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Guardada as devidas proporções, a operação subtrativa de casa verde, proposta por Rubens Mano, pode ser aproximada aos building-cuts de Matta-Clark, espe- cialmente àqueles em que o artista nova-iorquino produz um atravessamen- to luminoso nos edifícios, tal como em Conical Intersect. A correspondência pode ser feita sob vários aspectos. Há procedimentos análogos operados por Mano desde as negociações necessárias para se encontrar um edifício e in- tervir neste, passando pelas ações subtrativas, até os registros produzidos ao final, fotográficos ou fílmicos. Em casa verde, foram meses buscando a dispo-

nibilidade de uma empresa de demolição e a melhor situação edificada para realizar a ação. Em Conical Intersect, foram meses de conversa com o grupo de curadores da Bienal de Paris para a qual o artista tinha sido convidado.

Inicialmente, a Bienal havia prometido à Matta-Clark um espaço de 30 metros quadrados, mas logo em seguida seus organizadores retrocederam, oferecendo apenas paredes do espaço museológico suficientes para expor uma documentação sobre a obra do artista. A partir daí, Matta-Clark passou a contar com o apoio do seu galerista em Nova York, Holly Solomon, da jo- vem marchand parisiense Gerald Piltzer e de Nina Felshin, curadora e ativista, responsável à época pelo andamento dos projetos dos artistas estadunidenses na mostra. Juntos, eles conseguiram pressionar a instituição para encontrar um novo lugar para a participação do artista, fora do museu. Meses depois, no dia 24 de setembro, a Société d’Économie Mixte (SEMAH), responsável pela renovação do bairro de Les Halles, contatou o artista e o autorizou ofi- cialmente a trabalhar com um assistente num edifício que seria demolido em breve, situado na rua Beaubourg (fig. 41).363

O endereço era mais que propício para o ativismo anarquitetônico de Mat- ta-Clark: uma construção abandonada em frente ao canteiro de obras do futuro “gigante metálico” Centre Georges Pompidou, projetado por Renzo Piano (fig. 42). A oferta, na verdade, consistia em dois sobrados geminados datados do século XVI, sem qualidades que “valessem” sua preservação. O conjunto arquitetônico era uma das últimas construções a serem varridas do bairro para ceder lugar ao novo Les Halles, que fazia parte do projeto político modernizante de De Gaulle para a capital parisiense. O artista teria até o dia 10 de outubro para fazer sua obra, ou seja, duas semanas; depois disso, os sobrados seriam postos abaixo pela SEMAH.364

Durante aquelas semanas, Matta-Clark e dois assistentes trabalharam no projeto e execução de cortes circulares que rasgariam paredes, pisos e tetos

363 Jenkins, op. cit., p. 7. 364 Ibidem.

FIG. 42 Gordon Matta-Clark.

Conical Intersect, 1975

Intervenção em edificação, rua Beaubourg 27-29, com o Centre Georges Pompidou em construção ao fundo, Les Halles, Paris (abaixo)

FIG. 41 Vista do local antes da

intervenção de Matta-Clark no edifício, rua Beaubourg 27-29, Paris (acima) Foto: Marc Petitjean

do conjunto edificado, a partir da fachada principal da rua em direção ao interior da construção (figs. 10 e 43). Desde Bronx Floors, passando por Splitting, a execução dos trabalhos era feita engenhosamente pelas mãos do artista, envolvido de corpo e alma na realização da obra (figs. 45 e 46).

Tal envolvimento corporal de Matta-Clark em suas intervenções arquite- tônicas foi igualmente interpretado por Corinne Diserens nos termos de uma performance:

Desafiando as leis da gravidade e cristalizando a proposição de uma energia vertical, Matta-Clark, de serra na mão, propôs com os recor- tes de Bronx Floors e depois com os magníficos “building-cuts” (cortes de

edifícios) um ato próximo daquele de Trisha Brown.365

Aqui, a curadora se refere às performances de Brown nas quais os corpos dos dançarinos se deslocam obliquamente em relação ao plano horizontal do chão, desafiando a distribuição do peso, a força que impede que eles caiam (gravidade) e a inversão do nível “zero” do chão.

As semanas heroicas trabalhadas no canteiro366 ininterruptamente

construíram uma espiral em contração, cujos círculos sequenciais iam de 4 a 2 metros de diâmetro no sentido de direção de fora para dentro (figs. 43 e 44). A construção subtrativa da espiral em contração possibilitou uma visão do interior do edifício ao transeunte que por ali passasse – tanto o passante incidental quanto aquele que vinha especialmente para ver a intervenção. A luz deveria vir desses buracos escavados pelo artista nas empenas dos edifícios, cujo resultado aproximava-se a uma “dramatização

365 Diserens, Corinne. O filme arquitetônico de Matta-Clark, Revista Tropico, 7 maio 2002. Disponível em: <http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/1095,1.shl>. Acesso em 25 set. 2017.

366 Nos últimos dias da execução de Conical Intersect, com o trabalho quase finalizado, Matta-Clark cedeu entrevista à jovem historiadora da arte Elisabeth Lebovici, em que relata o processo complica- do de realização da obra, desde as negociações à execução propriamente dita: “[foram] quinze dias no inferno, que não ocorreram sem uma considerável resistência” (“A fortnight in hell, it didn’t happen without considerable resistance”). Matta-Clark apud Jenkins, op. cit., p. 1.

