europeias, de uma forma ou outra, foram buscar elementos. Em razão disso poderemos estender a nossa pesquisa a outras tradições, designadamente a polaca, onde encontramos esquemas simbólicos relativos aos binómios fiar-vestir e casamento-procriação que são semelhantes aos portugueses. A utili- zação, feita anteriormente com sucesso, de pormenores desta área cultural, leva a admitir a utilidade de colacionar a nossa tradição com outras que à partida temos de classificar como distantes.

A relação entre os conceitos de fiar, tecer e procriar aparece claramente em alguns textos da Ilíada e da Odisseia. Logo no início da primeira destas obras fundamentais para o conhecimento do pensamento pré-filosófico grego encontra-se a ideia de que o casamento, a cama e a relação sexual estão intimamente ligadas, e que a função da mulher é a prepa- ração do bragal. Agamemnon diz a Crises, depois de lhe roubar a filha, Criseida, estas «palavras desabridas»: «Não libertarei a tua filha. Antes disso terá atingido a velhice / em minha casa em Argos, longe da sua pátria / enquanto se afadiga ao tear e dorme na minha cama.»322

Por outro lado, a bela mulher de Menelau é descrita como exímia bordadeira, favorecida por Íris, já que esta, chegando «como mensageira junto de Helena de alvos braços», a encontrou «no palácio tecendo uma grande tapeçaria, / de dobra dupla, purpú- rea, na qual ela bordava muitas contendas / de Troianos domadores de cavalos e de Aqueus vestidos de Bronze».323

Heitor, por seu lado, antes do combate decisivo com Aqui- les, temeroso de que sua esposa Andrómaca fosse um dia enviada para Argos e posta «ao tear às ordens de outra mulher», diz-lhe: «volta para os teus aposentos e presta atenção aos teus lavores, ao tear e à roca».324

E nem a própria Vénus arranja melhor disfarce do que o de uma «anciã muito idosa, cardadora de lã».325

Na Odisseia, aparece como elemento determinante de uma parte da acção a célebre teia de Penélope. Conta ela a Ulisses, recém-chegado da sua viagem de dez anos após a destruição de Tróia, e antes de o reconhecer, que um deus lhe «pôs no espírito a ideia d[e fazer um]a veste» para mortalha de seu sogro Laertes. Por isso mandou colocar «nos aposentos um grande tear para tecer, amplo mas de teia fina». E continua o texto: «Daí por diante trabalhava de dia ao grande tear, / mas desfazia de noite a trama à luz das tochas», dissimulando assim o seu intento. Conhecido o seu ardil pelas servas, «cadelas tontas», teve «de concluir a veste, embora não quisesse, à força. / Agora já não consigo fugir ao casa- mento».326

Aliás, mesmo enquanto Telémaco come, sua mãe, sentada «junto à entrada da sala, / recostada numa cadeira, está fiando delicados fios de lã».327

E, por duas ocasiões, este

sabe-se que na região de Pedrógão Grande existe um rio afluente do Zêzere, Ribeira Fria, que antigamente se chamava Ribeira Álgida. Da mesma maneira, uma das localidades da zona ainda hoje mantém o nome de Mega. Estes factos fazem supor a presença antiga na região de soldados ou colonizadores gregos, possivel- mente da «pequena Grécia».

322

HOMERO, Ilíada, I, 29-31 (trad. de Frederico Lourenço, Lisboa, Cotovia, 2005, p. 30).

323

ID., op. cit., III, 120-127 (p. 77). Incidentalmente se nota que a descrição deste manto faz lembrar o tecido referido em T0.2, exceptuando a diafania, não suposta na tapeçaria de Helena.

324

ID., op. cit., VI, 457 e 490-1 (pp. 145-6).

325

ID., op. cit., III, 386 (p. 85).

326

ID., Odisseia, XIX, 138-157 (trad. de Frederico Lourenço, Lisboa, Cotovia, 2004, 5ª ed., p. 311). Cf. também Ibid., II, 104-109 (p. 41).

