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A construção de Brasília fez conviver anacronicamente o espírito colonizador próprio dos “fundadores” da nação brasileira, mencionado por Pedrosa, e o

esprit nouveau de Le Corbusier, que se lançava entusiasticamente na direção do

futuro. No discurso de Lucio Costa, principal autor do projeto da nova capital, aparecem ambos os sentidos. No “Memorial descritivo do projeto”, datado de 1957, o arquiteto defendia a fundação da capital como “um ato deliberado de posse, um gesto de sentido ainda desbravador, nos moldes da tradição colonial”.307 Dez anos mais tarde, em “O urbanista defende a cidade”, seu

entusiasmo seguia na compreensão de Brasília como “o coroamento de um grande esforço coletivo em vista ao desenvolvimento nacional”,308 que “pela

singularidade da sua concepção urbanística e da sua expressão arquitetônica, testemunha a maturidade intelectual do povo que a concebeu, empenhado na construção de um novo Brasil, voltado para o futuro”.309

De modo geral, foram os princípios modernistas da Carta de Atenas de 1933 que orientaram o projeto apresentado pela equipe de Lucio Costa, ven- cedora do “Concurso para o Plano Piloto da Nova Capital do Brasil”, em 1957. A palavra final do júri310 (não tão unânime assim…) denotava escolhas basea-

das nos espíritos de euforia e ufanismo daquele momento, predominando as decisões políticas e os usos ideológicos da construção de um emblema nacio- nal e da retórica modernista.

307 Costa, Lucio. Memorial Descritivo do Plano Piloto [1957]. Lucio Costa: registro de uma vivência, op. cit., p. 283.

308 Costa, Lucio. O urbanista defende a sua cidade [1967]. Lucio Costa: registro de uma vivência, op. cit., p. 301.

309 Ibidem.

310 O júri foi composto por Israel Pinheiro (presidente da Novacap), Paulo Antunes Ribeiro (repre- sentante do IAB), Luiz Hildebrando Horta Barbosa (Associação dos Engenheiros), Oscar Niemeyer e Stamo Papadaki (Departamento de Urbanismo da Novacap), o urbanista inglês William Holford e o arquiteto francês André Sive.

Na concepção do arquiteto, Brasília se orientaria pela organização da vida citadina em quatro escalas de uso: monumental, residencial, gregária e bu- cólica. O conjunto delas lhe conferiria seu duplo caráter, como urbs e como

civitas. A primeira escala foi projetada no eixo monumental, e reuniria os

edifícios ministeriais, o congresso e os palácios. A escala residencial cortaria o primeiro eixo ortogonalmente (formando o desenho cruciforme do plano piloto) e organizaria a função do morar nos espaços interiorizados das super- quadras (esta era composta de quatro volumes horizontais com gabarito de 6 pavimentos, a fim de que as famílias pudessem avistar seus filhos nos pátios internos da quadra). A escala gregária se daria no cruzamento das duas pri- meiras, onde foi posicionada a rodoviária; ali seriam alocados os setores de banco, comércio e lazer, dentre outros. A escala bucólica, por fim, coroaria o desenho da capital com a vista do cerrado no horizonte de Brasília.

De acordo com o historiador e arquiteto Guilherme Wisnik, tais escalas se mostraram dicotômicas, pois cerceavam as trocas sociais próprias dos cen- tros urbanos, causando uma impressão solitária da vida brasiliense:

Na relação dicotômica criada entre o espaço interiorizado da super- quadra e a absoluta extroversão da escala monumental, a antiga forma de apropriação pública da cidade, pautada pela mistura, pela troca, está subtraída, donde uma permanente e incômoda sensação de solidão. Pois o que devia ser sentido como igualdade pode ser fa-

cilmente transformado em anonimato.311

“Em Brasília não existe cotidiano”,312 como dizia Clarice… Aos olhos da escri-

tora, faltam-lhe as esquinas, os encontros, os botecos para tomar um cafezi- nho nas pausas do trabalho, os postes para os cachorros fazerem xixi…

311 Wisnik, Guilherme. Transpondo a escala [2001]. Xavier e Katinsky (orgs.), op. cit., p. 374. 312 Lispector, Clarice. Brasília esplendor. Para não esquecer: crônicas, op. cit., p. 44.

Com efeito, a relação entre o privado e o público (e sua integração), pró- pria de uma sociabilidade urbana, soa muito distante dos objetivos do plano piloto de Lucio Costa. Segundo a socióloga Sophia da Silva Telles:

Lucio parece substituir essa relação [entre o privado e o público] pelas noções de espaços íntimos e monumentais. Para ambas as escalas, é a preeminência da paisagem agreste e dos amplos espaços que confere ao seu projeto urbanístico uma diferença também em relação às novas

cidades desenhadas pelos projetos da arquitetura moderna.313

No plano piloto, o tratamento especial dado ao paisagismo – enquanto espaço sensível – ecoa nas reminiscências de infância do seu autor, vivida na Ingla- terra, onde a natureza tem valor especial. Lucio Costa dizia que “o urbanismo consiste em levar um pouco da cidade para o campo e trazer um pouco do campo para dentro da cidade”.314 Na zona residencial, por exemplo, o uso do

paisagismo ao redor dos edifícios horizontais os dissolvia não apenas no nível da visão, como também “em seu caráter propriamente urbano, defendendo o tratamento rústico das ruas e calçadas que deseja ver quase abolidas”.315

