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No início dos anos 1990, arquitetura, fotografia e a qualidade errática da ex- periência urbana da cidade se configuraram como elementos estruturantes nos modos de pensar e atuar de Mano, que, de certa maneira, continuam presentes até hoje. Boa parte das obras produzidas pelo artista ao longo da década se refere à construção de lugares, transpostos para a fotografia. O resultado imagético contém as evidências de uma experiência de desloca- mento pela cidade, por meio do qual Rubens apreende o espaço, decodifica-o em suas normas e vocações e reinventa estruturas perceptivas que transfor- mam o lugar em um outro,92 fazendo com que o visível se transfigure em

um sensível.

Essas fotografias se mostrarão parte da estratégia de Rubens para atuar na cidade, subverter certas estruturas de uso e poder tecidas no espaço ur- bano, e envolver seu observador na percepção do espaço ao reportá-lo ao acontecimento da ação/intervenção. Apesar de “congelarem” as ações no tempo, as imagens carregam indícios de uma duração da ação no tempo. No entanto, o autor da ação está sempre fora da cena. Tal opção tomada pelo artista deixa apenas rastros de suas intervenções na cidade, a fim de que as imagens contenham uma certa carga enigmática que incitaria o observador a desvendá-la, e no limite acionaria uma nova atitude perceptiva do sujeito diante da cidade.

Esses princípios da prática do artista foram fundamentados por ele ao longo de sua dissertação de mestrado. Rubens conceituou o conjunto de trabalhos realizados entre 1997 e 2002 a partir da noção de intervalo transiti-

vo: “uma ação que se instala nas fissuras das estruturas responsáveis pela

92 Ou, como define o artista, “um lugar dentro do lugar”. Cf. Mano, op. cit., 2006b. Cabe observar ainda que o termo lançado por Mano curiosamente alude à historicidade da poética do site specificity, sobre a qual a crítica de arte norte-americana Miwon Kwon cunhou a expressão “um lugar depois do outro”. Cf. Kwon, op. cit.

88 89 constituição dos espaços, e que, ao mesmo tempo, é capaz de suspender

momentaneamente nossos códigos perceptivos já disciplinados”.93 Tal de-

finição implica dois aspectos estruturantes nos modos dele se aproximar da cidade e de fazer arte: a escolha por espaços não óbvios na paisagem urbana, que se expressará em espaços secundários, abandonados ou subli- mados pela lógica operativa da cidade; e a formulação da experiência como obra, que envolverá a construção de novas estruturas perceptivas propostas pelo artista e um público fruidor que deverá acioná-las – ambos situados numa condição urbana nômade, em que deixam de ser simples usuários da cidade para serem sujeitos ativadores de experiências e transformado- res do próprio espaço.

Em Mano, a cidade é o motor da obra. O artista atua em resposta à cul- tura da cidade, na qual vai tecendo uma experiência. Até mesmo os vários itinerários percorridos pela região metropolitana de São Paulo são deter- minantes para a escolha dos locais pensados para suas ações. Em suas re- flexões posteriores, reunidas em 2003 na dissertação de mestrado, Rubens pondera que tais escolhas “não foram construídas a partir de um roteiro ou percurso pré-estabelecido, mas ‘orientadas’ por certos fenômenos sociais percebidos no interior do ambiente urbano”.94 Na construção teórica desen-

volvida no trabalho acadêmico, pela qual o artista explica as motivações que o levaram a conceber um conjunto de obras produzidas entre 1994 e 2002, Mano aponta a ocorrência de três fenômenos percebidos por ele no interior do espaço da cidade:

as “acelerações” da metrópole (percebidas como “potencializadoras” do estado de “desrealização” ao qual somos submetidos); a crescente “deslocalização” (criando uma demanda pelo que poderíamos chamar de “outros planos da realidade”); e os possíveis “desenraizamentos”

93 Cf. Mano, Rubens. intervalo transitivo. Dissertação (Mestrado em Poéticas Visuais) – Departamen- to de Ares Plásticas da Escola de Comunicações e Artes – ECA-USP, São Paulo, 2003.

