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Quando nos deparamos com os escritos críticos sobre A cidade e seus fluxos, publicados à época, boa parte deles qualifica o trabalho de Rubens a partir de sua natureza fotográfica, inclusive ao se referir a Mano como fotógrafo, e não como artista, tal como Lisette Lagnado o fez em seu artigo sobre o

Arte/Cidade citado anteriormente. Partindo-se do princípio que a concep-

ção geral de detetor de ausências baseia-se na inscrição do sujeito na cidade por meio de registro fugaz promovido por uma fonte luminosa, pode-se supor que o emprego da luz como matéria principal da obra deriva, no caso de Mano, da formação do seu olhar pela fotografia. É preciso, então, investigar como a fotografia se insinua em detetor e no que ela se dissolve como expressão.

Arrisca-se dizer que a matriz fotográfica de Mano deixou resquícios na intervenção de 1994 sob três aspectos: como técnica, ao se utilizar a matéria- -prima luz para produzir um registro, mesmo que instantâneo; como lingua- gem, às avessas, abandonada a pretensão de se criar um registro documen- tal, permanente; e como recurso mediador, entre habitat e habitante, ou mais precisamente, entre uma situação urbana que perdeu a escala humana e a individuação dos seus usuários ao se reinterpretarem naquele lugar.

Do ponto de vista da técnica, a interferência luminosa no Viaduto do Chá reporta à utilização do recurso luminoso como meio procedimental e expres- sivo para se deter, ainda que por instantes, a imagem dos entes circulantes, em especial do pedestre. Os feixes de luz, de 1,5 metro de diâmetro, “englo- bavam o corpo dos passantes quase que por inteiro; e quem se posicionasse em uma vista intermediária, viria pessoas aparecerem e desaparecerem, fi- xados na retina como fotografia fugaz”.209

209 Souza, Gabriel G. E. de. Percepções e intervenções na metrópole: a experiência do projeto Arte/Cidade em São Paulo (1994-2002). Dissertação (Mestrado) – Escola de Engenharia de São Carlos EESC-USP, São Carlos, 2006, p. 115.

Fisicamente, a opção pelo recurso da projeção de luz, por sua natureza, parece ter sido a maneira mais factível de vencer a escala urbana do viaduto, por sua ação propalada no espaço. Ao mesmo tempo, o dispositivo lumino- so etéreo é incapaz de reter uma imagem de algo ou alguém; ele ilumina o ente no espaço, mas não é capaz de registrá-lo. O suposto “fracasso” dessa operação fotográfica reitera a impossibilidade de reter a presença dos cor- pos naquela paisagem, e por extensão, na cidade. Tal impossibilidade de se registrar a imagem poderia ser analisada como uma inversão da fotografia, uma “não-fotografia”, que estaria em correspondência com a dimensão efê- mera da presença do sujeito na grande cidade.

O fenômeno é descrito por Laymert dos Santos com precisão:

Atingido pelo facho, o passante se ilumina por um momento, antes de voltar à escuridão; mas se ilumina de um modo muito peculiar: metade luz, metade sombra, seu corpo perde o volume, esvaindo-se ao mesmo tempo na superexposição e na sombra que se alonga e se perde, como o próprio facho, no fundo da cidade. Aparecimento e desaparecimento são, assim, concomitantes e complementares. O acontecimento, porém, não termina aí: mal o passante reconquistou sua dimensão habitual, e já está entrando no facho que o apanha no sentido contrário, fazendo agora de sua metade luz, sombra, e de sua metade sombra, luz. Aparecimento

e desaparecimento ocorrem então simultânea e sucessivamente.210

Orlando Maneschy identifica o princípio fotográfico de detetor como um apa- rato mecânico à semelhança dos “antigos jogos de ilusão, como lanternas mágicas, ou ainda às máquinas de tomadas de silhuetas, os desenhos foto- gênicos”,211 em que o resultado imagético não era nem retratos com identida-

de, nem possuía perenidade.

210 Santos, op. cit., 2004.

211 Maneschy, Orlando. Rubens Mano e os fluxos luminosos. II Encontro de História da Arte. Campinas: IFCH/Unicamp, 2006, p. 367.

É nesse sentido que a intervenção luminosa de Mano apontaria, segundo Brissac, para

a tentativa de resguardar as coisas da desaparição. [Ela] alude aos primórdios dos processos fotográficos, pela ausência do registro fo- tossensível, dado pelo papel. O abandono da pretensão ao registro, à catalogação, típica do fotojornalismo, é indispensável à percepção des-

ses entes fugidios.212

Como linguagem, ou contrafotografia, o dispositivo nos reporta à fotografia

s/ título [contracampo] de 1987 (fig. 1), mencionada na Introdução desta tese. A

obra dos anos 1980 traz uma paisagem desfocada, em preto e branco, cuja continuidade é interrompida por uma espécie de “buraco” luminoso intenso e perturbador. “O foco luminoso não é um reflexo e sim uma reflexão, posto que se trata de um holofote ligado e voltado para o espectador”.213 Posicionado

no chão e voltado para o espectador, o holofote de Mano mira para algo que está fora do campo do registro. A inversão do foco fotográfico fora do campo, realizada por Mano, produz como resultado um contracampo, que tem como centro o observador.

