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O debate em torno de vazadores também envolveu uma análise a partir da reformulação de uma ideia de arte pública, atualizada entre os anos 1990 e 2000 em comparação aos anos 1970. Coincidentemente, um dos integran- tes do grupo 3Nós3, Hudinilson Jr., esteve presente no encontro da Pina- coteca promovido pela revista Tropico, e chegou a se manifestar sobre o que significava atuar na cidade naqueles anos de chumbo: “Nossa visão de arte pública era essencialmente política. Tomamos por atitude a invasão. Éra- mos obrigados a fazer quase tudo na surdina, e mesmo assim tivemos mui- tos problemas”.284

283 Rubens Mano apud Oliva, op. cit. 284 Hudinilson Jr. apud Oliva, op. cit.

O depoimento de Hudinilson Jr. releva um tipo de entendimento sobre o significado político da arte, especialmente daquela endereçada ao espaço público, mais próximo de negação do que de afirmação. Naqueles anos de regime ditatorial, boa parte dos artistas que se colocavam num enfrenta- mento mais direto do sistema artístico vigente acabou incorporando em suas ações um viés político: elas aconteciam nas brechas do sistema, bus- cavam novos lugares para a arte (principalmente fora do circuito emergente das galerias), e eram operadas de modo sorrateiro, evitando-se a repressão policial. Desse modo, o enfrentamento político do regime se beneficiava de seu extravasamento pela arte; no caso das ações do grupo 3Nós3, elas logo se dissolviam no fluxo da cidade, deixando rastros apenas no noticiário jornalístico.

Já em Rubens, e em tantos outros artistas que produzem a partir da déca- da de 1990, o aspecto político da obra não reside necessária e exclusivamente

na política, mas na crítica que se faz dentro e a partir do circuito cultural

artístico legitimado – no exemplo de vazadores, representado pela institui- ção. Ou seja, muitas vezes o aspecto político do trabalho não se apresen- ta literalmente como um discurso crítico sobre o sistema, mas como uma perspectiva crítica do próprio fazer, expor, fruir e circular o trabalho de arte contemporâneo.

Por outro lado, é recorrente uma leitura sobre o aspecto político da arte pública do ponto de vista de sua capacidade de romper com o status quo e pro- duzir um ruído no cotidiano. É o que Favaretto, por exemplo, identifica como uma grande mudança dos anos 1970 para os anos 1990/2000. Segundo ele, a diferença entre os períodos é que no caso de Hudinilson Jr. as intervenções eram desviantes do circuito; já as de hoje teriam mais estabilidade:

Aquele momento de exceção era propício no Brasil para se explorar ações como essa (do 3Nós3), não regulamentadas, causando um efeito de estranheza que produzia resultados. Hoje estes efeitos não são mais visíveis. Então se cria alguma coisa, como a obra de Rubens Mano na Bienal, para gerar um determinado comportamento, que é regrado –

traz à tona a historicidade daquele edifício relativa à utopia integradora da arquitetura moderna no contexto do parque. Ao mesmo tempo que o atraves- samento é uma saída de emergência para a cidade, ele reconecta o pavilhão (e a instituição que está por trás dele) à sua vocação primordial na e para a capital paulista. Essa autoconsciência em relação à instituição se reafirma na declaração de Mano durante o debate da Pinacoteca: “O artista não é um criador de sociedades, tampouco deve se tornar um espelho passivo da reali- dade. Ele é apenas um membro da comunidade que não pode se afastar das condições do ambiente em que vive”.286 A fala do artista reverbera no que

Nina Felshin definiu com uma “nova arte pública”, citada anteriormente, que inclui a comunidade e/ou o público na conceituação do lugar, e caracteri- za o trabalho do “artista público” como sensível aos problemas, necessidades e interesses que define esse lugar.

Fica claro que o processo de criação de Rubens é movido por um intenso desejo de ação; este impulsiona o artista, leva-o a elaborar uma proposição que altera a condição do lugar, revelando certos aspectos encobertos, pela qual busca tirar o espectador de uma zona de conforto, instaurada no pró- prio circuito cultural artístico. Há um desejo implícito de se experimentar a transformação da percepção por meio de um deslocamento no espaço (pro- tagonizado pelo observador) e do espaço (realizado pelo artista). A ambição de transformar essa percepção, isto é, de instaurar o espaço em ato, se mostra como um dos aspectos mais importantes desses trabalhos, onde reside sua expressividade, sua força política e seu sentido público.

Em vazadores, a construção de “um lugar dentro do outro” é agenciada como um movimento de atravessamento; o mesmo desejo de intensifica- ção do fluxo entre as esferas pública e privada pode ser visto também em

detetor de ausências, na singularização de cada indivíduo dentro da multidão

que cruza o viaduto, e em calçada, pela conectividade estabelecida entre a instituição e a rua por meio do fornecimento de energia elétrica. As três si-

286 Rubens Mano apud Oliva, op. cit. mas que é desregrado em relação à hipernormatividade. Ou seja, ele é

organizado, constituído e propõe um comportamento, mas que não é

anárquico nem visa explorar qualquer espécie de êxtase.285

O que Favaretto chamou de “hipernormatividade”, aqui é interpretado como uma ação “de dentro” do sistema.

Durante o encontro, Mano chega a rebater a afirmação do crítico, ao co- locar que não havia a intenção de conduzir o sujeito para um tipo de expe- riência determinada e normatizada. Este poderia apenas olhar a distância, ou mesmo passar por ali desapercebido. Era um risco ao qual o trabalho (e o artista) estava submetido.

As controvérsias entre o ponto de vista do crítico e do artista em relação a vazadores, e as especificidades da crítica institucional aportadas em cada período histórico, não têm a intenção de estabelecer um juízo de valor en- tre uma prática artística e outra, mas pensar como o contexto mobiliza cer- tas ações e como elas se tornam singulares em suas elaborações. No caso do 3Nós3, apesar de clandestino, o efeito de estranheza deveria ser amplamente disseminado pela mídia, e isso sim produzia resultados. Já no caso de Mano, o efeito de estranheza só era percebido pelo corpo do sujeito que a experi- mentava, uma vez que sua dissolvência na própria arquitetura do pavilhão e sua não divulgação como “arte” a colocava como um corpo estranho entre a bienal e o parque. Voltando ao texto de Fraser, o objeto ao qual a crítica de

vazadores se direciona não é a instituição em si, mas as estruturas e códigos de

uso contidas no seu modus operandi, que implicavam relações de poder entre a bienal e seus públicos, e entre a arquitetura e a cidade, algo semelhante ao que Crimp apontou na crítica materialista de Tilted Arc.

Fica claro, enfim, que o sentido de vazadores é proposto pelo artista como uma expressão de autoconsciência com relação à instituição.Ao mesmo tem- po que a intervenção no pavilhão tensiona o acesso oficial à exposição, ela

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tuações elencadas neste segundo conjunto são, portanto, marcadas por atos de espacialização por meio dos quais o artista convoca o público a perceber o contexto do lugar e fazer conviver simultaneamente os dois espaços, não como opostos, mas como experiência dialética do viver urbano nos termos postos por Maffesoli.

capítulo 4

Habitar o