O idealismo moderno impresso no projeto para a capital federal foi desde o início marcado por contradições. As críticas surgiam mesmo antes da inau- guração de Brasília, em 1960. Mário Pedrosa era uma dessas vozes. Em seu artigo “Reflexões em torno da nova capital”, de 1957, o crítico pondera que a fundação de uma capital longe das zonas já ocupadas natural e culturalmen- te significava uma espécie de tábula rasa da sua própria história:

Eis que surge a ideia de se criar uma nova capital precisamente para esse Brasil que já superou a fase colonial dos oásis. Mas como? Pelo velho processo das “tomadas de posse” da terra quase simbólicas, pe-

313 Telles, Sophia da Silva. Brasília – O desenho da superfície [1989]. Xavier e Katinsky (orgs.), op. cit., p. 328. 314 Costa, Lucio. Urbanismo [1972]. Registro de uma vivência, op. cit., p. 277.

315 Telles, op. cit., p. 327.

las implantações maciças de civilizações e a dominação mecânica de um solo despovoado, solitário, por uma técnica importada. […] Não é à toa que algo de contraditório se esconde no invólucro moderníssimo de sua concepção. […] Seria possível construir-se a nova capital fora das áreas de civilização naturalizada, onde desabrocharam enfim os

primeiros rebentos de uma cultura organizada e autóctone?316

Da mesma forma, os elogios de Françoise Choay à Niemeyer misturavam-se à sua crítica contundente sobre a tábula rasa:

Nenhum estabelecimento humano jamais havia sido erguido no lo- cal da futura Brasília; nenhuma estrada levava até lá. Era uma le- gítima tábula rasa, como a imaginamos nas utopias científicas ou filosóficas e que, numa única vez, a história de fato confiava a dois

famosos arquitetos.317

Decerto que as antinomias do projeto moderno cristalizado em Brasília mar- caram a cidade desde antes de sua fundação. Do ponto de vista político e ideológico, relativizava os princípios da ruptura com a tradição, ao pretender restaurar os fundamentos de uma nação. Do ponto de vista artístico, seus artistas “oficiais” buscaram garantir a efetividade do discurso nacional-de- senvolvimentista por meio de “formas tradicionais de percepção” para sua aceitação. Em termos urbanísticos, a transposição da utopia modernista de

316 Pedrosa, Mário. Reflexões em torno da nova capital [1957]. Arquitetura: ensaios críticos, op. cit., p. 134. Aqui, a ideia de uma civilização-oásis diz respeito à origem de um povo surgido artificialmente. Ela é recuperada por Pedrosa a partir dos estudos de Wilhelm Worringer sobre o Antigo Egito de 1927, e sua analogia com os povos da América (“lugar onde tudo podia começar do começo”): “O Egito, na verdade, não tinha cultura, mas uma civilização. E o grande historiador de arte comparava o papel do Egito ao da América na idade contemporânea. O ponto de comparação era dado pela ‘força de transformação que possui toda cultura não autóctone’ por lhe faltarem as resistências, os obstáculos ‘naturais’. Não encontrando obstáculos, ela pode ‘engendrar rapidamente um tipo uniforme artificial’”.

Ibidem, p. 131.

272 273 Le Corbusier, que pretendia resolver um problema de ordem social a partir

de uma lógica industrial e funcionalista, acabou fazendo da história do país uma tábula rasa, cujo ponto zero foi fincado em Brasília.

Esses descompassos do projeto moderno entre as versões europeia e brasi- leira também foram tratados por Gorelik no seu ensaio sobre Brasília de 2007:

A negação da história da Bauhaus, a “tradição do novo” vinculada ao culto do método empírico e do mundo tecnológico, buscava produzir, como assinalou Manfredo Tafuri, objetos artísticos que só podem viver no presente. Desse ponto de vista, a experiência do modernismo bra- sileiro em sua versão canônica poderia ser vista como uma completa inversão: a finalidade do objeto artístico é produzir ao mesmo tempo um futuro e sua tradição: porque o problema que deve resolver é a au-

sência de história, não seu excesso.318

Para além das contradições do projeto moderno brasileiro, os princípios da cidade funcional estabelecidos na Carta de Atenas já vinham sendo ques- tionados desde as experiências de reconstrução das cidades europeias no pós-guerra. Ao longo da segunda metade da década de 1950, as discussões encabeçadas pela nova geração de arquitetos do CIAM criticavam o processo de reconstrução pelo caráter abstrato de suas propostas, culminando na sua extinção, em 1959. A última edição do congresso foi conduzida pelo grupo do TEAM 10, que defendia a importância de se olhar para a cidade real existente e dialogar com os padrões de vida da população e com as condições culturais locais. 319

318 Gorelink, op. cit., p. 413. 319 Barone, op. cit., p. 65.