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A intervenção no bueiro ganhou uma versão fotográfica exposta um ano depois em báscula,104 mostra individual do artista realizada na Galeria Casa

Triângulo em 2000. Na transposição fotográfica, o enquadramento da ação ocorrida no espaço real é dado pela centralização do assunto principal – os dois buracos iluminados, postos simetricamente lado a lado na imagem. O ponto de vista frontal do registro da ação eleva esses pequenos vazios im- perceptíveis como lugar de interesse. Além disso, os vazios luminosos são enquadrados na parte superior da imagem, subvertendo a sua condição ho- rizontal da boca de lobo, muito abaixo do olhar do passante.

Aqui, a fotografia torna possível uma outra percepção sobre aquele lugar; ela apresenta uma ocorrência estranha e pouco evidente na cidade, conferin- do novos significados a esse fenômeno luminoso, ou, ainda, produzindo um novo lugar, ressemantizado. Em bueiro, a atmosfera da imagem é carregada de certo mistério, que por sua vez incita o observador a reconstituir a ação inusitada naquele dado local.

A fotografia é o melhor meio para conhecer tal intervenção na cidade; o registro fotográfico é um dispositivo potente para a revisitação da experiên-

104 A partir daqui, todos os títulos de exposições concebidos por Rubens Mano serão grafados em caixa baixa, de acordo com designação do próprio artista.

cia por parte do público. Ele permite acessar não apenas a ação espaço-tem- poral do artista, mas a própria memória e metamorfose da cidade. É preciso lembrar aqui que a natureza do meio fotográfico esteve em estreito diálogo com a vida urbana desde os primórdios das metrópoles modernas, a exemplo do estudo realizado pela crítica de arte Rosalind Krauss sobre as imagens surrealistas dos anos 1920.105

O artigo do historiador espanhol Ignasi Solà-Morales, “Terrain vague”, reto- ma essa estreita relação entre fotografia e cidade e ajuda a elucidá-la.

Nascida praticamente no momento da expansão das grandes cidades, as imagens de Paris, Berlim, Nova York, Tóquio, ou as dos contínuos habitados no primeiro, segundo e terceiro mundo, entram em nossa

memória e na nossa imaginação através da fotografia.106

Para Solà-Morales, a percepção que temos tanto da arquitetura quanto da cidade é uma percepção esteticamente reelaborada pelo olho e pela técnica fotográfica. O resultado é uma imagem mediatizada que, segundo os recur- sos da representação plana da fotografia, nos facilita a compreensão do ob- jeto (no caso da arquitetura) e o acesso aos lugares e suas temporalidades (no caso da cidade). Segue o autor, “a possibilidade de acumular experiências pessoais diretas nos lugares nos quais não vivemos por um tempo é proble- mática. […] A incidência do fotógrafo segue sendo primordial em nossa ex- periência da grande cidade”.107

De acordo com Krauss, citada por Solà-Morales, “a fotografia não atua se- miologicamente como um ícone, mas como um índice. Isso quer dizer que aquilo que constitui seu referente não está imediatamente relacionado, como

105 Cf. Krauss, Rosalind. Fotografia e surrealismo, op. cit., pp. 105-128.

106 Solà-Morales, Ignasi de. Terrain vague, ArchDaily Brasil, 1º mar. 2012. Disponível em: <http://www. archdaily.com.br/br/01-35561/terrain-vague-ignasi-de-sola-morales>. Acesso em 5 out. 2017. 107 Ibidem.

figura, com as formas que a fotografia desenvolve”.108 Portanto, conclui o his-

toriador, “através da imagem fotográfica somos capazes de receber indícios, impulsos físicos que dirigem numa determinada direção a construção de um imaginário que estabelecemos com um lugar ou uma cidade determinada”.109

No caso de Mano, a imagem é um dispositivo duplo, de índice de sua in- tervenção em um dado lugar e de recodificação dessa reconstrução espacial, imageticamente. Ao revisitar sua obra anos mais tarde, o artista relata que no projeto para os bueiros “intervenção e recepção foram considerados como um espaço contínuo, como campo da intertextualidade que articula duas realidades – a ‘realidade material’ do ambiente urbano e a ‘realidade sensível’ do espaço percebido ou transformado”.110

A relação entre a ação e o registro da ação, ou ainda entre espaço e ima- gem de espaço, também está presente em disponha, um díptico em fotografia datado de 2001. Nele, Rubens coloca lado a lado o mesmo enquadramento de um trecho de uma rua aparentemente deserta com dois automóveis estacio- nados (possivelmente abandonados), em situações ligeiramente distintas. A diferença entre uma imagem e outra aparece na destruição parcial das carroce- rias das kombis, porém não se sabe quem é o protagonista da ação que levou as partes sorrateiramente. Ao mesmo tempo, a alteração entre uma foto e outra, mesmo que efêmera ou paradoxal, perturba a “vocação” daquele lugar.

Em disponha, o anonimato da cena é parte da construção narrativa da obra, e expõe as contingências da vida urbana na capital paulista. O artista se apro- pria de uma situação cotidiana recorrente no espaço da cidade, e faz dela sua “intervenção”. Aos olhos dos curadores Lorenzo Mammì e Heloisa Espada, a obra é lida como uma “instalação ready-made”.111 No díptico, Rubens estabelece

o “ato criador” como um processo anônimo, que é revelado na “coparticipa-

108 Rosalind Krauss apud ibidem. 109 Solà-Morales, op. cit. 110 Mano, op. cit., 2003, p. 27.

111 Mammì, Lorenzo e Espada, Heloisa. As imagens de Passaic. Lugar nenhum. (Catálogo de exposição). São Paulo: IMS, 2013, p. 15.

ção” entre artista e o sujeito-perceptor. O título ajuda a reforçar a ironia e o jogo duplo da imagem: num primeiro sentido, a cidade (e o que está no espaço público) se oferece a qualquer um de nós; num segundo, o dado auto- ral do trabalho de arte faz com que o artista responda “cordialmente” à ação transgressora, como se estivesse dialogando com o observador da obra, e, por extensão, com o sujeito na cidade.

Mesmo que a alteração dos carros (o corte na carroceria) tenha uma autoria dúbia, indefinida, o díptico de Mano articula uma “construção” por subtração, tal como em bueiros. Entretanto, a operação só é passível de ser compreendida pela fixação de um intervalo de tempo, ou seja, pela distância entre uma imagem e outra do par. A construção temporal na montagem fotográfica nos reporta novamente à fotografia surrealista, em especial às considerações de Krauss quanto à ideia de duplicação, prove- niente daquela produção. Para a crítica de arte, a experimentação dessa vanguarda nos anos 1920 teria iniciado o alargamento das possibilidades do meio ao criar o duplo como recurso à dilatação temporal do real, proje- tando o original no campo da diferença. Diz ela: “é a duplicação que cria o ritmo formal do espaçamento, o pas-de-deux que proscreve a unidade do instante”.112 No caso da fotografia de Rubens, o recurso à duplicação não só

transforma a presença em sequência como cria um jogo de duplo simula- cro do real ao se dilatar no tempo.