94 Ibidem, p. 25.

vividos nas grandes cidades (responsáveis por experiências irremediá-

veis na constituição do “ser urbano”).95

Eles correspondem, grosso modo, ao tempo, ao lugar e ao corpo (em relação a ambos) na cidade, os quais se delinearam como aspectos centrais na obra do artista, diretamente associados à experiência contemporânea da cidade e à reflexão que Rubens tece sobre ela. E, como tais, auxiliaram nas leituras das obras deste capítulo, principalmente no que se refere ao que é próprio do contexto urbano da cidade de São Paulo, desde a sua metropolização.

Por fim, antes de adentrar na análise das obras, cabe reforçar que as im- pressões de Rubens sobre São Paulo, contexto a partir do qual o artista pro- duz, localizam-se em plena década da globalização. A capital paulista vinha paulatinamente ocupando uma posição de destaque no jogo global das trocas econômicas, que transformou suas configurações territoriais e urbanas, le- vando-a à sua coexistência como cidade real e cidade virtual. Quem explica de modo claro e preciso os processos de globalização verificados nas cidades contemporâneas é o arquiteto Zeuler Lima, na seguinte passagem:

A maneira mais simples de se definir a globalização talvez seja en- tendê-la como a transformação das relações entre as elites econômi- cas mundiais, com todos os desdobramentos culturais e sociais que dela resultam. A expansão das redes de informação e de comunica- ção possibilitou a aproximação entre os mercados nacionais, a inten- sificação do fluxo de pessoas e de valores financeiros e simbólicos, e a concentração de recursos e investimentos em áreas, até recentemen- te, secundárias, principalmente no hemisfério sul. Com isso, houve desde os anos 1980 – período de instalação mundial do neoliberalis- mo capitalista – um crescente esforço em desregulamentar mercados e desestabilizar as fronteiras protecionistas dos Estados Nacionais

que haviam sido o mote da modernização do segundo pós-guerra. Com o enfraquecimento das fronteiras comerciais, a formação de grandes blocos econômicos, o crescimento de fluxos migratórios e a concentração de recursos de ordem local, nacional e global em gran- des metrópoles ao redor do mundo, essas cidades passaram a exercer um novo papel. Elas ganharam maior independência dos seus Esta- dos Nacionais para negociar relações de produção, circulação e con- sumo e, principalmente, passaram a competir pelas vias de conexão com o mercado mundial. Com isso, nas últimas duas décadas, criou- -se uma rede global de megacidades hierarquicamente organizada e controlada que funciona ao mesmo tempo no novo espaço virtual das finanças e da informação e no velho espaço territorial do quotidiano

do espaço urbano.96

É nos anos 1990 que a vida urbana sofre uma aceleração potencializada pela circulação virtual de mercadorias e de dados, promovida pela tecnologia. Os lugares são cada vez mais imprecisos e impermanentes, desde shopping cen- ters e condomínios residenciais até helicópteros e redes wi-fi. De modo geral, o sujeito vai aos poucos deixando de “habitar” o espaço urbano, no sentido heideggeriano de pertencimento,97 e o anonimato produzido pelas multidões

na modernidade vai se misturando ao anonimato das redes.

A disseminação das novas tecnologias e novos modos de vida vieram a acentuar a desorganização e reorganização do território paulista, produzin- do uma fragmentação na ocupação dos espaços e tornando a leitura sobre a cidade mais complexa. À sobreposição de temporalidades distintas na cida- de contemporânea corresponde um duplo fenômeno de deslocalização-relo-

96 Lima, Zeuler. Enclaves globais em São Paulo: urbanização sem urbanismo?, Arquitextos, São Paulo, ano 5, n. 059.02, Vitruvius, abr. 2005. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/ arquitextos/05.059/471>. Acesso em 13 nov. 2017.

97 Cf. Heidegger, Martin. Construir, habitar, pensar. Ensaios e conferências. Petrópolis/rj: vozes, 2001, pp. 124-141.

calização,98 que implica o abandono de regiões, a transformação e a reuti-

lização de partes da cidade. Sobrepondo-se a essa lógica de transformação urbana acelerada, a cidade de São Paulo é marcada, desde sua origem, pelo binômio da demolição-construção, que a coloca abaixo e a reconstrói inces- santemente, num ciclo sem fim.

