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O convite para participar do Arte/Cidade 2 representou a oportunidade para Rubens de, pela primeira vez, incidir diretamente no dia a dia da metrópo- le, como um acontecimento em si. Para tanto, Mano elegeu o Viaduto do Chá como situação disparadora para elaborar sua proposição. Na descrição do projeto, Mano definiu aquele lugar como um “eixo visível de um intenso cruzamento entre homens e máquinas”.200 A intervenção urbana (ou “inter-

ferência”, como prefere nomear o artista neste caso)201 consistiu em um dis-

positivo luminoso que atravessava o viaduto perpendicularmente ao fluxo normal de automóveis e pedestres. À noite, os fachos de luz delimitavam alternadamente as silhuetas de quem por ali passava desapercebido. A obra, assim, se instaurava na duração de um acontecimento espaço-temporal, que só se completaria pela experiência do atravessamento dos raios luminosos.202

O dispositivo criado por Rubens era composto de dois grandes holofotes de 12 mil watts de potência cada, instalados em ambos os lados do viaduto. Apoiados sobre torres de 13 metros de altura, a partir do nível do vale, os cilindros emitiam fachos de luz paralelos, de 1,5 metro de diâmetro, que cru- zavam perpendicularmente o caminho dos carros e dos pedestres no viaduto. As fontes luminosas foram posicionadas em sentidos opostos, fazendo com que a luz se propagasse pela paisagem do vale e se dissipasse na imensidão da cidade, ao fundo.

200 Rubens Mano apud Santos, op. cit., 2004.

201 Apesar de Mano fazer uma distinção entre intervenção e interferência – tomando esta como a adição de um dispositivo temporariamente, sem alterar o espaço fisicamente –, optei por utilizar o termo intervenção para as três situações propositivas analisadas neste eixo, uma vez que todas me pareceram mais afirmativas do que ruidosas, já que potencializam a percepção de questões imbri- cadas naqueles contextos. Em sua dissertação de mestrado, intervalo intransitivo, o artista optou por não abordar detetor de ausências em suas análises do período, justificando que este teria um caráter de “interferência”, mais que intervenção. Aqui, porém, ele será tomado como um desdobramento entre o

olhar fotográfico e a ação “intervencionista” no mesmo espaço-tempo do espectador.

202 Essa dimensão é à primeira vista próxima à experiência fenomenológica das proposições de mui- tos artistas de vanguarda dos anos 1960 e 1970, tais como Donald Judd e Hélio Oiticica; no entanto, ao longo dessas análises veremos que a dimensão utópica se perdeu, restando um espaço imanente, na experiência da vida urbana.

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FIG. 18 Detalhe do conjunto de equipamentos que acompanhavam os refletores militares. Foto: Rubens Mano.

FIG. 19  Teste com o refletor militar no 

litoral paulista, 1994. Foto: Rubens Mano.

Lidar com tal escala metropolitana não é uma tarefa simples. O desafio foi em parte vencido por Rubens ao encontrar em equipamentos militares a calibragem ideal para intervir num lugar tão fluido e impreciso, como o Viaduto do Chá, de intensa circulação e ao mesmo tempo incrustado no vazio urbano do vale. Em sua habilidade para negociar com diferentes agentes e fornecedores, sugerida desde a viagem às terras andinas, Mano convenceu o Exército brasileiro a emprestar dois holofotes (fig. 18) utilizados na II Guerra Mundial para identificar aviões em ataque.203

Na oportunidade de falar sobre seus trabalhos, durante o encontro “Tropico na Pinacoteca”, organizado pela revista Tropico e pela Pinacoteca do Estado de São Paulo, em maio de 2002, e que reuniu, além de Rubens, o filósofo Celso Fava- retto e a crítica de arte Lisette Lagnado em torno do tema É possível hoje uma crítica

institucional?, o artista projetou imagens dos testes que havia feito com os holo-

fotes militares no litoral paulista à época (fig. 19). No relato sobre o encontro, Fernando Oliva comenta tal projeção como uma “obra à parte”: “em ambiente lunar, espécie de cenário para uma ficção científica contemporânea, Mano e seus assistentes aparecem próximos a um caminhão, que tem na caçamba um dos projetores, lançando em direção ao céu um gigantesco raio de luz branca”.204

Rubens conta que, além dos holofotes, foi preciso correr atrás das lâm- padas disponíveis no mercado; consegui-las foi, segundo o artista, o grande diferencial do projeto:

Era uma peça rara e cara. Aqui no Brasil só existiam quatro, custavam U$ 1.500,00 cada uma, e eu não conseguiria comprar com o dinheiro do projeto. Mas ao convencer a Osram a me ceder duas dessas lâmpa- das, sendo que usaria somente a metade da vida útil delas, fiquei com

203 Na ficha técnica da obra, publicada no livro Intervenções urbanas: Arte/Cidade, organizado pelo curador Nelson Brissac Peixoto, em 2002, consta que o artista foi buscá-los na base militar de Praia Grande.

204 Oliva, Fernando. A discussão que reuniu o artista Rubens Mano e os críticos Celso Favaretto e Lisette Lagnado, Tropico, seção “Em obras”, 2002. Disponível em: <http://p.php.uol.com.br/tropico/ html/textos/1254,1.shl>. Acesso em 6 dez. 2017.

uma ótima moeda de troca para oferecer a alguma outra empresa. E foi dessa maneira que eu consegui com que a Quanta me emprestasse

os ballasts, os cabos, e os estabilizadores.205

Com isso, o único gasto durante a produção do trabalho foi com a construção das torres para suspender os projetores. Essa característica de envolver e ar- ticular diversos profissionais para a realização da obra – por meio da elabora- ção de uma argumentação e da construção de uma parceria que culmina no projeto executado – é projetada pelo artista como um procedimento análogo ao urbanismo, obra como urbanismo, onde certas possibilidades dependem do deslocamento para além do artístico, do pensar e fazer arte.

O entendimento de Mano sobre o significado ampliado de sua obra coin- cide, de certa forma, com o que Brissac pretendia instaurar com o projeto

Arte/Cidade: um novo lugar de atuação do artista e a realização da obra como

“pretexto” para se ampliar os horizontes da prática artística contemporânea, envolvendo “um espectro maior de situações”, “uma maior riqueza de apor- tes”, “um diálogo mais amplo” ao lidar com “um número maior de tensões” em relação a contextos já destinados a uma atividade artística.

A obra detetor de ausências, tal como outras realizadas nessa mesma edição do Arte/Cidade, partiu da luz como matéria fundante, por meio da qual o artis- ta reconfiguraria a experiência daquele lugar. Por sua natureza, a obra fun- cionaria em sua máxima potência no período noturno. Até mesmo a ilumi- nação pública da Eletropaulo foi rebaixada para se criar a condição ideal de realização do trabalho.206 Durante a noite, ao atravessar os fachos luminosos,

o transeunte tinha seu contorno demarcado instantaneamente, sem que ao menos houvesse tempo para que sua sombra fosse projetada. A obra se refa- zia a cada passante, numa alternância luminosa entre ausência e presença.

205 Trecho extraído da entrevista realizada em seu ateliê, em 3 de agosto de 2015.

206 Consta da ficha técnica da obra, publicada no livro Intervenções urbanas: Arte/cidade, organizado por Brissac em 2002, agradecimentos à Eletropaulo, o que confirmaria a colaboração entre a empresa e o artista.