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“Desligar-se para saborear melhor a proximidade das coisas”.86 A frase é do so-

ciólogo francês Michel Maffesoli, autor que aparece como uma das referências teóricas importantes eleitas por Rubens Mano em sua dissertação de mestrado para pensar suas ações na cidade ao longo dos anos 1990. No livro Sobre noma-

dismo, publicado em 1997, o autor tratou de investigar a sociedade urbana, par-

tindo do pressuposto de que o ser urbano é por natureza nômade. Para ele, o caráter dialético da estrutura social (entre indivíduo e comunidade) se expres- saria no seu modo de vida urbana como enraizamento e errâncias. “Numerosas são as ocasiões de todo tipo em que se ‘soltam as amarras’, em que a pessoa se exila ou foge a fim de restituir o sabor àquilo que, sob pesados golpes da rotina, perdeu-o quase que totalmente”.87 É como se o cotidiano metropolitano intenso

anestesiasse qualquer tipo de relevo perceptivo por parte de quem o vivencia. A partir dos anos 1990, a arte contemporânea parece ter resgatado tal es- sência errática num ato de resiliência diante das acelerações da vida urbana promovidas em boa parte pelas contradições advindas da inviabilidade em se urbanizar pari passo com o crescimento das cidades, de um lado; e pela in- tensificação das trocas virtualizadas decorrentes dos avanços da tecnologia informacional, de outro. Este parece ser o caso de Rubens Mano. Ao longo da década, o artista realizou uma série de intervenções na cidade de São Paulo desencadeadas pela sua experiência de deslocamento no território paulistano. Neste primeiro capítulo dedicado ao estudo das obras de Mano (Capítulo 2), o conjunto de trabalhos que se apresenta reúne uma série de exemplares em fotografia produzidos entre meados dos anos 1990 e meados dos anos 2000, mobilizados pela experiência de deslocamento no território, a saber: bueiro, dis-

ponha, casa verde, entre e a série súbitas paisagens. Eles implicam ações realizadas

86 Maffesoli, Michel. Sobre o nomadismo: vagabundagens pós-modernas [1a edição 1997]. Rio de Janei- ro: Record, 2001, p. 77.

84 85 majoritariamente no espaço urbano, que problematizam os códigos e estrutu-

ras fundados em certos lugares, e que foram em seguida transpostas para a fo- tografia. A esse conjunto deu-se o nome de “imagens performáticas”, as quais carregam indícios das ações do artista realizadas no tempo-espaço da cidade.

A fim de desvendar a relação intrínseca entre os percursos realizados na cidade e a construção de lugares promovidos pelo artista, a pesquisa buscou recuperar os significados do caminhar e sua essência urbana nômade em práticas artísticas anteriores, que deixaram contribuições para a história da arte contemporânea.

Sabe-se que a invenção do caminhar pela cidade como experiência estéti- ca aparece desde os tempos baudelairianos, na Paris do século XIX, tendo na figura do flâneur sua maior expressão. No início do século XX, ela é explorada pelas vanguardas históricas, notadamente via dadaísmo e surrealismo. Po- rém, é na década de 1960 que a prática se intensifica e ganha estatuto de obra de arte. Algumas de suas abordagens destacam-se no período, a saber: para reestabelecer o sentido de pertencimento a certos lugares em busca de uma nova identidade do sujeito e do lugar, tal como na prática de deriva proposta pelos situacionistas; para afirmar a natureza tautológica do ato de andar, presente nos registros fotográficos de Richard Long (1945); para deflagrar a experiência do território urbano numa perspectiva discursiva, a exemplo dos passeios de Smithson; como fenomenologia do sujeito social, no caso do pro- grama ambiental de Oiticica; ou ainda como desencadeadora de ações que flertam com o ativismo político, em certos trabalhos de Matta-Clark.

No livro Elogio aos errantes, a arquiteta Paola Berenstein Jacques define essas experiências pelo território como errâncias urbanas. A especificidade da expe- riência errática das cidades é apresentada pela autora na seguinte passagem:

A experiência errática afirma-se como possibilidade de experiência urbana, uma possibilidade de crítica, resistência ou insurgência con- tra a ideia do empobrecimento, perda ou destruição da experiência a partir da modernidade, levantada por Walter Benjamin e retomada por Giorgio Agamben, que radicaliza a questão ao sugerir o que seria

uma expropriação da experiência. Mesmo vivendo um processo de es- terilização da experiência hoje, esse processo, que, no caso das cidades contemporâneas, seria o processo de espetacularização urbana, não consegue destruir completamente a experiência – o que se aplica espe- cialmente às cidades brasileiras –, embora busque cada vez mais sua

captura, domesticação, anestesiamento.88

Tal como o faz Jacques, é importante qualificar e singularizar a experiência urbana do nomadismo (ou do caminhar, como preferem outros) no contex- to das práticas artísticas. Sua genealogia implica uma recorrência quanto à tomada de posição crítica, muitas vezes de resistência mesmo, diante das transformações (segundo Jacques, “empobrecidas”) da vida urbana. Algo que aparecerá com frequência na obra de Rubens Mano, a ser visto adiante.