98 De acordo com a urbanista Marta Lagreca de Sales, “Os processos de ‘deslocalização’ implicam seu duplo (‘relocalização’), ou seja, fábricas, áreas portuárias, estações e pátios ferroviários são esvazia- dos de suas funções originárias, ao mesmo tempo que lojas viram teatros, cinemas viram templos, estações viram salas de concerto, ruas tranquilas viram eixos de tráfego intenso”. Sales, Marta M. Lagreca de. Territórios de intermediação: uma hipótese para a análise e o projeto da cidade contempo- rânea. Tese (Doutorado em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – FAU-USP, São Paulo, 2008, p. 43.

bueiro (1999)

disponha (2001)

Os percursos de Rubens Mano empreendidos pela cidade de São Paulo e que desencadearam suas primeiras ações no espaço urbano tiveram início em meados da década de 1990, quando começa a iluminar o interior de alguns buracos encontrados pelas ruas. Os vazios urbanos encontrados em suas andanças eram buracos localizados em ruas e meios-fios, os quais foram sinalizados pelo artista com o preenchimento de luz. A iluminação artifi- cial ali produzida variava entre um alaranjado ardente e um branco etéreo, em contraste com a coloração acinzentada do asfalto. Essas intervenções, realizadas entre 1997 e 1999, foram reunidas pelo artista na série intitulada

huecos [ocos].

Desta série, faz parte bueiro (1999), uma intervenção urbana na região do Bom Retiro – transposta, mais tarde, para fotografia –, na qual o artista es- colheu uma boca de lobo localizada numa das esquinas do bairro paulistano como lugar para sua ação. A primeira parte da obra (intervenção) foi realiza- da durante a exposição f:(lux)os, individual do artista concebida para a Ofici- na Cultural Oswald de Andrade, estabelecida no bairro. Inicialmente, o con- vite da instituição se restringia à realização de uma obra nas dependências do centro cultural; entretanto, no lugar disso, Mano propôs a execução de cinco diferentes intervenções, que receberam os nomes de seus sítios (calçada,

porão, telhado, bueiro e parede).99

Em bueiro, os dois buracos da boca de lobo foram preenchidos com luz branca, emitida de seis lâmpadas fluorescentes de 60W cada, instaladas no local, e assim permaneceram por três dias (fig. 5). A boca de lobo é um lugar oco por construção, cuja funcionalidade é ser vazio para dar vazão às águas pluviais em dias de chuva. Contudo, sua realidade esvaziada não é perceptí- vel ao caminharmos pela calçada numa rua qualquer na cidade; esses locais estão quase sempre tampados para que nenhum transeunte se acidente. Ela só se revela ocasionalmente, pelo distanciamento que o corpo toma da cal-

99 A apreciação das demais obras da exposição será desenvolvida num segundo momento, no con- junto de trabalhos abordados no Capítulo 3. O espaço em ato desta tese.

97

FIG. 5

Registro do processo de montagem das lâmpadas nas bocas de lobo, bairro do Bom Retiro, São Paulo. Foto: Rubens Mano

çada (ao cruzar a rua, por exemplo) ou pelo desvio do olhar para baixo (movi- mento não natural em nossas caminhadas pela cidade).

Ao iluminar esses pequenos e despercebidos vazios urbanos, o artista de- marca a existência negativa desses espaços, preenchendo-os com o seu oposto, imaterial, uma estratégia para chamar a atenção para esses pequenos interva- los espaciais na cidade. De captadores passivos de água, os bueiros passam a emissores ativos de luz, invertendo-se o sentido do fluxo no seu interior.

A escolha de Rubens por lugares adjacentes, deslocados do olhar comu- mente direcionado de quem transita na cidade, para realizar suas interven- ções vai ao encontro de uma das principais características de suas ações: a condição silenciosa destas, que geralmente se dão sem prévios alardes sobre sua ocorrência, nem tampouco são sinalizadas durante o seu acontecimento.