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Do ponto de vista das transformações da vida urbana do período, São Paulo sobressaia-se como a meca do desenvolvimentismo do país, baseada no seu parque industrial (especialmente o automobilístico).70 E, como tal, afir-

mava-se como paradigma urbano nacional – não do ponto de vista político, como Brasília, nem em termos culturais, como o Rio de Janeiro, mas como centralidade econômica, do produtivismo industrial, da ideologia do traba- lho e da eficiente circulação de serviços e bens de consumo. Por trás de tudo isso, estava o “milagre econômico brasileiro”.

Segundo Cândido Malta Campos, ao longo da década de 1970, na capital paulista

70 Entre 1961 e 1964, a capital tinha sido administrada pelo engenheiro Francisco Prestes Maia, cuja gestão foi marcada por grandes obras viárias, a exemplo da avenida 23 de Maio. O período iniciado com o golpe militar de 1964, na gestão Faria Lima, ficou igualmente identificado por grandes obras viárias que consagrariam o império do automóvel na cidade, tais como o Elevado Costa e Silva (mais conhecido como Minhocão), as vias expressas das marginais dos rios Pinheiros e Tietê, as avenidas Bandeirantes, Brás Leme e Radial Leste, o alargamento da avenida Paulista e da rua Iguatemi (que virou avenida Faria Lima), dentre outros exemplos. Villaça, Flávio. Elites, desigualdade e poder muni- cipal. Campos, Candido Malta; Gama, Lucia Helena; Sacchetta, Vladimir (orgs.). São Paulo, metrópole

em trânsito: percursos urbanos e culturais. São Paulo: SENAC, 2014, p. 150.

acentua-se o crescimento extensivo e desordenado, a verticalização, a expansão da periferia e os déficits urbanos; esboça-se uma estrutura de planejamento tecnocrático. Tensões políticas culminam em movi- mentos sociais urbanos e uma cultura de resistência. A Grande São Paulo assume perfil decididamente moderno, passando de metrópole industrial a megalópole terciária, e tornando-se, não apenas em ta-

manho, a primeira cidade do país.71

Nesse cenário, a emergência de uma produção artística de viés crítico em relação ao circuito institucional vigente e atenta direta ou indiretamente às transformações da vida urbana em São Paulo esteve de algum modo re- lacionada ao ambiente universitário, protagonizado pelos cursos pionei- ros da FAAP, da FAU-USP e, logo em seguida, da ECA-USP. Neste ambiente paulistano aflorava boa parte da produção experimental local do período, cujos vínculos se dariam na e para além das salas de aulas, a exemplo da criação laboratorial do espaço B do Museu de Arte Contemporânea da USP.

Enquanto o contexto experimental carioca foi estimulado pela figura crí- tico-criadora de Frederico Morais – que vislumbrou em certos artistas (entre eles Cildo Meireles, Antonio Manuel, Artur Barrio, Thereza Simões, Luiz Alphonsus e Guilherme Magalhães Vaz) a possibilidade de trabalhar con- juntamente na direção de uma nova arte de vanguarda, que deveria se dar nas bordas das instituições e endereçada às contingências da vida pública –, o ambiente paulistano se mostrou mais introvertido. As iniciativas experi- mentais eram ora fomentadas no meio universitário (a exemplo das atuações de Walter Zanini, no MAC-USP, e Flávio Motta, na FAU-USP), ora protago- nizadas por artistas e grupos independentes. Cabe citar aqui alguns exem- plos que se destacaram na construção de uma certa narrativa local: o Grupo Rex e seus membros (Wesley Duke Lee, Geraldo de Barros, Nelson Leirner, José Resende, Carlos Fajardo e Frederico Nasser); alguns artistas oriundos

