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PROJETO MODERNO BRASILEIRO: CONTRADIÇÕES DE ORIGEM

Vou agora escrever uma coisa da maior importância: Brasília é o fracasso do mais

espetacular sucesso do mundo. (Clarice Lispector)297

Digam o que quiserem, Brasília é um milagre. (Lucio Costa)298

“O nosso passado não é fatal, pois nós o refazemos todos os dias. E bem pouco preside ele ao nosso destino. Somos, pela fatalidade mesma de nossa for- mação, condenados ao moderno”.299 A frase célebre foi proferida por Mário Pe-

drosa durante sua comunicação no Congresso Internacional Extraordinário de Críticos de Arte ocorrido em Brasília em 1959.300 A expressão grafada por

Pedrosa tornou-se um mantra recorrente em ensaios críticos dedicados à re- visão do projeto moderno nacional (principalmente na arquitetura e na arte, mas também em estudos culturais em geral). Ela expõe as contradições de

297 Lispector, Clarice. Brasília esplendor [1974]. Para não esquecer: crônicas, op. cit., p. 46.

298 Costa, Lucio. Considerações fundamentais [1988]. Registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1995, p. 323. (O depoimento de Lucio Costa foi publicado originalmente em 31 de agosto de 1974, na revista Manchete, e posteriormente editado no artigo de 1988.)

299 Pedrosa, Mário. Brasília, a cidade nova [1959]. Arquitetura: ensaios críticos. Org. Guilherme Wisnik. São Paulo: Cosac Naify, p. 93. (A comunicação de Pedrosa foi publicada originalmente no Jornal do

Brasil, em 19 de setembro de 1959.)

300 O congresso foi realizado pela Associação Internacional de Críticos de Arte – AICA, sob a orga- nização de Mário Pedrosa e Mario Barata, e teve a participação de renomados críticos de arte, ar- quitetos e urbanistas estrangeiros, dentre os quais Meyer Schapiro, Giulio Carlo Argan, Bruno Zevi, Richard Neutra, Sir William Holford e Gillo Dorfles. O evento ocorreu concomitantemente em três cidades, São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. A abertura se deu na nova capital federal, antes mesmo de sua inauguração, e contou com a presença de Juscelino Kubitschek. Sob o título “Cidade nova, sín- tese das artes”, o encontro se debruçou na ambição moderna de reunir todas as expressões artísticas, incluindo a arquitetura, numa ideia de arte total. Apesar do tema não ser uma novidade à época (já consolidado sobretudo pela Bauhaus), o ineditismo do congresso residia justamente no que Brasília representava: uma promessa que parecia cumprir os esforços da comunidade modernista internacio- nal em direção à síntese das artes e à materialização da cidade funcional corbusiana.

264 265 origem do projeto diante de uma jovem nação subdesenvolvida, fundada na

periferia do capitalismo.

A expressão de Pedrosa alude a uma ausência de “tradição” em compa- ração à civilização europeia, que até o início do século XX nos fornecia os modelos e paradigmas da linguagem artística a serem seguidos. Ao exami- nar as razões dessa ausência, o crítico de arte encontrou suas origens nos escritos do geógrafo francês Pierre Monbeig sobre o Brasil, publicados em 1952 no livro Pioneiros e fazendeiros de São Paulo. Segundo este, a história do país foi marcada desde o começo por uma “frente de colonização”, protagonizada por uma gente que se caracterizava “pelo gosto e à procura do novo, a vontade de não se contentar com a herança do passado”.301

No despontar do século XX, ainda sob a égide de uma cultura colonizada, o espírito moderno contagiou os artistas mais arejados do país, organizados na frente modernista da Semana de 22; porém, ao mesmo tempo que defen- diam uma renovação linguística, rompendo principalmente com o academi- cismo das belas-artes (tal como os seus pares europeus), eles estavam imbuí- dos de um profundo comprometimento com a construção de uma identidade nacional, que de alguma forma os aproximava da política de Estado desen- volvida a partir dos anos 1930.

Sobre o panorama de contradições da arte brasileira da primeira metade do século XX, entre o moderno e a tradição, o crítico de arte Rodrigo Naves coloca que:

foi esse compromisso com a edificação de um imaginário positivo a razão de quase todos esses artistas manterem em relação a seus meios expressivos — fossem eles pictóricos ou escultóricos — uma atitude de comedimento e de pouca radicalidade, uma vez que a preocupação de firmar comunicativamente os símbolos que construíam — mulatas,

301 Pierre Monbeig apud Pedrosa, Mário. Brasília, a cidade nova. Arquitetura: ensaios críticos, op. cit., 2015 [1959], p. 95.

camponeses ou estranhas figuras semifolclóricas — necessariamente pedia de seus trabalhos um certo compromisso com formas tradicio-

nais de percepção.302

A leitura de Naves explicaria, em parte, por que a integração das artes pres- suposta na utopia moderna das vanguardas do início do século XX tinha sido absorvida pelo projeto desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek – na sua maior realização, que foi a construção de Brasília – com feições mais naciona- listas do que estritamente modernas e disruptivas. A preferência oficial pelos modernistas da geração de 1930 – tais como Candido Portinari, Di Cavalcanti e Alfredo Ceschiatti – para representar a integração nacional entre arte e arqui- tetura em Brasília refletira essa limitação. Boa parte das obras selecionadas para o plano piloto303 acabou figurando muito mais como representações na-

cionais que celebram um “tipo” brasileiro do que como protagonistas de uma autêntica renovação (entre forma e conteúdo) pari passo com as ideias urbanís- ticas impressas no projeto modernista de Lucio Costa para a capital.