327

lhe recomenda que preste atenção «aos lavores, ao tear e à roca».328

Assim, a teia dá à epopeia homérica uma ressonância doméstica indiscutível e difícil de ignorar.

Mas não é apenas a «sensata Penélope» que tem como apanágio fiar e tecer. Também deusas, ninfas, rainhas e servas aparecem nos hexâmetros do aedo a urdir teias e a fazer túnicas e mantos. E tão frequentes são estas referências que nenhuma personagem feminina parece ser alheia a estas tarefas.329

Assim Ártemis é chamada a da «roca dourada»; Atena faz as próprias vestes macias, bordadas com as suas mãos.330

Mas também tece «a veste ambrosial» de Hera, «com alta perícia, urdindo muitos bordados»;331

Circe canta «com voz melodiosa enquanto se dedica à trama imperecível da sua tecelagem, / subtil graciosa e brilhante, como são as tapeçarias das deusas»;332

Calipso, «com lançadeira dourada trabalhava ao seu tear»;333

e as Náiades, habitam numa gruta no porto de Fórcis, em Ítaca, onde há «cumpridos teares de pedra onde [...] / tecem tramas de púrpura».334

Por seu lado, Helena tem, tal como Ártemis, uma «roca dourada», oferecida por Alcandre, esposa de Pólibo, «que habitava a egípcia Tebas» e um «cesto provido de rodas» que enchera «de fio bem fiado», no palácio de seu marido, após o retorno de Tróia.335

Ela própria fez «as vestes de trabalho matizado», variegadas e amplas, refulgentes «como um astro, por debaixo das outras vestes», que ofertou a Telémaco para a sua noiva vestir no dia do casamento.336

E Nausícaa «das lindas vestes», mal desperta do sonho que a leva a Ulisses, vai encontrar ao romper da Aurora a mãe «sentada à lareira em companhia das servas fiando lã purpúrea como o mar».337

E não se esqueça que, das cinquenta servas de Alcínoo, pai de Nausícaa, é dito que, umas «moem o fruto dos cereais nos moinhos; / outras fabricam tecidos aos teares e sentam-se a fiar lã.»338

Da mesma maneira, às servas de Penélope recomenda Ulisses: «Fiai lã com ela, fazendo girar o fuso».339

A roca e o fuso como distintivo da mulher laboriosa é, de resto, continuado na civilização romana onde, segundo Plínio, se entregava «à nubente no dia do casamento, roca e fuso para indicar os seus deveres laboriosos [...] em comemoração de Tanaquil, mulher do rei Servio Túlio, venerada pelo labor da sua roca, que mereceu ser guardada como relíquia no templo de Marco Ancio, para exemplo das mulheres.»340

Estes testemunhos antigos não parecem diferentes do que se pode deduzir de um texto um pouco enigmático da tradição oral grega, do qual se retém em seguida a parte rela- cionada com o nosso argumento.

328

ID., op. cit., I, 357 (p. 35) e XXI, 351 (p. 348).

329

Uma das poucas referências a outras actividades femininas é a de pastora:HOMERO, Ilíada, XI, 245 (p. 225).

330

ID., Ilíada, V, 734-5 (p. 116); VIII, 385-6 (p. 174), IX, 390 (p. 191).

331

ID., op. cit., XIV, 178-9 (p. 287).

332

ID., Odisseia., X, 222-3 (p. 168).

333

ID., op. cit., V, 62 (p. 92).

334

ID., op. cit., XIII, 106-8 (p. 216).

335

ID., op. cit., IV, 131-135 (pp. 69-70).

336

ID., op. cit., XV, 104-8, 126-7 (p. 245)

337

ID., op. cit., VI, 52 (p. 107).

338

ID., op. cit., VII, 103-106 (p. 119).

339

ID., op. cit., XVIII, 315 (p. 302).