do Curso de Formação de Professores de Desenho da Escola de Arte da FAAP, criado por Flávio Motta, como Marcello Nitsche e Carmela Gross; artistas que circulavam nos espaços laboratoriais do MAC-USP, como Julio Plaza, Regina Silveira, Gabriel Borba e Sônia Andrade; e, mais para o final da década, os grupos independentes “marginais”, tais como o 3Nós3 e o Viajou sem Passa- porte (formados por estudantes da ECA-USP e da FAU-USP, respectivamente). Nesse caldeirão de experimentações, ao menos três tendências emer- giram no horizonte das práticas impregnadas pelas contingências da vida urbana paulistana: uma de vocabulário pop, produzida como ironia ou pa- ródia; outra, de raiz conceitual, que explorava a linguagem como meio; e a última, “marginal”, que procurou criar as brechas necessárias para se res- pirar na cidade sob controle militar do estado. Por diversas vezes essas ten- dências se entrecruzaram e produziram uma instigante cena experimental.

Da primeira vertente, Marcello Nitsche desponta como um artista tipica- mente paulistano, ao se apropriar da materialidade industrial da cidade para ironizá-la em formalizações pop bem-humoradas. Já em meados de 1960, o artista parodiava os ícones da sociedade paulistana (da industrialização, da ideologia do trabalho, do automóvel, dos eletrodomésticos…). Em 1967, a pas- sagem de Nitsche pela exposição Nova Objetividade Brasileira marcara sua obra pictórica pela valorização objetual, do objeto como novo estatuto da cultura urbana. A partir de 1968, seus trabalhos ganharam uma aparência maquíni- ca, decorrente da impregnação da vida urbana industrial, e que lembra a iro- nia duchampiana. Como ressalta a historiadora da arte Ana Maria Belluzzo,

a nova visão da natureza moderna impõe-se pela paisagem urbana aos jovens artistas brasileiros atuantes em meados dos anos 1960. Fábrica e cidade constituem a moderna paisagem e marcam, de modo peculiar, a

experiência artística de Nitsche entrelaçada à vida de São Paulo.72

72 Belluzzo, Ana Maria M. Lig des: Marcello Nitsche. (Catálogo de exposição). São Paulo: Sesc Pompeia, 2015, p. 5.

Belluzzo pontua que, nos anos 1960, “jovens artistas atraídos pelas falas que se cruzavam pela cidade afastaram-se estrategicamente de cânones visuais de tradição culta e se acercaram da linguagem da vida cotidiana”.73 Marcel-

lo acompanhara o crescimento vertiginoso de São Paulo com uma câmera fotográfica na mão; no sightseeing da cidade, admirava a beleza industrial de tubos conectores, turbinas e chaminés fumegantes, bem como os expres- sivos códigos de comunicação urbana. Dentre os registros feitos no período, Nitsche realizou um filme com o artista e professor Flávio Motta sobre o Ele- vado Costa e Silva, que representava a supremacia do automóvel na cidade à época. Motta elegeu o espaço residual sob o Minhocão para colorir a cidade. Na intervenção sobre os pilares do elevado, executou composições geométri- cas, pensadas para serem vistas sequencialmente, sob o olhar em trânsito, como num cinema ao ar livre. O conjunto Caminhos do Jaraguá foi inaugurado em 1974, e todo o processo foi documentado por Nitsche no filme. Motta dizia que “o fundamental é tornar a cidade um campo de relacionamento humano mais amplo, inteligível, observável, correspondendo às aspirações do desen- volvimento social”.74

Na perspectiva de se lidar com as transformações da vida urbana no des- pontar da década de 1970, enquanto certos artistas operavam em vocabulário

pop, outros se dedicavam a estratégias mais discursivas ligadas a vertentes

conceituais, como era o caso de Regina Silveira. No início da década, Silveira experimentava a imagem nos laboratórios promovidos por Zanini no MAC - -USP, adentrando uma fase de exploração dos novos meios visuais. Esse mo- vimento se alimentava da crescente circulação da fotografia nos veículos de comunicação de massa e sua impregnação na vida cotidiana dos grandes centros urbanos.

