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No Brasil, a modernidade tardia forjada na construção de Brasília produziu imagens sedutoras de futuro, fazendo coincidir na mesma vontade criadora o projeto nacional desenvolvimentista idealizado por JK, a concretização de um autêntico protótipo da cidade funcional modernista e um espírito can- dango que abraçou o moderno como um “campo de experimento e risco” pelo qual era possível imaginar um futuro diferente. Ao longo dos anos, essas imagens sedutoras foram aos poucos sendo tensionadas: de um lado, pelas controvérsias ideológicas impressas na origem do projeto político da capital federal, tido como totalitário e segregador; de outro, pelas forças de resis- tência surgidas no próprio cotidiano da cidade vivenciadas no espaço público. A Brasília vista pelo olhar de Rubens Mano expõe justamente esses dois lados, frutos do mesmo processo histórico, dissolvendo-os mutuamente, mas não no sentido de enfraquecê-los, e sim de modo a fazer perceber o quão intimamente ligados e interdependentes eles são.

É assim que futuro do pretérito surpreende as expectativas de um admira- dor de Brasília. Mano imprime no espaço-tempo da obra indícios de uma cidade iconoclasta (a civitas), que aparecem sempre ao fundo do cotidiano mais ordinário do plano piloto (urbs), relativizando a planificação e a fun- cionalidade de sua natureza moderna. O que seria a regra na oficialida- de dos espaços preservados pelo tombamento – um aspecto organizado e grandioso – aparece levemente contaminado por improvisações, sujeiras e irregularidades.

De modo inverso, nas tomadas feitas nas cidades-satélites, a expectati- va de uma paisagem urbana precária – que se reproduz organicamente e de modo desordenado – é vez ou outra confrontada por enquadramentos com edifícios habitacionais de feições modernistas, elementos icônicos da arqui- tetura dispersos, bem como uma certa regularidade na organização da vizi- nhança, percebida na implantação dos edifícios no lote, ou mesmo numa sequência de canteiros verdes nas calçadas. Esses elementos dissonantes que se insinuam na paisagem das cidades-satélites e se inscrevem nas suas edifi- cações revelam, segundo Laymert, “um esforço, frequentemente involuntá- rio e impensado, de atualização e um desejo, talvez até mesmo inconsciente, de modernização, […] um movimento de afirmação otimista, voltado para o futuro”.345 Exatamente o que Holston salientara como o “espírito de Brasília”

expresso nos viveres candango.

Opostamente, na edição das imagens do plano piloto, tais “interferências” trazem uma conotação mais “real” aos espaços públicos e abertos da cidade, e nesta justa medida transformam o espaço geométrico traçado pelo arquiteto em

espaço praticado. A forma híbrida da fotografia videografada corrobora ainda

mais nesse sentido, pois deixa que o tempo transcorrido atue na transforma- ção daquele espaço que está congelado pela preservação. Nos detalhes mais sutis, o artista aponta que não se pode conter a vitalidade das ruas, mesmo numa cidade tombada como Brasília. Ao ler o espaço como um lugar, Rubens questiona até que ponto é possível preservar uma cidade condenada ao moderno, ainda em construção (lembrando que Brasília foi o primeiro ícone do século XX a entrar para a lista de Patrimônio Mundial da Unesco, em 1987).

Ao buscar investigar o tipo de vida citadina ensejada no espaço público da capital, o artista reconstrói pelo olhar videográfico um espaço-tempo que se recusa a ser passado, e que é ao mesmo tempo refém de um tempo promissor que não ocorreu e refém de um espaço congelado pela sua patrimonialização. Uma espécie de futuro do pretérito presentificado. É este o conflito tempo-

345 Santos, op. cit., p. 234.

ral que a obra de Mano inscreve. (Curiosamente, essas mesmas impressões temporais conflitantes surgem na crônica de Clarice e confundem a autora ao longo de sua escrita: “Noto aqui um acontecimento que me espanta: es- tou escrevendo no passado, no presente e no futuro. Estarei sendo levitada? Brasília sofre de levitação”.)346

Em futuro do pretérito, por mais lento que seja o tempo transcorrido no es- paço urbano – o que dá uma sensação de presentidade constante –, a obra insiste em apontar a possibilidade de transformação daquele espaço, não no sentido de um futuro promissor, mas de uma atuação de seus habitantes so- bre o território, mesmo que mínima e sutil, capaz de “descongelar” Brasília no tempo e no espaço.

Ao longo das décadas, a construção de uma modernidade tardia no Bra- sil decantou um certo amolecimento de suas prerrogativas funcionalistas diante dos imperativos do ambiente subdesenvolvido. E, nesse sentido, a ca- pacidade transformadora de certos moradores anônimos de Brasília surgem como um valor na obra de Mano.

