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Em 1969, quando Gordon Matta-Clark volta a morar em Nova York depois de passar uma temporada de estudos em Paris, onde seu pai residia,355 o Green-

wich Village, bairro em que cresceu e que tradicionalmente era ocupado por imigrantes italianos, sofria um processo de gentrificação que vinha pondo abaixo boa parte do sul da ilha (o chamado Lower Manhattan), capitaneado pelo engenheiro Robert Moses. A rua onde morou, LaGuardia Place, passou a abrigar a University Village – um anexo do campus universitário da New York University com 3 torres de 30 andares. O bairro de infância do artista era mais um dos distritos que, nos anos 1960, foram assolados por uma avalan- che de demolições promovidas pela administração da cidade com o intuito de abrir caminho para a construção de grandes eixos viários de circulação me- tropolitana, bem como para altos investimentos imobiliários e corporativos, a exemplo do World Trade Center.

Esse tipo de situação recorrente no contexto nova-iorquino daqueles anos, despertou um sentimento de indignação em Matta-Clark, o que o mobilizou a realizar uma série de proposições por ele intituladas “city-related works”, den- tre elas: o churrasco em baixo da Brooklyn Bridge oferecido aos moradoras de rua do entorno, em Pig Roast; a distribuição de oxigênio para a multidão da Wall Street, em Fresh Air Cart; e o restaurante Food, aberto no Soho em 1971, que oferecia trabalho e ponto de encontro aos artistas do bairro.356 Dali em

355 Apesar de Gordon Matta-Clark não ser objeto de estudo desta tese, valeria pontuar que, no con- texto biográfico do artista, seu pai – o pintor surrealista chileno Roberto Matta – havia trabalhado como desenhista por dois anos no escritório de Le Corbusier no final dos anos 1930. Provavelmente, tal fato teria influenciado a escolha universitária deste filho pela arquitetura.

356 Ainda neste período, Matta-Clark também se engajou num coletivo de performance, que usava edifícios “vintages” como plataforma para suas ações. Estas geralmente diziam respeito à vida domés- tica, como tomar banho, bebericar chá etc. Esses gestos cotidianos adquiriram um tom surreal ao se- rem performados em lugares públicos, a exemplo de Clock Tower, em 1973, durante a qual Matta-Clark improvisou um banho de ducha no alto do edifício. Jenkins, op. cit., p. 53.

diante viria uma sequência de intervenções em resposta à transformação ra- dical por que passava sua cidade natal, vivenciada intimamente pelo artista em seu cotidiano no bairro onde morava, o Soho. O forte caráter de resistên- cia frente à política urbana vigente vinha, muitas vezes, acompanhado de um sentido comunitário, pelo qual o artista dava relevo à rua como espaço político, de reunião e de conflitos.

Além do Soho, o bairro periférico do Bronx foi outra importante região que sofrera os processos de reurbanização da cidade, atraindo a pulsão ativis- ta de Matta-Clark em direção a novas proposições artísticas que viriam expor a situação de abandono e decadência gerada pelos novos interesses imobi- liários em voga. As memórias nova-iorquinas do filósofo Marshall Berman sobre a época ajudam a ilustrar a situação degradante do Bronx, resultante das intervenções de Moses para abrir grandes vias de ligação entre bairros periféricos e o centro da ilha:

Por dez anos, do final dos anos 1950 ao início dos 60, o centro do Bronx foi martelado, dinamitado e derrubado. Meus amigos e eu […] fisca- lizaríamos o andamento das obras – as enormes escavadeiras e moto- niveladoras, as estacas de madeira e de aço, as centenas de trabalha- dores com seus capacetes de cores variadas, os gigantescos guindastes que se debruçavam bem acima dos telhados mais altos do Bronx, os tremeres e explosões provocados pela dinamite, as rochas recém-des- cobertas, ásperas e pontiagudas, os panoramas de desolação estenden- do-se por quilômetros e quilômetros, até onde a vista pudesse alcançar, a leste e oeste – para nos maravilharmos ao ver nosso bairro comum e

agradável transformado em sublimes, espetaculares ruínas.357

O Bronx, onde cresci, tornou-se mesmo uma senha internacional para o acúmulo de pesadelos urbanos de nossa época: drogas, quadri-

357 Berman, Marshall. Tudo o que é sólido se desmancha no ar. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 342.

lhas, incêndios propositais, assassinatos, terror, milhares de prédios abandonados, bairros transformados em detritos e em vastidões de

tijolos espalhados.358

Foi ali que, no início dos anos 1970, Matta-Clark perseguiu terrenos bal- dios e edifícios abandonados para realizar suas primeiras “intervenções subtrativas”, em reação ao esfacelamento do cotidiano, de espaços de inte- gração e de lazer públicos, e às transformações da paisagem do bairro. As subtrações de arquitetura consistiram em uma série de cortes e disseca- ções intituladas Bronx Pieces (figs. 8 e 9). As “peças” eram pedaços de pisos e paredes resultantes de um corte que seccionava edifícios degradados. Se- gundo o artista, tratava-se de “pequenos troços de edifícios retirados de ca- sas abandonadas deixadas abertas para perambuladores, cachorros e para mim”.359 A ilegalidade da ação corroborava para o alerta sobre a decadência

urbana daquele lugar.

