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O contexto paulistano no qual o projeto Arte/Cidade foi implantado estava di- retamente ligado aos processos de reconversão urbana da cidade – de um lado, com regiões de ocupação antiga degradadas, e, de outro, com novas áreas

171 A quarta edição reuniu artistas, arquitetos e urbanistas, incluindo brasileiros e estrangeiros. No Sesc Belenzinho, expuseram: Ana Tavares, Ary Perez, Avery Preesman, Carlos Fajardo, Carmela Gross, Cássio Vasconcelos, Hannes Foster, Hermann Pitz, Nelson Felix, Regina Silveira e Waltercio Caldas. As interven- ções na cidade ficaram a cargo de: Angelo Venosa, Antoni Muntadas, Ateliê Van Lieshout, Carlos Vergara, Casa Blindada, Dennis Addams, José Resende, José Wagner Garcia, Marco Giannotti, Maurício Dias e Walter Riedweg, Paul Meurs, Rem Koolhaas, Ton Matton, Vito Acconci e Krzysztof Wodiczko.

172 O pátio foi inaugurado pela São Paulo Railway em 1891, e servia como estacionamento de vagões, depósito de mercadorias e ponto de carga e descarga.

valorizadas pelo mercado imobiliário que se conectavam com o mundo glo- bal. No artigo “Arte pública, cidade privada”, os autores Elisabetta Andreoli e Laymert dos Santos ilustram essa dupla condição da capital paulista em meados da década de 1990:

O binômio arte/cidade já vem sendo usado há algum tempo como uma maneira de valorizar a cidade, se não substancialmente, ao me- nos em termos de imagem, marketing, sobretudo numa época de globalização, quando as identidades nacionais parecem dar lugar a outras, mais locais. Além disso, em São Paulo, como em toda parte, os debates atuais sobre “pós-modernismo” e “globalização” acarretaram um interesse maior pelo tema da cidade, particularmente da metró-

pole e de suas transformações.173

Os autores também lembram que o Arte/Cidade ocorreu “num momento em que várias iniciativas afirmavam a urgência de tratar dos problemas da cida- de, e em particular do centro histórico de São Paulo”.174 Na verdade, a região

vinha sofrendo um processo de abandono por parte das grandes instituições financeiras e comerciais desde pelo menos a década de 1970, em favor da valorização de outras áreas, tais como os centros empresarias e financeiros instalados na Paulista, Faria Lima e Berrini, respectivamente. Segundo An- dreoli e Santos, o processo de “degenerescência urbana” pelo qual a cidade passara nas últimas décadas resultou na perda do papel econômico e simbó- lico do centro, no declínio do espaço público e na degradação da infraestru- tura da cidade, dentre outros fenômenos. Na capital paulista, a situação se agravava ainda mais sob o ponto de vista do pedestre:

173 Andreoli e Santos, op. cit., p. 285. 174 Ibidem.

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São Paulo quase deixou de ser um lugar para passeio em virtude da fragmentação urbana, de razões de segurança e das distâncias geo- gráficas e sociais. […] As pessoas comuns tendem a evitar a cidade, atravessando-a somente quando necessário, enquanto os privilegiados se isolam atrás dos vidros fechados dos carros e dos muros dos enclaves residenciais e comerciais. Aqui, a cidade é experienciada como um

inimigo ou, na melhor das hipóteses, como um obstáculo.175

Ao considerar os processos intrínsecos a São Paulo, percebe-se que a desconti- nuidade produzida pela dispersão das atividades no território e pelos interes- ses imobiliários foi ainda mais acirrada com o advento da mundialização das cidades, e resultou no que os urbanistas chamam de “cidade cindida” – ou o que Otília Arantes apontara como uma cidade pautada por duas velocidades –, onde à infraestrutura da malha moderna em solo urbano sobrepõe-se a condição contemporânea fragmentada da cidade global, cada vez mais pau- tada pela desterritorialização e pela deslocalização.176

Esses fenômenos urbanos contemporâneos se explicam pelo desenvol- vimento tecnológico e pelas trocas econômicas cada vez mais virtualizadas (sociedade em rede). Os novos parâmetros de ocupação do solo nas cidades globais (a produção social do espaço) foram guiados pela implantação de cen- tros de comando da economia global/informacional (decantada dos avanços

