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A proposta de Rubens para a exposição no centro cultural foi intitulada

imanente [adição_multiplicacão_divisão_subtração_], e se articulou em duas ações,

ambas alimentadas pela descoberta das iniciais dos tijolos. Aqui, a comple- xidade dos projetos do artista ressurge em desdobramentos que envolvem diferentes ações, tais como visto nos vazadores, mas também em bueiro (como intervenção e como fotografia).

A primeira das ações realizadas se constituiu numa intervenção física na parede da biblioteca, por meio da qual o artista substituiu um dos tijolos “RB” por um tijolo concebido por ele com a inscrição da palavra “imanente”

em alto relevo (fig. 36). Segundo relato do artista, o tijolo “imanente” foi confeccionado na mesma olaria que tinha produzido os tijolos originais do Centro Cultural São Paulo (fig. 35). Até então, as iniciais de Reynaldo de Bar- ros eram invisíveis aos olhos de funcionários e usuários do centro cultural; hoje, numa visita à biblioteca, é possível se deparar com o tijolo do artista incrustado no meio das cerca de 50 mil peças que revestem o talude paralelo à Rua Vergueiro ao longo de 200 metros.

Na proposta “arqueológica” do artista, certos espaços cifrados, apagados na memória coletiva da cidade, são desvelados. Por meio da intervenção na pare- de, constata-se que os domínios da vida privada, na figura do gestor munici- pal, acabaram por demarcar os desígnios públicos do projeto, sem que fossem expressamente assim declarados. Cabe recordar que o período que englobou a concepção arquitetônica do equipamento municipal, a partir de 1976, até sua efetivação como Centro Cultural São Paulo, inaugurado em 1982, tinha como pano de fundo a ditadura militar. Reynaldo de Barros havia conquistado o car- go de prefeito graças à indicação de Paulo Maluf, então governador do estado (ambos apoiavam o regime), e sua gestão foi considerada populista e demagó- gica, sofrendo dura oposição do movimento popular organizado.

Neste ponto, é preciso esclarecer que a origem da destinação da área para abrigar um equipamento municipal se deu na gestão anterior, duran- te a prefeitura de Olavo Setúbal. Logo após assumir a nomeação, no final

FIG. 35 Registro do processo de

confecção do tijolo na olaria (acima à esquerda). Foto: Rubens Mano

FIG. 36 Registro do tijolo imanente

na versão avermelhada (acima à direita). Foto: Rubens Mano

FIG. 37 Rubens Mano durante a ação

de substituição do tijolo “RB” pelo tijolo imanente.

de 1975, Setúbal se viu contrariado com os desígnios privados daquele lote público (seria uma medida muito impopular) e decidiu cancelar a constru- ção de um complexo empresarial no terreno, localizado entre a avenida 23 de Maio e a Rua Vergueiro (a gleba era uma sobra do canteiro de obras da estação Vergueiro do metrô). O projeto tinha sido vencedor de um concurso promovido pelo prefeito que lhe antecedeu, Miguel Colassuono. Recém- -empossado no cargo, Setúbal nomeou os engenheiros da Emurb para fa- zer um estudo de viabilidade para a construção de uma biblioteca naquele local; sob influência de Noemi do Val Penteado, diretora do Departamento de Bibliotecas Públicas da cidade, o prefeito tinha se sensibilizado com o problema de acondicionamento do acervo da Biblioteca Municipal Mário de Andrade, e resolveu dar outro destino à área: uma biblioteca para abrigar a seção de periódicos da BMMA.

Os técnicos da Emurb se reuniram com os bibliotecários da BMMA para pensar o programa do futuro equipamento e estabelecer as diretrizes do con- curso; fizeram algumas visitas técnicas, inclusive em bibliotecas de bairro na Finlândia. A equipe contou ainda com a consultoria da Plae Arquitetura e Urbanismo, dirigida pelos jovens arquitetos Eurico Prado Lopes e Luiz B. Telles, especializados em resoluções de ambientes empresariais (principal- mente em layouts e conforto ambiental). No início de 1976, a Emurb abriu concorrência pública e a Plae acabou vencedora. Durante a gestão Setúbal, a dupla de arquitetos projetou um edifício de quatro pavimentos para abrigar parte do acervo da BMMA, e que levaria o nome de Biblioteca Central de São Paulo. Porém, na gestão de Reynaldo de Barros, o secretário Mario Chamie considerou que o programa do equipamento público devia ser ampliado para receber um centro cultural multiuso, voltado a todas as idades e classes so- ciais. Por fim, o projeto foi adaptado para abrigar o atual Centro Cultural São Paulo.350 Conforme declararam seus autores, tanto a concepção do programa

350 O processo de designação da gleba pública municipal, e que atravessou três diferentes gestões, está descrito em detalhes no livro de Fernando Serapião. Cf. Serapião, op. cit.

