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60 61(o non-site).51 O caderno de viagem do artista traz sua versão sobre o signifi-

PRÁTICAS CONTEXTUAIS: O ESPAÇO E O LUGAR

60 61(o non-site).51 O caderno de viagem do artista traz sua versão sobre o signifi-

cado dos subúrbios norte-americanos produzidos pela industrialização – o que Lefèbvre apontara como a relação campo-cidade a partir da centralidade urbana (neste caso, entre Passaic e Nova York) –, e como o duplo processo in- dustrialização-urbanização produziu o negativo de cidade, edificada em sua gênese como ruína. Esse par antagônico seria fruto de uma mesma gênese, a que Smithson chamaria de entropia. Aos olhos do artista, aquelas ruínas se apresentavam como futuros abandonados: “estou convencido de que o futuro está perdido em algum lugar nos depósitos de lixo do passado não histórico; está nos jornais de ontem, nos anúncios insípidos de filmes de ficção cientí- fica, no falso espelho de nossos sonhos rejeitados”.52

A paisagem que Smithson constrói a partir da experiência de Passaic pode ser tomada como uma operação artística-crítica sobre as heranças do mundo moderno industrial e como elas podem ser apreendidas simbolica- mente em sua “beleza”, reconstruídas pela experiência como monumentos. Invertendo a sensibilidade romântica sobre a ideia de ruína, pela qual o tempo se encarrega de construí-la, o artista toma a paisagem suburbana industrial como negativo de cidade, no qual os elementos prosaicos que sustentam o projeto de modernização do local passam a ser personagens de um filme de ficção científica roteirizado pelo artista.

No Rio de Janeiro, no final dos anos 1970, Hélio Oiticica promove algu- mas manifestações de rua, sob o título de Delirium ambulatório, as quais expri- mem sua postura totalmente disponível à imprevisibilidade do caminhar, quer este seja pelos morros e favelas, quer pela cidade formal,53 onde o acon-

51 Smithson elaborou o conceito de non-site a partir de sua própria prática artística, vindo da neces- sidade de transpor seus projetos de terra para espaços fechados (galerias). O artista procurou criar extensões entre o lugar no qual se situa a obra e os elementos (mapas, desenhos, fotografias, filmes, anotações…) que, deslocados do contexto original, a completam e possibilitam sua extensão espaço- -temporal. A obra passa a ser tanto a intervenção na paisagem (site) como o conjunto de elementos

que a reconstrói dispostos na galeria (non-site). 52 Smithson, op. cit., p. 167.

53 Favaretto, Celso. A invenção de Hélio Oiticica. São Paulo: Edusp/Fapesp, 2000, p. 221.

tecimento estético se colocou à mercê do outro e da cidade. Oiticica reali- za três exercícios de “delírio ambulatório”: em 1978, durante o evento Mitos

vadios, organizado por Ivald Granato num estacionamento da rua Augusta,

como uma paródia às bienais; em 1979, no Caju, nomeado como Kleemania ou Devolver a terra à terra; e, em 1980, no morro da Mangueira, intitulado Es-

quenta pro Carnaval.

Sobre a “performance” que Oiticica realizou em São Paulo, em 1978, du- rante o evento Mitos vadios, o crítico de arte Frederico Morais escreve:

Oiticica trouxe para São Paulo, seus “fragmentos-tokens” (asfalto da avenida Presidente Vargas, terra do morro da Mangueira, água da praia de Ipanema, objetos de bazares da “rua Larga”) e, como estímu- lo ao seu deambular crítico-criativo, vestiu-se com sapato prateado de salto alto, camiseta dos Rolling Stones debaixo de um blusão cor-de- -rosa, sunga, óculos de mergulhador e peruca feminina. Foi assim,

com essas roupas e tokens cariocas, que se intrometeu no evento pau-

lista, pura vadiagem artística.54

Se os penetráveis concebidos nos anos anteriores, tais como Tropicália e Éden, sintetizaram a sua experiência do vivido nas ruas do Rio de Janeiro, transpos- ta ao observador-participante como um percurso psicossensorial (impregna- dos de sensações visuais, táteis e sonoras), os acontecimentos poético-urba- nos do final da década – seja pelas ruas dos morros ou da cidade formal – não propõem nada, segundo o crítico de arte Celso Favaretto, a não ser uma “pura disponibilidade criadora”, totalmente disponível à imprevisibilidade.55