Tudo se passa, então, como se o sujeito-objeto da imagem que se vê não fosse aquilo que se encontra à nossa frente, mas sim um corpo real que entrou no raio de ação do holofote e passa a ser por ele ilu- minado: o corpo do fotógrafo e, também, o do espectador. Presente embora ausente esse corpo real-virtual se faz imagem fora da imagem,

fora do campo, no contracampo.214

212 Peixoto, Nelson Brissac. Luz. Paisagem urbana, op. cit., p. 50.

213 Santos, Laymert Garcia dos. A tecnoestética de Rubens Mano. Politizar as novas tecnologias. São Paulo: Editora 34, 2003, p. 208.

184 185 Além disso, de acordo com Maneschy, a introdução do holofote se apresenta

como um campo de ausência, uma vez que o círculo branco do canhão lu- minoso corresponde a áreas brancas na superfície do papel fotográfico não “queimadas”. Ou seja, “naquele lugar correspondente na película fílmica […] imprimiu-se uma imagem tão densa que, no momento em que a película é exposta para fazer a cópia, a luz é impedida de atravessar estes pontos de densidade”.215

Doze anos depois, em depoimento à Maneschy, o artista reconhece a re- levância desta contrafotografia para os trabalhos desenvolvidos dali em diante.

A importância dessa imagem só vai se confirmando com o tempo […]. Ela acabou ficando como uma concentração de repertório. Ela não tra- zia de primeiro todas estas questões, mas, com o passar do tempo, ela

passa a ter mais sentido do que quando foi produzida.216

A fotografia de 1987 representaria, assim, uma espécie de “grau zero” desse movimento de deslocamento do foco no campo visual da fotografia para a inclusão do espectador enquanto parte do trabalho. Mesmo que não perten- çamos à cena no ato do registro da imagem, a alteração da paisagem a partir da inserção do holofote nos inclui na obra, como o reflexo do espelho o fez na obra dos pintores holandeses do passado, convocando o público a se reco- nhecer na cena, como parte integrante da composição. Tal deslocamento da posição do observador se dá igualmente em detetor. Neste caso, ele já não é um registro fotográfico ipsis literis, mas uma virtualidade luminosa.

Como dispositivo mediador, o projeto para detetor de ausências já trazia uma intenção de pôr em relação a aceleração da cidade com a ideia de presen- ça/ausência do homem nela. No projeto, Rubens justifica a opção pela luz ao referir-se a ela como potencializadora da velocidade na cidade ao mesmo

215 Maneschy, op. cit., 2006, p. 365. 216 Rubens Mano apud ibidem, p. 366.

tempo que enfrentaria o homem com sua representação.217 Os feixes de luz

expressariam a própria experiência desmaterializada dos espaços de fluxo na cidade, onde a alternância entre ausência/presença do sujeito é um índice de sua transitoriedade.

As análises do curador Nelson Brissac sobre a intervenção de 1994 também incluíram a analogia entre luz e impermanência do sujeito na cidade: “Esses feixes de luz indicam a situação do indivíduo na metrópole: permitem que ele veja, mas também evidencia sua precariedade. As sombras dos passantes se projetam sem que lhes seja permitido qualquer registro. São uma consta- tação do seu lado anônimo”.218

Ao mesmo tempo, a fotografia possibilita, segundo o curador, “reatar o con- tato do indivíduo com o urbano”,219 colocando a escala da representação diante

do espaço urbano, e recuperando a escala humana perdida naquele contexto. Segundo Maneschy, a obra de Mano revela:

a inviabilidade de uma permanência desses corpos inscritos na luz, desvelando a dimensão do humano diante da cidade […]. Diferente- mente dos processos históricos que utilizaram o fluxo luminoso para registrar um retrato, Mano lança mão do mesmo princípio para reve-

lar que somos figuras anônimas na multidão da metrópole.220

O Rubens fotógrafo, assim, deixa de atuar num campo restrito ao meio, tra- zendo a “matéria” luz e seus procedimentos para o espaço tridimensional.

detetor seria a expressão inaugural dessa passagem, onde o processo fotográ-

fico, cuja essência reside no elo privilegiado com o real, lhe assegura um

217 Ao permitir ver e identificar, a luz “indicará também uma espécie de anulação de todo indivíduo que cruzar os cilindros, visto que sua sombra evanescente revelará a impossibilidade de qualquer re- gistro dessa passagem”. Rubens Mano apud Santos, op. cit., 2004.

218 Peixoto, op. cit., 1994.

219 Peixoto, Nelson Brissac. Luz, op. cit., pp. 50-51. 220 Maneschy, op. cit., 2006, p. 367.

acesso particular à experiência do espaço. Daí que sua atividade nuclear (fo- tográfica) despontará como uma construção plástica na forma de objetos e instalações em projetos futuros, inscritos – desde as imagens realizadas no início da década de 1990 – no novo movimento de hibridização de meios da arte contemporânea.

DESREALIZAÇÃO DA CIDADE, DESLOCALIZAÇÃO DO SUJEITO