340

T3.7: A bicha das sete cabeças

Um rei e uma rainha estavam velhos e não tinham filhos. «Um dia a rainha estava sentada à janela a chorar amargamente» quando «de repente aparece diante dela uma velhinha com uma maçã na mão que lhe diz: ‘Porque choras, minha rainha, que é que te faz infeliz?’», ao que ela respondeu que era infeliz porque não tinha filhos. A velhinha disse-lhe: sou «uma irmã do Convento das fiandeiras341

e a minha mãe, quando morreu, deixou-me esta maçã. Quem a comer terá um filho.» A rainha comprou-lha, aparou-a e comeu-a, deitando a casca pela janela, a qual foi ingerida por uma mula. A rainha teve um filho e a mula um potro macho. Aconselhado pelo macho, o príncipe, aos dezanove anos, decidiu matar a bicha das sete cabeças que dizimava a juventude do seu reino, para o que se dirigiu a uma «montanha esventrada por no seu lado haver uma grande caverna subterrânea. Na caverna estava sentada uma mulher a fiar. Este era o claustro das irmãs, e a velha era a abadessa. Elas passavam o tempo a fiar e essa é a razão porque o convento tem esse nome [Convento das Fiandeiras]. A toda a volta da caverna, havia camas cortadas na rocha, nas quais as monjas dormiam; e no meio, havia uma luz a arder. Era dever das monjas velar em turnos para que a luz nunca se apagasse. E se alguma a deixasse apagar, as outras a matavam.»342

Seria fácil mostrar que a situação inicial do texto – o nascimento de filhos de pais até então estéreis – define um conjunto muito vasto de contos com extrema importância para a detecção das imagens dominantes sobre a natureza do homem e a sua semelhança com outros seres do universo. Não vem, porém, ao caso desenvolver o tema e, por isso, centramos a atenção nas circunstâncias em que é superada a impossibilidade de geração por parte da rainha, designadamente no que se refere à personagem adjutória e à instituição de que faz parte.

O texto diz explicitamente que a velhinha favorável, dadora de bens, faz parte de uma comunidade de monjas que vivem numa caverna debaixo da terra, inteiramente dedi- cadas à tarefa de fiar. Mas estas fiandeiras são igualmente donas de maçãs mágicas capazes de originar a vida. São, pois, simultaneamente senhoras do comer e do vestir, integrando em si estas duas funções. Ora esta junção nos mesmos actores de vários referentes simbólicos, corresponde à situação mítica original em que tudo é íntegro e pleno. Só quando o uno começa a manifestar-se é que se lhe revelam as diferenças e os contrastes, antes totalmente resolvidos na síntese dos opostos que o todo e o uno é.

Na situação reportada no T3.7, encontra-se, pois, expressa uma situação original em

que as personagens transcendentes concentram tudo em si mesmas, delas emergindo, por fraccionamento, as funções antagónicas que enformam os textos. Assim, a oposição {comer / vestir} não define categorias de natureza mítica mas tipos de comportamento

341

A tradução inglesa, aqui utilizada, diz: «a nun from the Spinning Convent», expressão que, segundo uma nota do editor, traduziria «Convent Gnothi». O grego significaria, segundo parece, «Convento de irmãs». O nome «Spinning Convent», dado por Andrew Lang corresponde ao que o texto diz na sequência. Mais correcto seria, possivelmente, dizer: «Convento das irmãs fiandeiras». Mas os elementos fornecidos por Lang não habilitam a fazer essa substituição. Seja como for, o sentido do texto citado parece claro.

342

associados à passagem do ontológico ao psicossociológico característica do depau- peramento simbólico.343

E não deixa de ser significativo que a identidade {comer = vestir} a que chegamos acima por via analítica, a partir da tradição portuguesa, tenha, afinal, um paralelo mítico na cultura grega.