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FIG. 43 Gordon Matta-Clark. Projeto

para Conical Intersect, 1975 Grafite e nanquim s/ papel, 19 × 26,3 cm (acima à esquerda) Coleção Centre Canadien d’Architecture, Montréal

FIG. 44 Gordon Matta-Clark.

Conical Intersect, 1975

(acima à direita) Foto: Marc Petitjean

FIGS. 45-46 Gordon Matta-Clark.

Conical Intersect, 1975

Imagens do processo de construção da obra, com o artista trabalhando. Fotos: Marc Petitjean

sem atores”, em que o artista combinava um ambiente estrutural à perfor- mance urbana.

A luz é outro ponto de interesse para se tecer comparações entre a prática de Mano e a de Matta-Clark. Se no caso brasileiro, ela tem origem no apren- dizado da fotografia e sua condição de realização (mesmo que precariamente, tal como visto em detetor), no caso norte-americano ela deriva do interesse pelo cinema, cuja natureza temporal é um valor evidente, impresso igual- mente na influência da dança em sua obra. O cinema, em Matta-Clark, cor- responderia à possibilidade de se vivenciar a experiência (espaço-temporal) urbana grandiosa, tal como em suas intervenções monumentais.

De acordo com Diserens, “a câmera acompanhou constantemente Gordon Matta-Clark em sua produção artística de 1971 a 1977, como uma ferramenta de exploração e experimentação que revela seu pensamento”.367 O artista che-

gou a produzir cerca de 20 filmes que, segundo a curadora, podem ser agru- pados em três categorias: os filmes-performances do início; os filmes e ví- deos de textura, em que explora o tecido urbano, a arquitetura e a paisagem de ruína; e os filmes de recortes de edifícios, em que documenta as fendas abertas na arquitetura. Neste último caso, donde inclui-se Conical Intersect, os filmes testemunham a importância da luz para Matta-Clark, ao documentar a exposição das entranhas desses edifícios ao fato luminoso, salientando o drama urbano de seus desaparecimentos.

Um fator determinante para o artista norte-americano na realização de suas intervenções era o grau com que elas podiam transformar a estrutura em “ato de comunicação”, ao abalar as paredes e fundações do edifício, metáfora comum para representar o mundo. Em Conical Intersect, a intervenção parodia- va a própria demolição em processo no bairro repaginado do futuro Pompidou.

Conical Intersect se destaca como a pedra fundamental na trajetória do

artista que trouxe uma criticidade presciente nos domínios da arquite-

tura moderna, que abraçou as dimensões sociais e políticas da arte e que tentou expandir os contextos e o significado de uma prática pós-

-minimalista.368

A complexidade de uma obra como Conical Intersect expunha ao mesmo tempo: a gentrificação de bairros tradicionais parisienses tomados como “obsoletos” na Paris de De Gaule (um movimento que se verificava não só na Europa, mas nas Américas); o ativismo político de boa parte de suas ações anarquitetônicas (contribuindo para o debate do período sobre a incorporação das preocupa- ções contextuais, sociais e comunitárias na prática artística); as negociações necessárias para realizar o trabalho estabelecidas com as pessoas envolvidas; e o caráter performático de suas atuações (por meio do qual o artista mergu- lhava de corpo e alma no trabalho) associado a uma “obra-ato”, ou o que o artista chamou de “ato de comunicação”.

Analogamente, casa verde (mas também bueiro) envolveu múltiplas cama- das sobre o contexto, expostas sob diferentes formalizações e temporalidades – desde a percepção sobre aquele fenômeno na cidade; passando pela habili- dade em negociar com a empresa de demolição a fim de alterar os processos; os deslocamentos perceptivos promovidos pela nova “construção” negativa, transversal ao fluxo normal das ruas; e finalmente o desbordamento da ação em fotografia, e tudo o que ela implicou na estruturação formal do campo imagético para a (re)construção do espaço. Em casa verde, Rubens acentua a visibilidade dos processos históricos e dialéticos de construção e reconstru- ção da cidade de São Paulo, bem como das práticas urbanas contemporâneas, ao construir uma obra- arquitetura capaz de alterar os processos em curso e dar relevo a um outro lugar dentro daquele lugar.

Ambos os artistas subvertem a lógica dos processos de apagamento na cidade – por meio de uma construção negativa – e fazem ver uma cidade não

368 “It is Conical Intersect that stands as the corner-stone in a career that brought a prescient criticality to the realm of modern architecture, embraced the social and political dimensions of art and attempted to expand the contexts and significance of a post-Minimalist practice”. Jenkins, op. cit., pp. 2-3.

visível em suas dimensões arquitetônicas, históricas e políticas. A fotografia e o filme passam a ser o trânsito entre a memória daquele lugar (arquitetura) e a transformação da paisagem (cidade). Para se falar da cidade e suas dinâ- micas, tomar de assalto o lugar e intervir neste de forma a ressignificá-lo espacial, temporal e esteticamente, a arte aqui prescinde dos rótulos publi- cizantes comumente adotados. A obra imprime a vibração do acontecimento artístico transgressor da lógica urbana moderna e permite que a performan- ce do artista se propague para além do tempo e do lugar em que se dá.