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Produzir um estudo interdisciplinar que de fato aproximasse os campos da arte, da arquitetura e do urbanismo sob a “síntese” da cidade e da vida urbana nas últimas décadas era um desejo há muito perseguido por mim na vida universi- tária, desde pelo menos a graduação. Com o desafio posto pelo estudo transdis- ciplinar e pela interlocução entre as práticas, a presente tese procurou estabele- cer certas correspondências entre uma vertente artística contemporânea – cujos fazeres se posicionam a partir de uma perspectiva contextualista e pressupõem o espaço como um constructo cultural – e a experiência urbana mais recente, de- cantada dos modos como a vida tem sido conformada pela sobreposição de uma nova condição urbana fragmentada sobre o tecido moderno da cidade industrial. Desde o princípio da década de 1990, a cidade contemporânea vem ope- rando a partir de duas dinâmicas distintas, uma real e outra virtual. No contexto da cidade de São Paulo – mas verificado também em muitos outros grandes centros urbanos – a experiência urbana implicou processos como a fragmentação do território, a desterritorialização dos lugares e a sensação de deslocalização do sujeito na cidade, que se acentuaram com o modus operandi específico paulistano, aquele que destrói e constrói incessantemente. Na ca- pital paulistana, ao tecido urbano moderno incompleto sobrepôs-se bolhas de “cidade global”, com centros de comando que operam suas trocas econômicas

e simbólicas nas redes virtuais.

Nas últimas décadas, portanto, essa cidade foi aos poucos sendo tensio- nada, quer pela substituição de suas atividades econômicas industriais por atividades de serviço, quer pela incorporação de novos fatores que passam a determinar os modos de vida urbano – principalmente aqueles vindos da tecnologia. O fio condutor da relação arte/indústria que caracterizara a pro- dução de arte local desde a década de 1950 expandiu-se sob várias formas e expressões da nova condição urbana, decantado pela experiência múltipla da cidade contemporânea.

O espaço da cidade passou a ser abarcado não só em suas dimensões físicas e materiais, mas também, e sobretudo, em suas dinâmicas sociais, culturais e políticas tecidas no e pelo território. As práticas artísticas agregaram cada vez mais camadas à medida que incluíram outros aspectos relevantes na

312 313 produção do espaço da cidade. Elas foram apreendidas na chave de uma ver-

tente contextualista renovada da arte.

Apesar da materialidade industrial ser ainda recorrente na produção ar- tística local, ela já não se encerra mais nela mesma, como elemento físico e construtivo da paisagem urbana. Sua recorrência vem agregando cada vez mais camadas que buscam problematizar outras instâncias – históricas, cul- turais, sociais e políticas. As dinâmicas da cidade mudaram e as questões urbanas tornaram-se mais complexas.

Para este estudo ainda, foi fundamental perceber que o ambiente con- temporâneo ensejado nos anos 1990 – com marcas de uma geração que pas- sou a produzir sob a ordem da globalização da cidade e da cultura – carregava reminiscências da problemática urbana surgida na transição dos anos 1960 para os 1970, quando a lógica da produção industrial foi aos poucos subs- tituída pela lógica da produção do espaço e a condição urbana passou a ser estruturante. Tal fato evidenciou ainda mais a importância de uma esfera de debate sobre a questão urbana atual.

Neste contexto, a produção do artista Rubens Mano surge em correspon- dência profícua com meus pressupostos teóricos acerca das transformações da cidade nas últimas décadas, especialmente aquelas verificadas em São Paulo. As leituras das obras aqui abordadas revelaram que a prática do artista tem se demonstrado atenta aos processos que a cidade vem sofrendo desde a passagem da década de 1980 à de 1990.

O embate exaustivo com poucas obras de Mano possibilitou extrair as evi- dências de suas inquietações (tanto urbanas quanto da própria esfera artís- tica) e exemplificar procedimentos recorrentes na arte contemporânea em geral. Dentre elas, sobressaíram alguns aspectos: o atravessamento entre fotografia e arquitetura, espaço e imagem de espaço; o reposicionamento do objeto artístico sob o viés da transversalidade, como obra-arquitetura e como obra-urbanismo; a dialética recorrente entre espaço projetado e espaço pra- ticado; a perspectiva do observador-perceptor na fruição artística enquanto experiência-obra; e a vontade de continuar a esgarçar as fronteiras entre o mundo da arte e o mundo extra-artístico.

Na prática artística de Mano, desde o início, evidenciou-se uma certa natureza nômade urbana, a partir da qual ele construiu um olhar (fotográ- fico) sobre a cidade. Essa vivência da cidade aos poucos vai apontando para um desejo de armar o trabalho de arte mais como experiência do que como objeto, tanto do ponto de vista do artista como do público. Ao longo da pes- quisa, percebeu-se que essa experiência como obra pode se dar tanto no momento mesmo de sua realização (na duração do tempo do trabalho, a exemplo de

detetor e vazadores) quanto como reminiscência (neste caso, projetada geral-

mente numa situação imersiva que abre espaço para a experiência do cor- po do sujeito, a exemplo de futuro do pretérito, ou mesmo quando essa abertura é dada pelo campo visual da fotografia, como em casa verde).

O embate com o urbano em Rubens Mano também se faz presente em boa parte da produção brasileira contemporânea, e tem marcado o trabalho de diversos artistas mais recentemente, tais como Marcelo Cidade e Clarissa Tossin. Mano surge, assim, como um exemplo modelar de enfrentamento operado por certas práticas artísticas recentes diante das questões urbanas que vem transformando os modos do viver nas grandes cidades. Obviamente, isso não quer dizer que a qualidade da arte que vem sendo produzida a par- tir de São Paulo é determinada por motivações advindas da questão urbana. Há certamente outros assuntos que mobilizam o artista hoje – a exemplo da própria historiografia da arte, do embate com meios e materiais, das novas tecnologias, do sujeito e sua subjetividade, e assim por diante. Esta tese bus- cou evidenciar apenas um de muitos movimentos da arte contemporânea produzida no meio urbano, especialmente o paulistano; aquele que se mos- trou mais intimamente interessado nas dinâmicas e nas contingências da experiência do meio urbano atual.

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