As ambiguidades de Brasília que o artista percebe e faz conviver tanto no plano piloto quanto nas cidades-satélites poderiam ser atribuídas a uma nova crítica surgida nos últimos anos, que tem olhado para as mudanças de significado da esfera pública, expressa nos espaços abertos das cidades contemporâneas.

Em 2014, Mano foi convidado pelo curador Marcio Harum, então responsável pela Divisão de Artes Visuais do Centro Cultural São Paulo, a realizar uma exposição naquele centro cultural, programada para acontecer simultanea- mente à mostra dos artistas selecionados do Programa de Exposições 2014. Como artista convidado, Rubens teria certa liberdade para escolher o local de sua proposição.

Na ocasião, Rubens relatara que há tempos aguardava uma oportunidade para propor um trabalho endereçado àquele lugar. O leitmotiv ele já tinha: as iniciais “RB” inscritas nos tijolos cerâmicos que forravam uma das paredes da biblioteca do CCSP. Servindo mais como elemento de revestimento do que como elemento estrutural, os tijolos foram assentados com a face interna voltada para a frente, de modo que era possível ler suas inscrições. No pro- jeto original do edifício, inaugurado em 1982, seus autores – os arquitetos Eurico Prado Lopes e Luiz B. Telles – não mencionam o significado daquelas iniciais; sabe-se apenas que a dupla usou materiais de acabamento diversos com a intenção de criar “uma multiplicidade de elementos e variantes que pudessem promover interesses e emocionar o usuário”,347 conforme escreveu

Telles décadas mais tarde.

Na proposta encaminhada à curadoria, Rubens menciona os tijolos como disparador para a concepção do trabalho:

o trabalho está relacionado a um episódio associado à construção do Centro Cultural São Paulo [o erguimento de uma parede de tijolo à vista – presente em uma das laterais da biblioteca], e se articula ao redor de duas ações conexas [concomitantes e indissociáveis]. sendo que ambas se valem da ressignificação de um elemento básico relativo ao episódio citado: o tijolo cerâmico. esta parede – com aproximada- mente 100 metros de comprimento – não tem função estrutural, e foi

347 Telles, Luiz B. Centro Cultural São Paulo: um projeto revisitado. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2002, p. 297.

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construída com a intenção de prestar homenagem ao então prefeito da

cidade de São Paulo, Reynaldo de Barros [1979-1982].348

A postura inquisitiva do artista aparentemente tinha desvendado o mistério, pelo qual as iniciais “RB” prestavam uma homenagem ao ex-prefeito Rey- naldo de Barros. Barros inaugurou o centro cultural no dia 13 de maio de 1982, dois dias antes de desligar-se da prefeitura para concorrer a governa- dor do estado. Ao seu lado, estava o secretário municipal de cultura Mario Chamie. O poeta Chamie foi uma das figuras fundamentais na concepção do complexo cultural de escala metropolitana; segundo ele, o equipamento público deveria voltar-se a todos os munícipes, sem distinção de classe, ida- de ou gênero.349

Durante a pesquisa para o desenvolvimento do trabalho, Mano se depa- rou com o relato de uma antiga funcionária do CCSP; segundo esta, a ideia original dos arquitetos era compor a parede da biblioteca com referências a diversas olarias do entorno paulistano, formando um grande mosaico de iniciais. Ao final, como notou o artista, a parede levou as iniciais do prefeito. Sua execução envolveu uma operação fabril de cerca de 50 mil tijolos marca- dos em alto relevo com as letras “RB”.

348 Trecho do projeto encaminhado à curadoria do Centro Cultural São Paulo para a realização do conjunto de obras intitulado imanente.

349 Mario Chamie tinha 46 anos quando o prefeito o convidou a assumir o cargo. À frente da secreta- ria, buscou descentralizar a cultura na cidade, propondo, entre outros, o “Projeto Periferia”, pelo qual inaugurou 13 pequenas bibliotecas em bairros distantes do centro, todas de escala singela e instala- das em imóveis simples. Sua gestão foi marcada pela vontade de mudar a política cultural até então vigente na cidade. Segundo ele, até a década de 1970 a cultura “alcançava basicamente um público restrito, de formação e escolaridade semierudita e universitária”. Mario Chamie apud Serapião, Fer- nando. Centro Cultural São Paulo: espaço e vida. São Paulo: Monolito, 2012, p. 75. O secretário defendia que o novo equipamento público deveria abrigar um programa mais democrático, como um centro cultural, em vez de uma biblioteca, como tinha sido concebido anteriormente pela gestão do prefeito Olavo Setúbal.