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No conjunto de obras tratadas no Capítulo 2 desta tese, o estudo das obras se concentrou inicialmente em proposições artísticas elaboradas por Rubens Mano que buscam “construir lugares dentro de lugares”. A ativação desses lugares supunha intervenções silenciosas transpostas para a fotografia, que procuravam ativar outras percepções sobre um dado contexto, tanto por parte do artista quanto do observador (perceptor). O processo de concepção dessas obras envolveu uma relação intrínseca entre arquitetura e fotografia, espaço e imagem. A construção de uma “imagem performática” se verificou na transposição fotográfica de uma ação do artista no lugar, por meio da qual Mano dava relevo a certas condições e certas camadas não explícitas no cotidiano da cidade.

Da reconstrução imagética do lugar – operada a partir de uma genealogia urbana intrinsecamente nômade – seguir-se-á para o estudo de três situa- ções análogas, porém distintas, em que a construção de lugares não se dá mais pela formulação imagética de uma intervenção num dado local, mas na experiência de duração da própria obra, percebida pelo observador no es- paço-tempo. A essas situações correspondem as três obras de Rubens Mano

detetor de ausências, calçada e vazadores, designadas aqui como “espaços em ato”;

elas se defrontaram com as circunstâncias espaciais, históricas e culturais de cada lugar em que se deram – fossem estas manifestas em escala urbana (da circulação metropolitana), em escala local (de vizinhança), ou em escala “institucional” (que corresponderia ao estatuto da própria arte).

Todas as três proposições espaciais foram concebidas para contextos es- pecíficos, que envolviam espaços públicos abertos. Assim, à primeira vista, elas filiam-se a um certo tipo de arte produzida a partir do lugar em que se ins- tala, que leva em consideração as características do contexto, e que emergira com grande intensidade nos anos 1960, naquele momento se contrapondo ao enrijecimento da autonomia da arte moderna. É desse período o surgimento da poética do site-specific work, que repôs o problema do lugar e do contexto em que a obra se dá, uma das questões fundamentais da arte contemporânea. De par com isso, as três proposições de Mano também estão impregnadas por um valor fenomenológico impresso na ativação da obra pelo observador, que

144 145 reporta igualmente à década de 1960, quando se verificou uma mudança es-

trutural do papel do observador na obra, enunciada, no caso brasileiro, pelos artistas Lygia Clark e Hélio Oiticica.

Apesar das filiações, o estudo minucioso das três proposições do artista revelará que tais prerrogativas dos anos 1960 e 1970 são insuficientes para abarcar os múltiplos sentidos das intervenções elaboradas por Mano, até por- que o panorama encontrado é outro. No contexto da produção contemporâ- nea, apesar de essas filiações ajudarem a entender certos desdobramentos da arte desde os anos 1960, elas limitam uma leitura mais comprometida com a singularidade da concepção, do fazer e do contexto estruturado pela obra – corroborando com as considerações tecidas por Ricardo Basbaum e Eduardo Coimbra, expostas na Introdução. Desde pelo menos meados dos anos 1980, fica difícil estabelecer categorias e/ou enquadrá-las em grupos ou movimen- tos (e este é, por certo, um dos desafios da pesquisa que se debruça sobre a produção contemporânea). Assim sendo, deu-se continuidade à valorização de um estudo aprofundado de cada proposição artística, considerando suas especificidades tanto espaciais quanto históricas, culturais e institucionais. As concepções de detetor de ausências, calçada e vazadores, obras realizadas respectivamente em 1994, 1999 e 2002, se deram em três situações análogas. Análogas porque envolveram trabalhos “comissionados”, quer a convite da instituição quer do curador, e foram concebidas a partir do contexto em que se implantaram, urbano e/ou institucional. Análogas também porque em todos os casos o trabalho pressupôs um envolvimento direto, corporal, do observador na experiência espaço-temporal da obra – podendo ser um espaço aberto na cidade ou situado no intervalo entre um espaço aberto e um espaço fechado (institucional). Em todos eles, é como se o espaço praticado encar- nasse o ato revelador de suas próprias circunstâncias existenciais.