304 305 como o partido arquitetônico adotado tiveram fortes inspirações no então

recém-inaugurado Centre Georges Pompidou, em Paris.

De volta à obra de Mano, o tijolo imanente criara um ruído no mosaico de iniciais e convocava o visitante a descobrir a historicidade daquele lugar, não apenas em seu vocábulo arquitetônico mas também na sua esfera pública. É como se o tempo tivesse embaçado a marca celebrativa da parede da edifica- ção (que, em certa medida, funcionava como um monumento dissimulado) e tornado imagem sua densidade histórica. O trânsito entre as instâncias pública e privada, própria da vida urbana na cidade, é aqui apresentado não somente em seus aspectos físicos, mas em suas implicações políticas e dos interesses de poder envolvidos (é sabido que grande parte dos governantes querem imprimir a marca de sua gestão no território, como visto na escala federal, com a Brasília de JK; aqui, no exemplo municipal de Barros, o re- velador é que nesse caso o gestor imprimiu uma marca pessoal nominal e fisicamente, como um gesto de autorreverência do poder, cujo prefeito im- popular foi imposto pelo regime militar).

A substituição das iniciais pela palavra “imanente” não só anulava o gesto de autorreverência como deslocava o valor para a materialidade do elemento construtivo tijolo, produzido pelas olarias típicas da região do entorno da cidade (desde sua fundação, São Paulo já contava com pequenas olarias que fabricavam telhas de barro; geralmente se concentravam próximas ao rio Tietê, em regiões alagadiças, perto de sua matéria-prima).

De acordo com o Dicionário filosófico de André Comte-Sponville, é imanente “tudo o que é interior à consciência”, “tudo o que faz parte do universo ma- terial”.351 Num sentido clássico, é imanente “o que permanece em algo ou

alguém”. Ao designar o tijolo como “imanente”, o artista desloca a atenção do monumento dissimulado para a materialidade do elemento construtivo e para o que ela carregaria como evidência histórica.

351 Comte-Sponville, André. Dicionário filosófico. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011, p. 300.

Indagado sobre o uso do termo “imanente” na exposição, Mano relata que o uso partiu de uma referência ao pensamento do filósofo Gilles Deleuze, elaborado nos termos de uma “utopia imanente”. Segundo Peter Pál Pelbart, leitor do filósofo, “a utopia em Deleuze jamais remete a um tempo futuro e uma forma ideal. Designa antes o encontro entre o conceito e o meio pre- sente, entre um movimento infinito e o que há de real aqui e agora, que o estado de coisas impedia de vir à tona”.352 O utopismo de Deleuze é imanente

à medida que resiste a idealizações e se concentra na materialidade do real. Em Mano, a palavra imanente adquire um caráter político às avessas ao negar o uso que se fez do tijolo como um elemento de autoenaltecimento à pessoa política de Barros. A substituição de códigos impressos na peça ce- râmica ativaria, assim, a consciência daquele lócus, marcando-o sutilmen- te, sem alterar propriamente o contexto (lembrando as palavras de Lucy Lippard). Ela opera esteticamente a reconstrução das dimensões culturais e políticas do lugar.

A troca da peça foi feita pelo próprio artista (fig. 37), sinal de que Mano não abdicou do caráter performático de suas proposições (algo visto com recorrência nos trabalhos erráticos dos anos 1990). Durante a exposição, o vestígio da ação era fornecido por meio de uma câmera que captava o tijolo

imanente e seu entorno, e transmitia a imagem em tempo real para um mo-

nitor montado em videowall, instalado na segunda parte da exposição do artista, no Piso Caio Graco. A opção pelo formato do videowall recuperava uma tecnologia da década de 1980, dos primórdios do vídeo, e de certa for- ma reconstituía imageticamente os anos de inauguração do CCSP, numa arqueologia imanente.

Ao lado dos monitores, Mano dispôs um conjunto de antigos tijolos de olarias do entorno paulistano, adquiridos pelo artista em desmanches de

352 “O exercício imanente em Deleuze traça uma linha transversal na atualidade, nem de exterio- ridade nem de adesão, recusando a um só tempo o catastrofismo e a complacência”. Pelbart, Peter Pál. A utopia imanente, Revista Cult, seção Ensaios. Disponível em: <https://revistacult.uol.com.br/ home/a-utopia-imanente/>. Acesso em 2 out. 2017.

construção, cuja seleção e disposição no CCSP explorava a diversidade de ini- ciais e desenhos com os quais as peças eram tradicionalmente identificadas e recuperava um possível mosaico do que teria sido o projeto original dos arquitetos para revestir a parede da biblioteca.