Como pontuado no Capítulo 2, a partir do estudo da obra casa verde, o in- teresse por espaços residuais não se restringe aos anos 1990 de Rubens Mano. Entre as décadas de 1960 e 1970, os chamados terrains vagues converteram-se em “fascinantes pontos de atenção, nos indícios mais solventes para poder se referir à cidade”, lembrando o comentário de Ignasi de Solá-Morales sobre o período. As intensas transformações urbanas daquelas décadas mudaram radicalmente a paisagem da cidade, cujos processos foram vivenciados “na pele” por Matta-Clark e imediatamente postos em questão pelo artista.

Ainda que as distâncias no tempo e no espaço coloquem ambos os artistas em situações distintas, é possível aproximá-los de antemão sob dois aspec- tos: o interesse por situações urbanas residuais produzidas pela modernida- de e a opção por uma prática construtiva subtrativa, em que se enfrenta o real a partir de suas estratégias operativas intrínsecas.

358 Ibidem, p. 340.

359 “[…] discrete chunks of buildings taken from abandoned tenements left open to derelicts and

320 321 Quanto ao primeiro aspecto, as situações encontradas por Mano no ter-

ritório paulistano foram impulsionadas pelo modus operandi singular, mas não exclusivo, da cidade de São Paulo – uma lógica que, como apontado ao longo da tese, tem se propagado no tempo desde a fundação da capi- tal paulista (o chamado binômio demolição-construção). Soma-se a isso o contexto específico dos anos 1990, no qual as políticas de urbanização para a cidade foram pautadas pelas operações urbanas que, conforme expôs Lu- crécia Ferrara, destruíram bairros inteiros em favor da ocupação do solo e da venda de potencial construtivo, deixando de lado a requalificação desses lugares em termos urbanísticos e de sociabilidade. Já em Matta-Clark, suas intervenções reagiam a um processo de reconfiguração urbana localizado na Nova York dos anos 1960 e 1970, na esteira da crise do urbanismo moder- nista. Elas eram uma verdadeira “crítica em ação” frente à gentrificação, que incluiu o questionamento do modelo de vida privatizada do subúrbio norte-americano, que isolou a vida comunitária em grandes complexos habitacionais nas franjas da cidade, destruindo o sentido de reunião do espaço público (a rua).

O segundo aspecto está ligado ao aporte construtivo da formação em Arquitetura e Urbanismo que constitui ambas as práticas, e que de certa forma foi reelaborado a partir do campo artístico por meio de uma operação subtrativa, que subverte a lógica edificante da profissão (uma “não-arqui- tetura”). Dentro desses referenciais de formação comuns, o embate com a cidade em Mano foi impulsionado pela experiência urbana nômade cujas origens remontam à atividade jornalística associada à aprendizagem do olhar pela fotografia, pelo qual o artista percebeu certos movimentos re- correntes na lógica de produção do espaço na cidade paulistana. No caso de Matta-Clark, mobilizado pelo forte impacto da política urbana de Moses, vivenciada no dia a dia do artista, suas intervenções foram facilitadas por um sólido conhecimento arquitetural e por habilidades construtivas con- sideráveis que se somaram ao valor do corpo em ação – sendo este último fruto da experiência com o coletivo performático, sob influência da dança de Trisha Brown.

O enfrentamento da questão da gentrificação urbana promovida pela destruição de bairros inteiros e vivenciada pelo artista culminou em 1974 com sua obra paradigmática Splitting (figs. 38 e 39), na qual cortou uma casa verticalmente, separando-a em duas partes. A edificação localiza- va-se na periferia de Englewood, na outra margem do rio Hudson, em Nova Jersey, e correspondia a uma zona em transformação igualmente destinada a novos empreendimentos imobiliários. Na ocasião, o sobrado foi cedido pela amiga e proprietária Holly Solomon (sua futura galerista), cujo marido adquirira o imóvel como investimento (diga-se de passagem, o mesmo bairro onde a família já possuía negócios). Por trás da interven- ção de Matta-Clark, guardava-se o velho processo de degradação de bairros periféricos e sua “modernização”.