É sabido que a principal característica das vanguardas europeias foi a ban- deira da ruptura com o passado e sua história – quer por via de uma concilia-

302 Naves, Rodrigo. Azar histórico: desencontros entre moderno e contemporâneo na arte brasileira,

Novos Estudos, Cebrap, n. 64, nov. 2002, p. 7.

303 Em sua tese de doutorado, Heloisa Espada levantou quem eram os pivôs das escolhas: “A escolha das obras de arte que ocupariam a praça dos Três Poderes, os interiores dos palácios e outros lugares públicos de Brasília foi um assunto discutido e ponderado entre Israel Pinheiro, diretor da Novacap, Oscar Niemeyer, diretor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da companhia, e Lucio Costa, responsável pelo projeto urbanístico. Depoimentos dos dois arquitetos e do artista Athos Bulcão dão a entender que Lucio Costa se envolvia principalmente na decisão sobre as obras que ocupariam os espaços abertos da cidade, enquanto cabia a Oscar Niemeyer escolher os artistas e trabalhos que integrariam os interiores de seus projetos. Uma exceção é o Palácio do Itamaraty, cuja formação do acervo de arte moderna e contemporânea aconteceu por iniciativa e influência do embaixador Wla- dimir Murtinho. […] percebe-se que as decisões envolviam questões orçamentárias, conveniências, relações e gostos pessoais, além da preocupação com a manutenção do sentido de unidade e de adequação ao programa dos conjuntos arquitetônicos”. Espada, Heloisa. Monumentalidade e sombra: a representação do centro cívico de Brasília por Marcel Gautherot. Tese (Doutorado em História da Arte) – Escola de Comunicações e Artes – ECA-USP, 2011, p. 177.

ção possível entre arte e indústria, quer pela negação desta relação, por meio de uma estratégia de choque –, almejando o novo (e o futuro) como horizonte. Conforme escreveu o crítico de arte Ronaldo Brito,

A Modernidade apresentava de início um sentido manifestadamen- te liberatório, caracterizava-se pela disponibilidade absoluta: parecia possível fazer tudo, com tudo, em qualquer direção. […] Mas o gesto de liberar implica uma situação de opressão, uma situação insustentá- vel. A liberdade moderna não era simplesmente a afirmação de novas possibilidades: era sobretudo uma revolta, um desejo crítico frente às coisas e valores instituídos. No limite, expressava o paradoxo de um

sujeito que não reconhecia mais o mundo enquanto tal.304

A libertação da arte moderna, tal como apresentada por Brito, implicou não só uma ruptura com o passado, mas uma “disponibilidade absoluta” (em termos plásticos e conceituais) para tudo o que poderia vir a ser, uma vez que rompia com o principal estatuto da arte, qual seja o da representação do mundo. De par com isso, construiu uma linguagem voltada sobretudo para, de um lado, pensar a si própria (seus elementos plásticos, sua fatura, as qua- lidades dos materiais etc.), e, de outro, para restabelecer os vínculos com o mundo, o qual não mais respondia aos seus anseios.

No contexto brasileiro, a aproximação arte-vida almejada pela utopia mo- derna grosso modo manifestou-se na conciliação entre as esferas da arte e da indústria; porém, ela só foi ocorrer em meados da década de 1950, quan- do da formação de um espírito construtivo entre os artistas, facultado pelo contexto paulista. O descompasso do ideal moderno de aproximação da arte à nova realidade industrial (urbana, por excelência), verificado entre os mo- dernistas de 1922 e o concretismo paulista dos anos 1950, se explica também

304 Brito, Ronaldo. O moderno e o contemporâneo (o novo e o outro novo). Basbaum (org.), op. cit., p. 202.

pela formação tardia de um parque industrial substancial, a partir da década de 1940, e que coincidiu com a sua criação em território paulista. Contudo, a vanguarda construtiva da arte brasileira não teve participação de peso no projeto da nova capital para formular as bases de uma nova visualidade con- dizente com os anseios do espírito moderno dos autores de Brasília – talvez, justamente, por não carregar mais aquele espírito nacionalista das primei- ras décadas.

Quanto à arquitetura e ao urbanismo, em termos mundiais, a visão oti- mista sobrepujou à negativa (pelo menos até o período do pós-guerra), e cons- truiu um modelo utópico de cidade esboçado na Carta de Atenas redigida no IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (CIAM), em 1933. Nela, os princípios urbanísticos de racionalidade e planificação da “cidade funcional” de Le Corbusier305 alinhavam-se às soluções estandardizadas da arquitetura

moderna; esta era “pensada como a principal aliada na solução dos grandes antagonismos da sociedade capitalista, a que seria capaz de reorganizar por uma reordenação do espaço”.306 Segundo Otília Arantes, a “ideologia do pla-

no”, proveniente de uma ordem planificada e abstrata, era justificada pela possibilidade emancipadora da industrialização com vistas a resolver o pro- blema do déficit habitacional (em boa parte, ocasionado pelo crescimento populacional urbano e pelas destruições da guerra em solo europeu).

305 Os princípios do urbanismo funcionalista redigidos na carta e encabeçados por Le Corbusier durante o IV CIAM, realizado em Atenas em 1933, estabeleciam o zoneamento funcional das cidades, cujas áreas deveriam ser dividas pelas atividades ali realizadas – a saber, morar, trabalhar, circular e lazer. Além disso, pregava-se uma ocupação extensiva em conjuntos habitacionais de grande por- te, estandardizados para uma maior eficiência técnica e econômica. Cf. Carta de Atenas. Atenas: IV CIAM, 1933. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Carta%20de%20 Atenas%201933.pdf>. Acesso em 20 dez. 2017.

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