São situações distintas porque cada proposição, a seu modo, foi mobili- zada por contextos institucionais e artísticos específicos, que implicaram diferentes negociações com as esferas pública e privada, do mundo artístico e extra-artístico, numa trama social e política complexa. Além disso, elas lidaram com escalas variadas no processo de elaboração, abarcando circuns-

tâncias locais, âmbitos institucionais especializados e contextos urbanos monumentais (não necessariamente nessa ordem nem excludentes entre si). E, nesse sentido, produziram resultados muito diversos, que implica- ram repercussões menos ou mais acaloradas no métier da arte contemporânea. A primeira delas, detetor de ausências, foi deflagrada pelo convite do curador Nelson Brissac Peixoto ao artista para participar da segunda edição do pro- jeto Arte/Cidade, inaugurada em setembro de 1994. Ao longo dos anos, a obra

detetor de ausências acabou se mostrando um divisor de águas na produção de

Rubens Mano, por representar um transbordamento do fato fotográfico em práticas artísticas mais expandidas. Ainda que suas proposições já viessem sendo construídas a partir de questões que emergiam da problemática da ar- quitetura, da cidade, da produção do espaço e do lugar, a partir daqui elas se dão na duração mesma de suas ações, convocando o público, ainda que sutil e silenciosamente, a tomar parte delas. Rubens se mostrará interessado não só em elaborar questões para além do “fotográfico” – em direção à superação da distinção entre linguagens artísticas (numa certa tendência à hibridiza- ção dos meios decantada dos anos 1980), como também em produzir fricções entre o campo artístico e o “extra-artístico”, no diálogo com outras discipli- nas do conhecimento.

A perspectiva contextual que orienta a atuação de Rubens a partir dos anos 1990 pode ser situada num panorama mais amplo, não só da produção local como da internacional, cuja década repôs um interesse pelo mundo real e pela construção de lugares diante das crescentes virtualidades do contem- porâneo.155 Um novo interesse pelo cotidiano é mobilizado por outros desa-

fios, distintos daqueles dos anos 1960 e 1970; aqui, o modo de vida produzido pela modernidade “incompleta” somara-se às distorções provocadas pelas

155 O interesse de certas práticas artísticas pelo real tensionara a nova condição urbana advinda dos processos de globalização, descritos por Lucrecia Ferrara nas metáforas do progresso e da moderni- dade: verticalidade, velocidade, grandes artérias impregnadas de movimento, apropriação anônima. Ferrara, op. cit., 1999, p. 55. Essas metáforas que descrevem o modo de vida nas cidades “globais” po- dem ser transpostas igualmente para São Paulo a partir da década de 1990.

forças econômicas da globalização dos mercados (verificadas tanto na arte quanto nas cidades), bem como pelos processos de financeirização das trocas culturais e simbólicas dali decorrentes.

Sobre esse novo ideal de aproximação entre arte e mundo cotidiano a par- tir da década de 1990, o crítico de arte Lorenzo Mammì considera que:

A arte já não pode reclamar autonomia, mas tampouco pode se apegar à fusão de arte e vida que deveria pretensamente substituir a autono- mia, porque a vida se tornou um conceito tão evanescente quanto a

arte ou, em todo caso, deixou de dialogar com ela.156

O que restaria à arte atual?, indaga o crítico. Aos olhos de Mammì, a quali- dade mais interessante da produção da arte contemporânea recente residiria na experiência enquanto obra. E é justamente a partir do tripé espaço, per- cepção e experiência que a obra de Mano tenderá a se desenvolver, expressa de modo exemplar nas três situações que serão aqui estudadas.

156 Mammì, op. cit., 2012, p. 113.