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188 189blindados O que antes existia na cidade como centralidade, entendida como o

DESREALIZAÇÃO DA CIDADE, DESLOCALIZAÇÃO DO SUJEITO E DESLOCAMENTO DA OBRA

188 189blindados O que antes existia na cidade como centralidade, entendida como o

núcleo espacial onde se dá o encontro e se realiza plenamente o sentido público, agora é intermediado por monitores, telas multitouch e aplicativos interativos.

Aos olhos de Laymert, a desrealização da cidade, e do espaço urbano, trou- xe como consequência a experiência de deslocalização de seu habitante em sua vivência na cidade, na qual não é possível mais distinguir uma cidade da ou- tra, pois elas estão cada vez mais iguais. Tal processo tem início notadamente na experiência com os aeroportos e os hotéis, semelhante à experiência do

não- lugar de M. Augé, e em seguida com os shopping centers e as cadeias de fast-food. A abertura dos mercados teria acarretado um processo de estandar-

dização de parcelas da cidade – mesmas imagens, marcas e produtos (e, mais, segundo Koolhaas, mesma arquitetura, impessoal) – que faz com que o sujeito se descole do lugar, apenas transite, alienadamente.

É a partir da substituição da experiência do real por simulacros, “imagens de vida real fetichizada”, que Laymert lê o trabalho de Mano. Segundo o crítico, haveria dois processos correndo paralelamente no trabalho e fruto dessa expe- riência: enquanto a cidade se desrealiza (espaço virtualizado) a imagem da cidade torna-se o real (imagem real). Em detetor de ausências, ao perceber a sua própria condição de deslocalização no fluxo intenso do Viaduto do Chá, o artista busca de- marcar aquele lugar, paradoxalmente a partir de um dispositivo luminoso intan- gível, fundindo, segundo o crítico, fotografia e espaço numa única experiência.

Visto de fora, de longe, ou vivido de dentro, o detetor de ausências funcionava como um sensor captando a deslocalização do habitat e do habitante da me- galópole, registrando a sua transferência para o plano da imagem; como se o artista quisesse fundir a câmera fotográfica com o próprio espaço ur- bano fotografado para, assim, fazer uma espécie de fotografia imanente, isto é, uma fotografia que mostrasse, integradas numa experiência única,

a criação do espaço e a criação da imagem desse espaço.224

224 Santos, op. cit., 2004.

Recuperando mais detidamente a formação do tecido urbano da cidade de São Paulo, especialmente a região central (e primordial) no entorno do Viaduto do Chá, percebe-se que o fenômeno da desrealização daquele espaço urbano não é herdeiro somente da arquitetura do Bigness, nem da homoge- neização de marcas, mas de um processo histórico característico da capital paulista sobreposto a uma tendência mundial de aceleração, disseminada pelos espaços de fluxos do mundo global. A obra detetor de ausências fundaria, as- sim, a experiência particular paulistana da escala metropolitana – o anoni- mato do ser urbano nômade – somada à da virtualidade de um tipo de paisa- gem urbana que constitui as cidades globais.

Rubens parece querer, sobretudo, sinalizar (literalmente, com holofotes) a experiência de transitoriedade do sujeito na cidade, no trânsito entre as velocidades da cidade moderna e da pós-moderna.

A fim de contrapor à formulação da experiência transitória de Mano, en- tre o moderno e o pós-moderno, entre o espaço e a imagem de espaço, poder- -se-ia citar a obra de Ana Maria Tavares, artista da mesma geração, cuja boa parte de sua produção reconfigura a experiência embriagante da virtualida- de, do não-lugar, do Bigness, em diversos trabalhos realizados entre os anos 1990 e 2000. Um dos exemplos eloquentes dessa experiência é a instalação

Cityscape (figs. 20 e 21), de 2010.

A obra foi concebida para a exposição Bienal 50 Anos, mostra comemora- tiva do cinquentenário da Fundação Bienal, realizada em São Paulo. Nela, Tavares se beneficiou de uma fachada de vidro em frente ao espaço da obra, instalada no interior do Pavilhão da Bienal. Ali, a artista criou um ambien- te de sala de espera, com bancos de inox e um painel espelhado, sob o qual inscreveu palavras como “lexotan”, “credit” e “sparkling”. A superfície espelhada do painel refletia o pano de vidro de Niemeyer mutuamente, misturando o dentro e o fora e confundindo a realidade de ambos.

