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Entre 1964 e 1984, Brasília foi “blindada” pelos militares e, com ela, a crítica sobre o projeto de modernização do país.

[…] após 1964, torna-se claro que aqueles horizontes se haviam fecha- do sob o impacto de um trágico desfecho histórico, a partir do qual a possibilidade emancipadora da industrialização toma o caminho res- tritivo da homogeneização cultural, problematizando assim aquelas afinidades utópicas que desde 1936 haviam definido a relação de cola- boração entre a vanguarda artística e um Estado universalizador, na

periferia do capitalismo.320

Entre a inauguração de Brasília e o início da redemocratização, em meados dos anos 1980, o país foi tomado de assalto por governos ditatoriais que as- sombraram qualquer tipo de opinião pública livre, bem como a liberdade de imprensa, especialmente no que diz respeito à atividade crítica. Como bem observou o historiador e urbanista Renato Cymbalista, a ditadura militar represou a valorização da esfera pública surgida na década de 1960 na figura espacial da rua321 e liderada nos Estados Unidos pelo ativismo de Janes Jacob,

dentre outros.322 Para o historiador, a crítica que se fazia sobre a falta de vi-

talidade das ruas da capital só recuperou fôlego em meados dos anos 1990. Ela coincide com o surgimento de uma geração de artistas e curadores que passou a olhar para as cidades com mais interesse – a exemplo dos trabalhos de Mano e dos projetos de Nelson Brissac.

Em meados dos anos 1980, ao período de blindagem política da capital federal sobrepôs-se seu congelamento como patrimônio histórico cultural,

320 Wisnik, op. cit., p. 374. 321 Cymbalista, op. cit., p. 70.

pelo qual o plano piloto de Brasília, projetado para uma cidade de 500 mil habitantes, foi tombado pela Unesco e tornou-se um bem cultural mundial inviolável. Nesse momento, os estudos realizados por James Holston sobre a capital revelaram que Brasília havia se transformado à época na maior área urbana tombada do mundo e na única cidade viva contemporânea tão preser- vada323 (contrastando com o fato de a capital federal ser uma das cidades mais

desiguais do país no mesmo período, segundo o levantamento de Holston). As controvérsias do processo de patrimonialização da “cidade-museu” fo- ram igualmente debatidas pelo filósofo alemão Max Bense em 2009, quando este atualizou suas críticas sobre a capital, escritas originalmente nos anos 1960, incorporando às discussões a questão do tombamento e os limites da produção do espaço que ela impunha a seus habitantes:

A cidade terá de conservar para sempre uma relação de confiança com a inteligência racional, e o pensamento de instalá-la como cidade pronta e acabada denota a intenção de retirá-la do fluxo da história a fim de preservá-la da fragilidade. A vida, que entrou livre e de modo intensivo na história da civilização, sai atada e de modo extensivo, e os momentos mutáveis e vegetativos tornam-se enredados em mo-

mentos irremediavelmente estruturais.324

Como uma cidade tão jovem e “moderna” poderia ser congelada no tem- po? Se o espírito de Brasília é o do experimento, tal como o define Holston a partir do olhar candango, não seria contraditório que a possibilidade de transformação dessa cidade, bloqueada desde sua concepção, esteja blinda- da juridicamente, reforçando ainda mais a segregação estabelecida desde a concepção do plano piloto? (Lembrando que a cidade completa implicava, contudo e apesar da advertência de Lucio Costa, um modelo de ocupação do

323 Holston, op. cit., p. 310.

324 Bense, Max. Inteligência brasileira – Brasília [1965/2009]. Xavier e Katinsky (orgs.), op. cit., p. 107.

solo que não permitia o acréscimo de tecido urbano novo no core planejado para 500 mil habitantes.)

Holston considera que o tombamento do plano piloto representou a “trai- ção” do espírito brasiliense pelos seus próprios fundadores, uma vez que “ao preservar a cidade como seu próprio memorial, nega às gerações subsequen- tes de cidadãos brasilienses o seu direito à cidade, a oportunidade de fazê-la sua e construir a cidade que eles desejam habitar”.325

Os privilégios e desigualdades apresentados nos estudos do sociólogo norte - -americano nos anos 1980 relevaram que eles foram gerados não necessaria- mente pelos fatos que se seguiram depois da inauguração de Brasília, mas, sobretudo, devido às premissas modernistas calçadas no modelo funcional de cidade, fadado à segregação espacial.

Da mesma forma, a historiadora da arquitetura Sylvia Ficher também identifica na concepção original do projeto de Lucio Costa aspectos que reforça- riam a tese da antinomia instaurada pela “completude” da cidade planejada:

Para defender e preservar a sua completude, foi definido um cinturão verde – melhor dizendo, um cordon sanitaire – e adotada uma política de expansão pela implantação de subúrbios e cidades-dormitórios para abrigar a população mais pobre – as cidades-satélites. À cidade Livre, atual Núcleo Bandeirante, acampamento de migrantes em busca de trabalho nas obras de construção, iriam se seguir Taguatinga (1858), Sobradinho e Gama (1960), Guará (1966), Ceilândia (1970) e assim in-

definidamente…326

O “choque do novo” – conhecido por “brasilite”, e vivido pelo povo candango – transformou-se em “choque de realidades”. De um lado, tem-se o plano pi- loto duramente protegido por uma legislação que impede o surgimento de

325 Holston, op. cit., p. 309.

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um tecido urbano contínuo e restringe o desenvolvimento de tipologias mais ajustadas às necessidades dos habitantes. De outro, às cidades-satélites cabe a repetição das disposições urbanísticas da cidade oficial tombada, transpos- tas de maneira apressada, disfuncional e desordenada (contando ainda com verbas bem inferiores).

Nesse breve apanhado da crítica que se produziu sobre Brasília, princi- palmente a partir do período da redemocratização, buscou-se sinalizar como é frequente a ocorrência de uma posição conflituosa de seus comentadores. Elogios são geralmente entremeados por duras críticas e vice-versa: as bri- lhantes soluções arquitetônicas de Niemeyer são postas em confronto com uma volumetria monumental e totalitária; a valorização da paisagem no entorno do plano e das áreas residenciais (o cinturão verde de Lucio Costa) é tida muitas vezes como um instrumento urbanístico segregador (um cordon

sanitaire); o “espírito de Brasília” lançado pelos próprios candangos (“ousar

um futuro diferente” e “abraçar o moderno com um campo de experimento e risco”)327 contradiz a valorização da preservação do plano piloto, que acabou

congelando a cidade por meio do seu tombamento.

É justamente a partir dessa experiência ambígua e aparentemente con- flitante que as obras de Rubens Mano serão estudadas a seguir. Por meio delas, o artista elabora sua visão sobre o projeto moderno ensejado no país e os modos de vida dali decorrentes, especialmente no caso da capital federal, destacando uma ideia de mútua impregnação, espacial e social, entre as rea- lidades oficial e “extra-oficial”.

327 Holston, op. cit., p. 306.