As implicações urbanas despertadas pela obra são trazidas à tona por Pa- mela Lee na seguinte passagem:

[A propriedade] foi adquirida não pelo edifício, uma coisa banal num bairro decrépito, mas pelo valor de seu lote. A compra de Solomon, na verdade, era um ato do estado real de especulação dramatizado pelo destino do próprio edifício: a casa seria demolida em alguns meses. Portanto, Matta-Clark tinha permissão para usar o imóvel, mas com

o conhecimento de que seu trabalho duraria pouco tempo.360

Em depoimento citado por Lee, o artista considera que o seccionamento ver- tical em “splitting the house” era tudo menos ilusionista (“trata-se de uma ativi- dade física direta, e não de fazer associações com nada que não esteja ali”).361

Entretanto, de acordo com as análises da historiadora, além da resistência à destruição de bairros inteiros, a intervenção de Matta-Clark trazia remi- niscências do modo de vida suburbano norte-americano (o chamado “mito

360 Lee, op. cit., p. 11.

361 “It’s all about a direct physical activity, and not about making associations with anything outside it”. Matta-Clark apud ibidem, p. 21.

FIGS. 38-39 Gordon Matta-Clark.

Splitting, 1974

Fotografia, impressão em gelatina de prata, 40,64 × 50,8 cm

Coleção San Francisco Museum of Modern Art (Cortesia The Estate of Gordon Matta-Clark).

FIG. 40 Gordon Matta-Clark.

Splitting: Four Corners, 1974

Instalação com fragmentos de construção, dimensões variáveis. Coleção San Francisco Museum of Modern Art.

da casa do subúrbio”),362 fundado pela urbanização massiva construída nas

bordas da cidade, ou, mais precisamente, fora dela. Em Splitting, o modo de vida suburbano – nomeado por Lee como “o culto à privacidade” –, em crise, foi transgredido pelo artista antes que a máquina avassaladora do mercado imobiliário o eliminasse por completo.

A problemática da vida urbana produzida nos subúrbios norte-america- nos pelo planejamento moderno em grande escala já tinha vindo à tona em 1967 com Robert Smithson. Em Os monumentos de Passaic, o artista atribuiu a essa lógica planificadora o erguimento de uma cidade já em ruína. A carto- grafia das bordas metropolitanas realizada por Smithson fez emergir resquí- cios de um projeto moderno de cidade em crise nesses subúrbios, estressando a condição urbana desses espaços, sem tradição nem qualidade. No entanto, diferentemente de Smithson (que publicou sua cartografia numa revista de arte especializada), a estratégia de atuação do jovem artista nova-iorquino passava ao largo do circuito institucionalizado das galerias, dedicando-se a explorar espaços alternativos e trabalhar para além do mercado.

De volta à Splitting, o artista desdobrou sua intervenção realizada corporal- mente sob o edifício em outras temporalidades, passando pelos registros fo- tográficos e fílmicos do processo até a seleção de partes da casa que sobraram da demolição, transformadas em “escultura” com Four Corners (fig. 40). A con- dição impermanente de suas intervenções impunha com frequência sua di- latação para além do acontecimento da ação, elaborada sob outros formatos.

A natureza desdobrável de suas proposições – quer seja em diferentes par- tes (intervenção, fotografia…), ou em outras obras (esculturas, filmes…) – também apareceu com frequência na produção de Mano aqui estudada, tais

362 Para a autora, “em virtude de sua distância da cidade, a privacidade do subúrbio parecia literalizar essa ideia. E o lar suburbano condensa simbolicamente essa separação, agindo como um retiro espaço- -temporal de uma esfera pública agora considerada degradada por influências de classe, étnica e racial”

(“by virtue of its distance from the city, the privacy of the suburb would seem to literalize this conceit. And the suburban home symbolically condenses this leave taking, acting as a spatio-temporal retreat from a public sphere now regarded as debased by class, ethnic, and racial influences”). Lee, op. cit., p. 23.

324 325 como em bueiro, detetor e vazadores. Em ambos os artistas, é como se suas pro-

posições envolvessem tantas camadas que elas pediriam diferentes formali- zações em diferentes tempos, a fim de dar vazão à trama de relações percebi- das e que constituem a complexidade da produção do espaço a partir dos anos 1960 (ou mais precisamente, a partir do ponto crítico lefebvriano). Mesmo os registros, se tomados simplesmente como documentos, ainda assim produ- zem um estranhamento pela energia latente que resguardam dos processos ali condensados e vivenciados no espaço da cidade.

No caso das intervenções de Matta-Clark, a preocupação em registrar em filme o acontecimento de sua ação-performance vinha acompanhada de uma ampla campanha de divulgação da ocorrência da obra por parte do ar- tista. Diferentemente de Mano, eram raras as vezes em que Matta-Clark não anunciava publicamente suas intervenções anarquitetônicas, principalmente aquelas que tinham um caráter performático sobre as edificações e envol- viam dias de trabalho no canteiro, tal como em Englewood.

A série buiding-cuts, decantada de Splitting, passou a ser, sem dúvida, a mar- ca registrada do artista, pela qual ficou conhecido internacionalmente, tan- to por sua radicalidade quanto pela escala monumental perseguida dali em diante. Um dos grandes destaques dessa fase é Conical Intersect (figs. 10 e 41 a 46), intervenção realizada em 1975 para a Bienal Jovem de Paris.