Tal como Mano, uma das principais características da produção de Ta- vares é a ideia de participação na obra, neste caso convocando o público a vivenciar um “espaço de estar”, numa experiência imersiva conformada por um ambiente mobiliado e sonoro. Diferentemente de Mano, a artista recorre

FIGS. 20-21 Ana Maria Tavares.

Cityscape (Parede AMT para Niemeyer),

2001

Instalação com painel em aço inox colorido e gravado, MDF, alumínio; bancos de inox; peça sonora, sensores de presença e caixas acústicas, total 125 m² (a parede é composta por 72 painéis,

medindo 4,75 × 22,8 × 0,4 m).Vista

parcial da instalação na Bienal 50 Anos, Pavilhão Ciccillo Matarazzo. Fotos: Caio Reisewitz (imagem abaixo); Carlos Kiplin (imagem acima)

quase sempre a materiais industriais de ponta, que também fazem parte do repertório arquitetônico do bigness: aço inox, vidro, superfícies espelhadas e

insulfilm. Por meio deles, Tavares projeta um espaço liso, ao mesmo tempo

embriagante e angustiante, respectivamente por sua profusão de espelha- mentos e por sua generalidade, onde “nada” acontece, a não ser a espera.

Ambos os artistas, cada um a seu modo, reconfiguram a experiência de

deslocamento que opõe dialeticamente o real e o virtual, o espaço e a imagem

de espaço. Tanto a experiência instantânea do atravessamento da luz quanto a experiência embriagante dos ambientes espelhados são modos possíveis de aproximação da arte à cidade, e vice-versa, que reagem à experiência con- temporânea da vida urbana nas grandes cidades.

Aqui, é Laymert novamente que traz uma análise precisa sobre habitar a megalópole, para o qual haveria três possibilidades: viver o processo de

deslocalização sem questionar (espectador-consumidor); viver o processo em

sua carga negativa (habitante-filósofo); ou viver o processo como positivi- dade.225 Em última instância, é pela perspectiva da positividade que o posi-

cionamento de Rubens Mano em relação à cidade se faz potente. Em detetor

de ausências, o espaço em ato produz um efeito contrário ao desenraizamento do

sujeito; nele, o artista converte os espaços de trânsito da vida urbana “su- permoderna” em locais de experiência, transformando esses espaços em atos de espacialização.

Como já mencionado ao longo desta tese, Rubens Mano elaborou algumas considerações teóricas sobre a sua própria prática artística através da pesqui- sa de mestrado. Na sua dissertação intervalo transitivo, Rubens explicita que a partir de 1990 sua produção é mobilizada pela percepção de três fenômenos urbanos próprios do período: aceleração, deslocalização e desenraizamento. Tais terminologias deixam evidente o diálogo que o artista estabelece com o crí- tico de arte Laymert dos Santos quanto às suas percepções sobre o fenômeno urbano contemporâneo.

Porém, nem só a cidade vivia tais processos. Por meio da obra calçada, se- gunda situação a ser estudada neste conjunto, perceber-se-á como a arte e suas instituições também partilham o processo de desenraizamento no mundo urbano atual, especialmente no que diz respeito ao contexto paulistano. O pontapé inicial para a elaboração da obra calçada foi dado por Rubens a partir da constatação de que o local para a sua realização (neste caso, um centro cultural da rede municipal) tinha pouca ou quase nenhuma conexão com o que acontecia do outro lado do muro que delimitava seu espaço institucional. Tratava-se da Oficina Cultural Oswald de Andrade, um dos equipamen- tos da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. O grande edifício neo- clássico da rua Três Rios, onde outrora funcionara a antiga Escola de Far- mácia no bairro do Bom Retiro, foi tombado pelo Condephaat na década de 1980 e em 1986 recebeu sua nova vocação que perdura até hoje: um espaço para abrigar oficinas culturais. Em 1990 o equipamento, que antes era cha- mado de Oficinas Culturais Três Rios, foi rebatizado como Oficina Cultural Oswald de Andrade, e passou a representar um dos polos culturais mais importantes da região central da cidade. O centro cultural oferece uma sé- rie de oficinas gratuitas nas áreas de música, artes visuais, dança e tea- tro, e como tal tem um público cativo, de feição especialmente jovem. Seu entorno é ocupado pela miscigenação típica do bairro do Bom Retiro, que, historicamente, recebeu ondas distintas de migração – desde os primeiros judeus e árabes protagonistas do comércio local, passando pela migração nordestina, até chegar nos coreanos e bolivianos, que configuram o mosai- co social mais recente.

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