175 Ibidem, p. 286.

176 A partir das análises do geógrafo italiano Giuseppe Dematteis, a urbanista Marta Lagreca ajuda a entender os aspectos da condição contemporânea – difusa e fragmentada – em relação àquela da cidade moderna: “Os novos sistemas relacionais globais e descontínuos da cidade contemporânea têm conexão com o desenvolvimento tecnológico e com as mais recentes tendências de divisão do espaço de trabalho. Segundo G. Dematteis (1989), o desenvolvimento tecnológico permite o ‘transbor- damento dos limites’ – diminuíram certos limites da economia de escala (automação), bem como se reduziu o atrito pela distância na circulação de informações (telemática). Portanto, consequência dos processos e dinâmicas regidos pelas transformações nas lógicas produtivas e nas inovações tecnoló- gicas, a não coincidência entre sistema produtivo e sistema urbano, de modo geral, materializa-se na dispersão e fragmentação dos processos de ocupação do território e constitui um dos aspectos-chave da diferença que a cidade contemporânea apresenta em relação à moderna”. Sales, op. cit., p. 47.

tecnológicos), que gerenciam as atividades interligadas das redes de empre- sas;177 esses centros ocuparam parcelas da cidade e instituíram bolhas desco-

nectadas do tecido urbano, caracterizadas por uma arquitetura verticaliza- da, lisa e espelhada, homóloga a qualquer outro centro de comando da rede global.

Esses aspectos da contemporaneidade também foram ironicamente enunciados pelo arquiteto holandês Rem Koolhaas em seu artigo “Bigness”, publicado originalmente na revista Domus, em outubro de 1994:

Através da aleatorização da circulação, dos curtos-circuitos da distân- cia, da artificialização dos interiores, da redução da massa, do esti- ramento das dimensões e da aceleração da construção, o elevador a eletricidade, o ar-condicionado, o aço e, por fim, as novas infraestru- turas formaram uma agregação de mutações que induziram outras espécies de arquitetura. Os efeitos combinados destas invenções fo- ram estruturas mais altas e mais profundas – Maiores – do que até aí tinham sido concebidas, com um potencial paralelo para a reorgani-

zação do mundo social.178

Do ponto de vista da arquitetura, na interpretação de Koolhaas, o elevador – com o seu potencial para estabelecer ligações mecânicas em vez de arquitetô- nicas – anulou e esvaziou o repertório clássico, e questões como composição, escala, proporção e pormenor tornaram-se irrelevantes. O emprego indiscri- minado do ar-condicionado no interior desses volumes verticais vitrificados criava um microclima artificial que independe do lugar, é estável e se repete por toda parte do globo. O invólucro de vidro “libertara”, assim, uma necessi- dade de correspondência entre fachada e interior do edifício, apregoada pelos modernos; seu tratamento espelhado devolve a realidade como hiperreali-

177 Castells, op. cit., p. 405. 178 Koolhaas, op. cit., pp. 15-16.

dade e faz as construções desaparecerem na paisagem da cidade. Como diz o arquiteto, “o seu impacto [da Grandeza] é independente de sua qualidade”,179

“ela é impessoal”180 e se rendeu às tecnologias.

A imagem projetada de Koolhaas corresponde à paisagem da cidade glo- bal desenhada por Andreoli e Santos, a qual, segundo os autores, acarre- tava sensação de deslocalização (os centros empresariais têm a mesma apa- rência em qualquer que seja a cidade global). Em São Paulo, portanto, as mudanças tecnológicas que reestruturaram o território nas cidades globais foram em boa parte responsáveis por produzir duas velocidades na mesma “cidade”: uma, engendrada na cidade “real”; e outra, vivenciada como vir-

tualidade.181

A partir de meados de 1990, o novo foco sobre o problema do lugar na arte contemporânea, expresso na concepção do projeto Arte/Cidade, não deixa de ser um reflexo dessa cisão, na medida em que procura restabelecer uma relação mais direta e “real” com a cidade e os modos de vida que se imprimem nela.