A obra da artista produzida no período estava incutida pela problemáti- ca da representação, tanto no que diz respeito aos códigos tradicionais do

73 Ibidem, p. 10.

72 73 desenho quanto aos novos usos da fotografia que questionavam sua veros-

similhança com o real. Em depoimento, Regina declara que “o elemento transformador maior para o salto multimídia dos anos 70 foi a fotografia, o meio mais pervasivo para registrar conceitos, ações e eventos, por ope- rações de registro e montagem”.75 Sua fala corresponde ao que a historia-

dora da arte Annateresa Fabris apontara sobre o significado da opção pela fotografia, perseguida mais como signo e estrutura cultural, do que como organização formal.76

As primeiras apropriações de imagem de Silveira datam de 1971. No álbum

Middle Class & Co., a artista faz uso de fotografias de multidão extraídas da

mídia impressa, compostas por indivíduos “genéricos”, sobre as quais aplica um grafismo geometrizado. O amálgama corpóreo resulta do meio serigrá- fico, que induz a uma simplificação do desenho transferido para a matriz; o emprego de uma única cor ajuda a produzir a homogeneização espacial. O conflito entre forma e conteúdo, ressaltado pelo viés irônico, incute a dimen- são crítica de Silveira, ao questionar o valor dos atributos de uma espacialida- de estruturante, própria do urbanismo moderno, bem como a padronização do grupo social representado.

A partir de 1973, as serigrafias apontam uma justaposição de questões gráficas e representacionais a questões relativas à cidade. É no limiar dessa década que a pauliceia passa a viver sob o ritmo desenfreado do automóvel, das grandes avenidas e da multidão. Em Brasil Turístico/SP/Viaduto do Chá, Regina se apropria de cartões-postais com imagens do centro da cidade e as remonta como cenário de uma pilha de carros sucateados. A fotomontagem é impres- sa em offset e faz parte da série Publicações On/Off, uma parceria com Julio Plaza. Em Proposta para Monudentro, outra montagem da série, a imagem do Monu-

mento às Bandeiras, de Victor Brecheret, marco do orgulho paulista prefigurado

75 Silveira, Regina. Regina Silveira: compêndio (RS). (Catálogo de exposição). Belo Horizonte: Museu de Arte da Pampulha, 2007, p. 2.

76 Fabris, Annateresa. Sombras simuladoras. Moraes, Angélica de (org.). Regina Silveira: cartografias da sombra. São Paulo: Edusp, 1995, p. 190.

no herói bandeirante, habita um cemitério de automóveis. A recorrência de montanhas de sucata automobilística ironiza o progresso trazido pelo maior parque industrial do país. E lembra ainda o imaginário das cenas imortalizadas por Andy Warhol na série Car Crash (1963-1965) e das compres- sões de automóveis (1962) de César.

No conjunto de serigrafias Desestruturas urbanas (série Interferências), de 1976, as malhas ortogonais pousam sobra a cidade, em diferentes con- textos urbanos: sobre grandes avenidas, em skylines de áreas verticaliza- das, ou ainda separando carros e pedestres ao rés do chão. Novos sím- bolos da vida moderna passam a figurar como cenário: a verticalização; a mobilidade e o tráfego; as superestruturas da engenharia; a centrali- dade dos negócios na avenida Paulista; os primeiros símbolos nacionais da indústria local, como a Kombi; o mundo peatonal em conflito com a circulação privilegiada de veículos. Nas fotomontagens de Silveira, a São Paulo moderna é problematizada pela justaposição de situações dís- pares que constroem um cenário surrealista, entre uma ordem abstrato- -geométrica que controla a urbe de cima e uma ordem concreta, caótica,

da vida cotidiana.

