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Numa perspectiva renovada dos lugares da arte, sob um diálogo destemido com a cidade, a curadora e crítica de arte Lisette Lagnado atribuiu ao projeto de Nelson Brissac a sua devida contribuição para o debate artístico do período. Segundo ela:

179 Ibidem, p. 17. 180 Ibidem, p. 25.

181 O tema da cidade cindida e da sua crescente virtualidade é problematizado em diversos trabalhos de artistas brasileiros produzidos a partir de 2000, desde a utilização de câmeras de vigilância a voos de helicóptero que aludem à desrealização da cidade e à deslocalização da experiência do sujeito. Um desses exemplos também surge na produção de Mano, com a obra contemplação suspensa, um vídeo em loop realizado a partir de um sobrevoo por São Paulo (cidade que concentra a segunda maior frota de helicópteros do mundo, perdendo apenas para Nova York ).

A produção do evento Arte/Cidade trouxe todas as gradações teóricas que pontuam o debate sobre a pós-modernidade: a ruptura da obra com o mercado de consumo e sua consequente inserção no espaço urbano, a questão do deslocamento do público, novas tecnologias e interdisciplinaridade, a desmaterialização da arte e a construção de

“objetos específicos”.182

Não se tratava, assim, de uma simples exposição de obras de arte, mas de um projeto interdisciplinar audacioso, que envolveu diferentes profissionais em constantes conversas com os artistas convidados, no intuito de promover discussões e reflexões sobre a cidade, cujos resultados seriam apresentados ao público por meio de intervenções artísticas.

Ao abrir-se às contingências da cidade, no momento em que São Pau- lo vivia um novo ciclo de destruição e reconstrução operado pelo mercado imobiliário e pelos novos modelos de parceria público-privado, o Arte/Cidade buscou no tecido urbano, em suas diferentes dinâmicas e configurações sócio-espaciais e históricas, o impulso mobilizador da produção artística.

Lidar com as contingências de uma grande metrópole aportava à arte con- temporânea um novo sentido ampliado que tensionava os limites do fazer e da produção artística. Intervenções urbanas como as do Arte/Cidade não se resumiam à ocorrência da arte “na rua”, tomando o espaço público exclusi- vamente como suporte. De acordo com o curador, o que estava em jogo era

o fato de que ela envolve um espectro maior de situações. E enfrentá- -las exige maior riqueza de aportes, um diálogo mais amplo, lidar com um número maior de tensões do que no trabalho em locais, institucio-

nais ou não, já destinados a uma atividade artística.183

182 Lagnado, Lisette. Arte/Cidade: a cidade e seus fluxos, Trans, vol. 1, n. 1, primavera 1995, p. 118. 183 Peixoto, op. cit., 2006, pp. 487-488.

164 165 O próprio conceito de espaço público, segundo Brissac, estava em crise, uma

vez que “numa cidade onde não se sabe mais o que é público, o que é privado, fomos alienados do espaço público que, na verdade, é um espaço de guerra”.184

Para ele, portanto, a arte do tipo “intervencionista” poderia ajudar a nos re- lacionarmos com essa situação-limite da cidade contemporânea, ao contri- buir “para redefinir o espaço urbano e criar novas tramas com a arquitetura, o urbanismo e as situações sociais ao redor”.185

Do ponto de vista do filósofo Laymert dos Santos:

O propósito de interferir artisticamente no espaço urbano sugere a existência de uma crise intensa que afeta o homem contemporâneo e seu habitat. A Arte na Cidade é ao mesmo tempo a designação dessa crise e a elaboração de uma resposta possível para a sua percepção e

entendimento.186

O projeto de intervenções urbanas também repunha o problema do lugar da arte na cidade ao reintegrar, segundo Lagnado, de forma contemporânea “a expressão estética da cidade com seu manifesto político – uma antítese fundamental para demovê-la da velha ideia de ocupação pública através de monumentos”.187 O ponto de vista da crítica não deixa de coincidir com a

perspectiva do curador sobre a natureza de uma intervenção artística, que substitui a ideia de “monumentum erguido pela cultura institucionalizada” por um acontecimento, um “momentum da criação artística”.188