Sobre eles, Oiticica diz:

Eu descobri que a relação da rua com o que faço é um coisa que eu

54 Frederico Morais apud Favaretto, op. cit., p. 225. 55 Favaretto, op. cit., p. 221.

sintetizo na ideia do Delírio ambulatório. O negócio de andar pelas ruas é uma coisa que, a meu ver, me alimenta muito e eu encontro. […] O delírio ambulatório é um delírio concreto. Quando eu ando ou proponho que as pessoas andem dentro de um Penetrável com areia e pedrinhas, estou sintetizando a minha experiência da descoberta da rua através do andar, do espaço urbano através do detalhe do andar, do detalhe síntese do andar. […] Todos os espaços do Rio de Janeiro têm pra mim um significado concreto e vivo, um significado que

gera essa coisa que eu chamo de delírio concreto.56

A reposição do problema do lugar implicava igualmente a retomada de vín- culos imediatos com a vida. O desejo de vivenciar os espaços da cidade, de experimentar o vivido na cidade, parece ser um dos aportes mais poten- tes da atitude poética-crítica de Oiticica no final da década. É a partir da posição totalmente disponível à experiência do lugar como lugar praticado (tomando a cidade na sua dimensão social, das relações e da reunião) que o artista ativa as potencialidades desse espaço social. Segundo De Certeau, a figura do pedestre seria a única posição possível para transformar a rua, concebida geometricamente pelo urbanismo, em espaço praticado.57

A invenção do caminhar na cidade como prática desenvolvida por vários artistas58 adquiriu sentidos diversos – fosse para reestabelecer o sentido de

pertencimento a certos lugares em busca de uma nova identidade do sujeito e do coletivo, tal como nas práticas de deriva desenvolvidas pelos situacio- nistas; fosse para deflagrar a experiência urbana em ações que flertam com o ativismo político, tal como aparece em trabalhos de Gordon Matta-Clark. Paralelamente, a reconstrução desses andarilhos instaura um novo conflito, da ordem da formalização dos trabalhos: como transformar a experiência em

56 Hélio Oiticica apud Favaretto, op. cit., p. 224. 57 Certeau, op. cit., p. 202.

58 A prática estética do caminhar será abordada mais detidamente no Capítulo 2 desta tese, à luz da concepção de nomadismo urbano elaborada pelo sociólogo francês Michel Maffesoli.

obra? Para muitos deles, a ação era mais importante que o registro.

Antes mesmo da geração 1960, um grupo de escritos e artistas reunidos na França passou a praticar caminhadas na cidade como método para rein- ventá-las. O movimento situacionista, encabeçado por Guy Debord, tinha como fundamentos estéticos três estratégias criativas básicas: o détournement, a psicogeografia e o urbanismo unitário. A prática da deriva59 se apresenta como uma

técnica de passagem rápida por ambientes variados, e estava ligada ao reco- nhecimento de efeitos “psicogeográficos” (manifestados pela ação direta do meio geográfico sobre a afetividade) e à afirmação de um comportamento lúdico-construtivo, oposto às tradicionais noções de viagem e passeio.

De início, o grupo propôs uma arte diretamente ligada à vida; porém, aos poucos perceberam que essa “arte integral” seria basicamente urbana e deveria estar em relação direta com a cidade e com a vida urbana em geral.

Em um primeiro momento, essas investigações propriamente urba- nas se referiam à experiência da cidade existente – através de novos procedimentos e práticas: psicogeografia e derivas – mas também à utilização dessas experiências como base para uma proposta de cidade situacionista. […] À medida que os situacionistas afinavam suas ex- periências urbanas, eles abandonaram a ideia de propor cidades reais e passaram à crítica feroz contra o urbanismo e o planejamento em geral. […] Qualquer construção dependeria da participação ativa dos cidadãos, o que só seria possível por meio de uma verdadeira revolução

da vida cotidiana.60

Para os situacionistas, o ato de andar se colocava como um ato social e po- lítico, em potencial. De acordo com o pensamento de Lefèbvre sobre o valor

59 A Teoria da Deriva foi lançada pelos situacionistas em 1958, por meio da qual o grupo estabeleceu as bases da nova prática. Cf. Debord, Guy. Teoria da deriva. Jacques, Paola Berenstein (org.). Apologia da

deriva: escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003, pp. 87-91.

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