Uma terceira via da produção de arte que emergiu das novas dinâ- micas da vida urbana na capital paulista diz respeito a artistas que se aventuravam a desbravar os vínculos imediatos com a dimensão prático- -sensível do cotidiano metropolitano. Para estes, a rua ganhou centra- lidade em suas práticas – ora como lócus alternativo para a realização de trabalhos, ora como matéria propulsora na orientação de suas intenções poético-espaciais. Exemplo disso são as experiências performáticas rea- lizadas por Ivald Granato, Gabriel Borba e Fred Foster. Em 1973, a convite de Vilém Flusser para participar da 12a Bienal de São Paulo, Foster realiza

seu Passeio Sociológico ao Brooklin, uma manifestação de rua pelo bairro, re- gistrada em fotografia. Os projetos de Foster eram um misto de criação estética e experimentação sociológica, por meio dos quais travou um em- bate com a rua e o espaço urbano, então dominados pelas forças ditato- riais e pelos meios de comunicação de massa.

Mais adiante, diversos grupos independentes despontaram em São Pau- lo, a exemplo do Arte/Ação,77 Manga Rosa,78 Viajou sem passaporte79 e 3Nós3. Boa parte deles trabalhava a partir da materialidade urbana, frequente- mente em ações furtivas extramuros. Partindo de uma atuação “marginal”, utilizavam espaços inusitados como base de suas intervenções: outdoors, ônibus, viadutos, ruas, monumentos públicos, além dos espaços já estabe- lecidos no circuito, como galerias, teatros e jornais.80

Dentre as manifestações artísticas realizadas no meio urbano propostas pelo grupo 3Nós3, destaca-se a estratégia inaugural criada por seus três in- tegrantes – Hudinilson Jr., Mario Ramiro e Rafael França – para encapuzar cerca de 80 monumentos públicos de São Paulo na madrugada do 27 de abril de 1979. Não à toa, através de um mapeamento da cidade, o trio elege um conjunto de esculturas públicas, símbolos da história oficial da cidade e do gosto do poder, para negá-las no que representam como ideologia, cultural e política. Concretizada como uma espécie de guerrilha urbana, a ação fur- tiva de cobrir com sacos de lixo as cabeças das figuras monumentalizadas se dá de madrugada, a despeito da possível abordagem pela ronda policial. A ação não se efetivaria sem o alarde que o grupo faz à imprensa na manhã seguinte, convocando-a a conferir o que se passava na cidade.

De certa fora, tinha um pouco a ver com uma ideia de urbanismo, porque todas as cidades têm espaços reservados para a construção de monumentos. A intenção era espacialmente cobrir uma certa arte acadêmica visível na cidade; a nossa ideia estava muito mais

77 A formação original do grupo contou com Genilson Soares, Francisco Iñarra e Lydia Okumura, tendo atuado coletivamente até 1979.

78 O grupo reunia estudantes do curso de Arquitetura e Urbanismo da USP, dentre eles Carlos Dias, Francisco Zorzete e Joca.

79 O grupo era formado por alunos da ECA-USP: Beatriz Caldano, Celso Santiago, Carlos Alberto Gor- don, Luiz Sergio Ragnole Silva, Marli de Souza, Márcia Meirelles, Marilda Carvalho e Roberto Mello. 80 Palhares, Taisa. Anarquismo construtivo [?!], número, n. 1. Disponível em: <http://www.forum- permanente.org/rede/numero/rev-numero1/taisa3nos3>. Acesso em 3 dez. 2016.

ligada a um ataque a esse academicismo que, por sua vez, é repre- sentante da história oficial do Brasil, que é a história do governo,

a história do Estado.81

Segundo depoimento de Ramiro, a profusão de iniciativas marginais do período buscava restaurar uma tomada cívica da cidade. A atuação direta do grupo no território da cidade representava ao mesmo tempo uma alter- nativa à falta de espaços expositivos para esses jovens artistas e uma con- quista “cívica” do espaço público, via negação das representações oficiais reverenciadas na cidade em espaços públicos exclusivos.