• Nenhum resultado encontrado

De par com o interesse renovado pelo mundo real e pela problemática da vida urbana, a partir da década de 1990 parte da produção artística tratou de bor- rar as determinações físicas que o lugar e o contexto tinham impostos à obra. Os paradigmas que orientaram uma prática do espaço assentada na vincula- ção direta e fisicamente inseparável da obra com o lugar ao qual se endereçava, e amplamente difundida a partir dos anos 1960 com a minimal art e a poética do site specificity, vinham sendo questionados desde meados dos anos 1980 (a exemplo da polêmica instaurada em torno da obra Tilted Arc, de Richard Ser- ra). Surgia uma nova acepção de espaço, esgarçada pelas práticas contempo- râneas, abordado não mais exclusivamente em seus aspectos físicos e feno- menológicos, mas também em suas implicações socioculturais (do espaço ao

lugar antropológico, identitário, relacional e histórico). No caso de Mano, isso

corresponderia a uma abordagem sob o ponto de vista da produção social do espaço, que passa a considerar com mais intensidade não só o papel do artista na fruição da obra, mas a atuação do(s) sujeito(s) social(is) na cidade. Em seu artigo “Espacialidade e arte pública”, publicado em 2001, o his- toriador da arte espanhol Jesús Carrillo aponta que a partir dos anos 1990 o espaço físico apriorístico passa a ser entendido como uma construção social, fruto da interação entre seus agentes:

A proliferação do pensamento metafórico-espacial típico do pós-mo- dernismo subtraiu a especificidade da noção tradicional de espaço, deixando de identificar este com a categoria abstrata e universal que molda o pensamento ou com a entidade física concreta sobre a qual nossos pés se apoiam e sobre a qual se realizam nossas ações. O espaço converteu-se em um tabuleiro de operações construído ou projetado discursivamente a partir das estratégias de poder, um poder ou pode- res que são implantados principalmente por meio da territorialização e da distribuição e redistribuição contínuas de posições espaciais: den-

148 149

tro fora, centro margem, contiguidade fraturada, fronteira nacional etc. Nesse sentido, o espaço deixaria de ser um a priori para ser uma construção, um produto gerado a partir da ação, da interação e da

competição entre os diferentes agentes.157

A intencionalidade artística de revelar certos aspectos de lugares que se apresentam numa condição eminentemente urbana, a partir de suas gêne- ses socioculturais (de seus códigos, usos e relações de poder), é apontada por Lucy Lippard como uma das vocações potentes da chamada “arte pública” produzida nos anos 1990. “Eu definiria arte pública como um trabalho aces- sível de qualquer tipo que se preocupa, desafia, envolve e consulta o público para ou com quem é feito, respeitando a comunidade e o meio ambiente”.158

Suas raízes não deixam de remontar ao ambiente experimental das décadas de 1960 e 1970, em que a produção (social) do espaço emergia como fato cru- cial – identificado por Henri Lefèbvre na emergência da “problemática urba- na”159 –, que era preciso o artista enfrentar.

157 “La proliferación del pensamiento metafóricoespacial típico del postmodernismo ha restado espe- cificidad a la noción tradicional de espacio, dejando de identificarse éste con la categoría abstracta y universal que enmarca el pensamiento o con la entidad física concreta sobre la que se apoyan nues- tros pies y se realizan nuestras acciones. El espacio ha pasado a convertirse en el tablero de operacio- nes construido o proyectado discursivamente desde las estrategias del poder, un poder o poderes que se despliegan primordialmente mediante la territorialización y la continua distribución y redistribu- ción de posiciones espaciales: dentro fuera, centro margen, contigüidad fractura, patria frontera, etc. En este sentido, el espacio pasaría de ser un a priori a ser una construcción, un producto generado a partir de la acción, interacción y competición entre los distintos agentes”. Carrillo, op. cit., p. 110. 158 “I would define public art as accessible work of any kind that cares about, challenges, involves, and consults the audience for or with whom it is made, respecting community and environment”. Lippard, op. cit., 1995, p. 121.

159 Lembrando que cada modo de produção gera o seu espaço próprio. E, segundo Lefèbvre, na tran- sição entre os anos 1960 e 1970, a produção de mercadorias clássicas deu lugar à produção do espaço, e a realidade industrial passou à realidade urbana. A produção social do espaço englobaria, portanto, o urbano e o cotidiano. Nesse nível, ao qual o filósofo chamou de misto, os processos gerais tomam forma concreta, como se fosse uma projeção das relações sociais. Ele seria a intermediação entre dois outros níveis, o global, da estrutura social (instituições, poder etc.), e o privado, do habitar e do indivíduo. Cf. Lefèbvre, op. cit., 1969.

Tal como em Carrillo, para Lippard a tomada de consciência de certas práticas artísticas que se debruçam sobre o problema do lugar deveria ser capaz de perceber outras camadas implicadas no espaço urbano para além de sua dimensão física, incluindo, segundo a crítica, uma extensa investi- gação visual e verbal que incorporasse a interdisciplinaridade e os estudos multiculturais. Essas linhas de investigação e produção estariam mais liga- das a “contextos e conteúdos, do que a estilos e correntes”,160 o que reforça a

hipótese apresentada na Introdução de que uma aproximação à obra de arte contemporânea requer cada vez mais uma leitura contextual e imersiva para “desvendá-la” sem generalizações.

As análises sobre a produção de arte do período interessada no debate acerca da cidade encontraram ressonância nos escritos da curadora norte- -americana Nina Felshin. De acordo com a autora,

a “nova arte pública” centrou-se na identificação do conceito de comu- nidade ou do público como lugar e a caracterização do artista público como aquele cujo trabalho é essencialmente sensível aos problemas, necessidades e interesses que definem essa entidade indescritível e difícil de definir que é esse lugar. De acordo com essa definição, a arte pública seria qualquer arte dotada de um certo compromisso político, o que pressupõe uma localização pública e uma recepção participati-

va.161

Apesar de concordar em parte com as definições de Lippard e Nelshin, o que

160 Lippard, op. cit., 1995, p. 120.

161 “El debate sobre el ‘nuevo arte público’ se ha centrado en torno a la identificación del concepto de comunidad o de público como lugar [síte] y la caracterización del artista público como aquel cuyo trabajo es esencialmente sensible a los problemas, necesidades e intereses que definen esa entidad esquiva y difícil de definir que es ese lugar. Según esta definición, arte público sería todo aquel arte dotado de un cierto compromiso político al que se le presupone una localización pública y una recep- ción participativa”. Felshin, Nina. Pero esto es arte? El espírito del arte como activismo. Blanco et. al. (orgs.), op. cit., p. 85.

interessa aqui é menos tentar enquadrar a produção de Rubens Mano numa nova categoria da “arte pública” fundada pelo campo da crítica em meados dos anos 1990, e mais situar suas obras abordadas neste segundo conjunto de análise dentro de uma prática contextual, pela qual a visada interdisciplinar em relação ao lugar é o motor principal para se construir uma percepção críti- ca sobre a produção do espaço na cidade. Ela pressupõe (mesmo que indire- tamente) um compromisso político do artista e uma disponibilidade ética e estética do público em se engajar no debate da arte contemporânea e da vida urbana, por extensão.