Um outro aspecto a pôr em evidência é que a gruta de Fórcis, habitada pelas Náiades do poema homérico, referida mais acima, se assemelha à que era habitada pelas monjas: em ambas se fia e tece e em ambas se guardam alimentos doces. Com efeito, se há maçãs taumatúrgicas na gruta das monjas, também na de Fórcis as abelhas põem o seu mel em ânforas de pedra colocadas ao lado dos teares. Num pormenor, porém se diferenciam estes dois mitos: enquanto que as monjas guardam o fogo, na gruta das Náiades jorram «fontes de água inesgotável»,344

o que parecendo opor os dois textos, os torna complementares, já que cada um explicita um dos princípios que simbolizam a fecundidade. Completando, na verdade o T3.7 com o das Náiades, vemos que nestas grutas se juntam os dois princípios,

fogo e água, masculino e feminino. Assim, as monjas são dadoras e fiandeiras da vida e guardiãs do fogo, nisso se diferenciando da Náiades, senhoras das águas.

Tudo isto faz supor que é função dos lugares subterrâneos usados pelos seres divinos fazer a união do comer e vestir essenciais, no sentido de que neles está concentrado e se origina todo o ser. Esta concentração estaria significada no T3.7 pela união e personificação

das funções nas monjas que detêm o poder de originar a vida (significada na maçã) e de a manter (simbolizada no fio que incessantemente fiam). A guarda do fogo é, de resto, tão fundamental que quem de entre as monjas o deixasse apagar, morreria às mãos de suas companheiras, numa atitude impiedosa e cruel, só compreensível se atendermos ao seu objectivo: mostrar que a manutenção do lume não pode ser descurada, por ser o elemento que fecunda e dá vida. Infecundas por vontade própria, estas monjas são, pois, detentoras de uma fecundidade tão abundante que não precisam de guardar nenhuma para si mesmas. E fazem dela dom generoso e gratuito; e, ao dá-la, operam a superação das não voluntárias infecundidades alheias. Inuptas e velhas,345

decididas a não procriar, reúnem em si três símbolos que significam a criação e manutenção da vida – a maçã, o fio e o fogo. São por isso suas verdadeiras guardiãs e senhoras.

Este desenvolvimento a propósito da gruta trás à memória o que foi dito a propósito dos T2.12 e T2.13, onde os actores principais, seres ctónicos, eram senhores e dadores de

riquezas. Juntando, pois, os significados então encontrados com os aqui deduzidos, pode-se dizer que a vida e as riquezas são apanágio dos seres ctónicos. Entre eles há, porém, uma diferença essencial: os dadores de riquezas, forjam o caos inorgânico em pedaços de ouro; as monjas dadoras de fecundidade – um dos valores fundamentais da sociedade tradicional – fazem com que a vida seja continuamente fiada a partir do fogo da matriz onde a maçã é

343

A presença destes esquemas simbólicos em textos diferentes não quer dizer que o conto grego tenha uma relação directa com o português, mas tão-só que os mesmos processos estão presentes num e noutro.

344

ID., Odisseia, XIII, 110 (p. 216).

345

De notar que, tanto na tradição ortodoxa como na latina, as freiras são celibatárias; e que todas as que têm intervenção na acção são entradas em idade.

incorporada como se de um óvulo se tratasse. De um lado está a produção, uma vez por todas, das coisas inanimadas; do outro a produção contínua do que tem vida e devém.

Mas mesmo que algumas destas inferências pareçam rebuscadas por juntarem símbo- los de diversas proveniências, não há dúvida de que os elementos simbólicos essenciais do conto da bicha das sete cabeças – fogo, comer e vestir –, também estão presentes na história da carochinha, onde definem um contexto de fecundidade, neste caso interrompida. De facto, as questões de fundo desenvolvidas nestes dois contos são bastante diferentes. Na história da carochinha trata-se de uma infecundidade «relacional»: as personagens só entre elas são infecundas, mas não em si mesmas. No T3.7, pelo contrário,

no que respeita à rainha e ao rei, trata-se de uma infecundidade «funcional». E no que se refere à mula a infecundidade é «ontológica», sendo como é incapaz de gerar por razões biológicas. Nestas três espécies estariam tipificadas todas as infecundidades possíveis.