Diferentemente das errâncias surrealistas89 e das derivas situacionistas –

exemplos igualmente citados no livro de Maffesoli como nomadismo urbano –, cujas práticas do caminhar constituem uma experiência urbana reveladora em si, os deslocamentos realizados por Mano na cidade são um meio pelo qual o artista vai aos poucos lendo o território e se apropriando dele. Como tais, eles precipitaram intervenções na cidade, nas quais o artista reconfigu- ra certos lugares subvertendo seus usos e dinâmicas estabelecidos.

O conjunto de obras a ser investigado neste capítulo, portanto, diz res- peito às andanças de Rubens pela cidade, seu olhar sobre a paisagem, suas inquietações acerca da natureza do lugar e suas descobertas nos meandros do espaço urbano. À formação do arquiteto, à fotografia como dispositivo de lei- tura do território e à prática de deslocamento no fotojornalismo, vivenciadas por ele na década de 1980, somou-se a natureza errante do ser urbano. Jun-

88 Jacques, Paola Berenstein. Elogio aos errantes. Salvador: UFBA, 2012, pp. 19-20.

89 No livro Novas derivas, o curador e crítico de arte Jacopo Crivelli Visconti cita como exemplo dessas errâncias “[…] a célebre ação de Andre Breton, Louis Aragon, Max Morise e Roger Vitrac, que em 1924 deambularam vários dias sem rumo, a partir de uma cidade (Blois) escolhida ao acaso num mapa da França”. Visconti, Jacopo Crivelli. Novas derivas. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014, p. 23.

tas, elas conduziram o olhar do artista a experimentar a cidade de São Paulo com grande acuidade perceptiva, num processo investigativo desacelerado, a contrapelo da vida metropolitana, para descortinar a cidade em seus múlti- plos extratos, construtivos, paisagísticos, históricos e culturais, nas marcas e usos impressos em cada lugar.

A percepção da natureza dos lugares escolhidos por Mano para suas ações e a transgressão de códigos desses lugares – cujo movimento afirma e nega ao mesmo tempo – corresponde ao que Maffesoli identificou como antagonismo paradoxal de toda existência social e nomeou como “enraizamento dinâmi- co”. Se considerarmos a nova condição urbana das cidades pós-industriais, tal antagonismo poderia ser ilustrado nas figuras espaciais, cunhadas por Marc Augé, do lugar (lugar antropológico), que corresponde ao espaço pratica- do, e do não-lugar, este identificado numa existência desenraizada do sujei- to própria do mundo globalizado, erigido na década de 1990. Esses lugares são exemplificados por Augé nos espaços “lisos” e genéricos90 dos aeroportos

e shopping centers, mas também podem ser transpostos para situações de apagamento na cidade, onde bairros inteiros são demolidos, ou mesmo em situações de trânsito, como grandes avenidas expressas.

Porém, diferentemente de Augé, em Maffesoli elas são explicitadas como experiências dialéticas inevitáveis e, por isso mesmo, complementares. “Todo mundo é de algum lugar, e crê, a partir desse lugar, ter ligações, mas

para que esse lugar e essas ligações assumam todo o seu significado, é preci- so que sejam, realmente ou fantasiosamente, negados, superados, transgre- didos”,91 semelhantemente ao movimento realizado por Mano, sobre o qual

serão tecidas as análises a seguir.

90 Em Rem Koolhaas, por exemplo, o autor as identifica na qualidade “genérica” da cidade, ou melhor, de partes dela, percebidas principalmente em suas “bolhas” empresariais, regiões desconectadas do tecido urbano, caracterizadas por volumetrias espelhadas que acondicionam um microclima artificial, possibilitado pelo uso indiscriminado do ar-condicionado. Cf. Koolhaas, Rem. Grandeza, ou o proble- ma do grande [1994]. Três textos sobre a cidade. Barcelona: Gustavo Gili, 2010, pp. 13-27.

91 Maffesoli, op. cit., p. 79.