184 Ibidem, p. 489. 185 Ibidem.

186 Santos, Laymert Garcia dos. A arte na cidade: entre a deslocalização e o deslocamento. Peixoto, Nelson Brissac (cur.). Arte/Cidade: a cidade e seus fluxos (Catálogo de exposição). São Paulo: Marca d’Água/Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, 1994, s.p.

187 Lagnado, op. cit., p. 119. 188 Peixoto, op. cit., 2006, p. 492.

Essa reintegração estética da cidade passaria também pela provocação curatorial do projeto em fazer com que São Paulo visse a si própria, como aponta Lorenzo Mammì em texto crítico escrito na ocasião.

À diferença de Rio e Salvador (para não falar das metrópoles europeias ou norte-americanas), São Paulo é uma cidade cega, que não vê a si mesma. O grande mérito do Arte/Cidade é remexer nessa cegueira, cutucar a amnesia coletiva, não tanto de um ponto de vista do docu-

mentário, mas no plano do imaginário.189

Portanto, o projeto de Brissac carrega em si dois aspectos caros aos anos 1990: provocar nossa percepção para situações que não se revelam mais apenas à apreensão visual in loco, ao considerar os processos de reestruturação metro- politana e global das cidades; e ao mesmo tempo contrapor-se à apropriação institucional e corporativa dos espaços urbanos e das práticas artísticas.

Apesar de Arte/Cidade ter reunido artistas de peso, uma parte da crítica considera que as ambições do projeto de Brissac tenham fracassado no sen- tido de provocar esses artistas a se deslocar de seus cômodos lugares de pro- dução, comumente praticados no isolamento em seus ateliês, e enfrentar a cidade em suas dinâmicas e transformações que implicam uma nova condi- ção contemporânea da vida urbana. Os posicionamentos de Lorenzo Mammì e Alberto Tassinari, por exemplo, consideraram que a maioria dos trabalhos parecia por demais ilustrativa de uma situação urbana, reduzindo-se por ve- zes uma apropriação kitsch do contexto e um comentário banal sobre ele.

Seria a arte capaz de se fazer no tempo e no espaço da cidade sem que pareça uma ilustração de suas condições de vida ou mesmo caia num deco- rativismo gratuito? Será que a obra se enfraquece ao restringir-se ao espaço expositivo legitimado? O desafio de Brissac se colocava, muitas vezes, no sentido de refundar uma relação mais “verdadeira” e pregnante entre a arte

e a cidade. Como intervir nessa escala imensa que impede toda e qualquer localização?, se pergunta o curador.

Para aqueles artistas contemporâneos que vivem em megalópoles nas quais as arritmias da produção industrial e dos sistemas de comuni- cação são mais alarmantes, trata-se de tirar partido destas contradi- ções, atuando sobre as diferenças, os intervalos e as desproporções

do sistema.190

Além da crítica aos trabalhos em si, surgiram alguns questionamentos so- bre uma possível aderência política do projeto em relação aos processos que a capital paulista vivenciava no período. Uma parcela da crítica calçou seus argumentos no fato de o projeto Arte/Cidade estar originalmente ligado ao go- verno estadual, por meio de um convite da Secretaria de Cultura a Brissac. Segundo eles, o envolvimento do poder público poderia se explicar pelo in- teresse em apropriar-se de manifestações artísticas e culturais com vistas a promover a cidade. De fato, esse movimento existiu em diversas situações no mundo da arte contemporânea, e teve um forte impacto nos anos 1990, quando as cidades passaram a disputar simbolicamente uma posição de des- taque na economia globalizada.

190 Peixoto, op. cit., 1997, p. 80.