O mais interessante desta conceptualização é que, se o primeiro tipo de infecun- didade não tem solução (seria monstruoso um híbrido da carochinha com um rato), a filosofia popular aceita que, por intervenção transcendental, possa ser superada tanto a infecundidade funcional como a ontológica. Mas a solução encontrada para cada uma delas tem significados diferentes. No que se refere à funcional, o T3.7 apenas consagra miti-

camente os muitos casos de seres destinados a grandes façanhas por nascerem de mães estéreis (por decisão sua – virgens – ou por imposição da natureza – velhas), que a história e a lenda registam. No que toca, porém, à infecundidade ontológica, representada na mula, o texto apenas resolve a perplexidade com que o pensamento popular se confronta – que a mula nascida de dois seres semelhantes não possa reproduzir-se, quando a infecundidade da mulher, aparentemente idêntica, encontra solução, embora excepcional. E resolve-a, equiparando-as. Assim a mula, sendo maninha, partilha não só a maçã mas também a sorte da mulher dando à luz. Nisto se vê que o simbólico, ao equiparar situações em alguns aspectos semelhantes, obriga a aplicar-lhes a mesma solução. O mito resolve, pois, de forma idêntica o possível e o impossível.

Comparando, por outro lado, o T3.7 com os exemplos clássicos, antes aduzidos, onde

as heroínas criavam e controlavam, elas mesmas, as condições de felicidade no casamento através da tecedura, verifica-se que a vida e a fecundidade humana e animal são dádivas feitas pelos seres míticos incarnados em monjas, senhoras da fecundidade. Ou seja, para ser feliz, é necessário que a mulher seja boa tecedeira; mas a vida é fiada por mãos não- humanas. Assim, a relação entre fiar, tecer e casamento, existente nos textos clássicos, mantém-se inteira na texto moderno da tradição grega.

Esta associação entre fecundidade, fogo, procriação e fiação obriga, de forma a mantermo-nos no mesmo contexto cultural, a estabelecer relações entre as monjas do ‘Convento das fiandeiras’ com outras figuras tutelares da mitologia greco-romana, que fun- cionariam como reminiscências míticas ou incarnações actualizadas de personagens relacio- nadas com a manutenção do fogo e com a fiação da vida. As primeiras são as Vestais romanas, que tinham como função manter aceso o fogo sagrado. As segundas são as Parcas helénicas – Clotho, Lachesis e Atropus –, nascidas de Témis, que fiavam, mediam e cortavam, respectivamente, o fio da vida, executando as decisões do Destino, filho do Caos

e da Noite. Era ele que tinha nas mãos a urna fatal com a sorte dos mortais. Ora as Parcas habitavam o subterrâneo Hades, semelhante à caverna onde viviam as monjas fiandeiras.

Daí o poder-se dizer que as monjas representam tanto as Vestais como as Parcas, sendo incarnações dos seres dadores da vida. E isto coloca-as num dos contextos míticos iniciais referentes à fecundidade. Neste aspecto diferenciam-se tanto das deusas fiandeiras, como de Criseida, Helena e Penélope e das muitas servas que na Odisseia ajudam as suas senhoras a fiar e a tecer, pois todas elas, mesmo as deusas, não fazem mais do que transpor para fins utilitários as funções míticas das Vestais e das Parcas que são senhoras e guardiãs da vida, no sentido de que a produzem e a controlam. E ambas estas figuras estão incar- nadas nas fiandeiras, guardiãs do fogo. De facto o nome de monjas com que aparecem no

T3.7 não passa de uma adaptação dos mitos originais ao contexto cristão em que

posteriormente foram inseridas.