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A ideia de “espaço entre” na produção de Rubens implica o atravessamento entre espaço fechado e espaço aberto. Do ponto de vista da arquitetura, ela pressupõe um espaço de transição – principalmente entre espaços público e privado –, e foi formulada como um dos problemas centrais do campo arquitetônico no último Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (ciam), em 1959, realizado em Otterlo. Um dos seus principais formulado- res foi o arquiteto holandês Aldo Van Eyck, membro do grupo team 10, cujo protagonismo naquele congresso foi decisivo para uma frente crítica sobre os preceitos modernistas funcionalistas. Naquela ocasião, Van Eyck lançou o conceito de espaço “in-between”, por meio do qual buscava promover um fluxo contínuo entre dois lugares.

De acordo com a arquiteta e pesquisadora Ana Barone,

Sua proposta estava no estabelecimento de uma arquitetura que desse conta dos espaços de transição, lugares onde as polaridades pudes- sem interagir. Como exemplo, ele propõe a reflexão sobre uma por- ta, como limite entre duas situações antagônicas: dentro e fora. Sua ideia era interpretar a porta não mais como um limite, mas como, ela mesma, um espaço, um lugar em que as polaridades “dentro” e “fora” pudessem se esfumaçar e se interpenetrar para gerar uma nova

consciência espacial.233

Na palestra “Is Architecture Going to Reconcile Basic Values?”, proferida por Van Eyck em 1959, o arquiteto busca o sentido de conciliação dessas polaridades conflituosas, que, no limite, se dariam entre o indivíduo e a sociedade, o habitante e a cidade:

233 Barone, Ana Claudia Castilho. Team 10 – arquitetura como crítica. Dissertação (Mestrado em Histó- ria e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – FAU- -USP, São Paulo, 2000, p. 65.

O homem ainda respira tanto dentro como fora; quando a arquitetu- ra vai fazer o mesmo? […] Nós simplesmente não podemos respirar apenas numa direção – podemos aguentar prender a respiração por apenas um tempo muito curto. A arquitetura moderna tem se esfor- çado em respirar apenas para fora sem respirar pra dentro – e isso é tão sufocante quanto o contrário –; em todo caso, o resultado é o mesmo. Você não pode abrir sem fechar. Você não pode simplesmente divi- dir fenômenos duplos em polaridades […]. Estabelecer o “inbetween” é reconciliar as polaridades conflitantes. Proveja o local onde eles pos- sam trocar e você restabelecerá o fenômeno duplo original. […] Por exemplo: o mundo da casa, comigo dentro e você fora, ou vice-versa; há também o mundo da rua – a cidade – com você dentro e eu fora, ou vice-versa. Entenda o que quero dizer: dois mundos chocando-se, sem transição. O indivíduo em um lugar, o coletivo, em outro. Entre os dois, a sociedade em geral, lança muitas barreiras, enquanto os ar- quitetos em particular são tão pobres de espírito que fornecem portas de dois centímetros de espessura e seis pés de altura. […] Toda vez que passamos por uma porta como essa, dividimo-la em dois – mas não reparamos mais. Essa é a realidade de uma porta? […] Uma porta é um lugar feito para uma ocasião que se repete milhões de vezes na vida

entre a primeira entrada e a última saída.234

234 “Man still breathes both in and out; when is architecture going to do the same? […] We simply cannot breathe only one way – we can hold our breath for only a very short time. Modern architec- ture has been trying hard to breathe only out without breathing in – and that is just as stifling a thing to do as the opposite – at any rate the result is the same. You cannot open up unless you enclose. You can’t just Split dual phenomena into polarities and alternate your loyalty from one to the other without causing despair. […] To establish the ‘inbetween’ is to reconcile conflicting polarities. Provide the place where they can interchange and you re-establish the original dual phenomena. […] Take an example: the world of the house with me inside and you outside or vice versa, there is also the world of the street – the city – with you inside and me outside or vice versa. Get what I mean: two worlds clashing, no transition. The individual on one site, the collective on the other. Between the two, soci- ety in general, throws up lots of barriers, whilst architects in particular are so poor in spirit that they provide doors two inches thick and six foot high. […] Every time we pass through a door like that,

A porta, assim, era citada como exemplo de zona de transição espacial e fun- cional entre o público e o privado, dando lugar à experiência do atravessamen- to, da transversalidade, da permeabilidade, ainda que em pequena escala.

A figura espacial do in-between de Van Eyck também foi desenvolvida por outros autores, a exemplo de Bernard Tschumi e Julio Arroyo. No primeiro caso, a zona de fronteira entre dois espaços é definida pelo arquiteto suíço mais em termos de contaminação do que simplesmente uma linha divisó- ria.235 No caso de Arroyo, ela se expressaria em termos de borda:

o termo borda se associa não só com a ideia de um fechamento que deslinda campos com precisão, como também com um estado ou si- tuação intermediária entre duas áreas ou regiões adjacentes. A borda no espaço arquitetônico é uma franja, uma área ou espaço de borda que se pode produzir e experimentar através de práticas subjetivas como um espaço predominantemente linear. Neste sentido, o espaço de borda se percorre com a consciência de estar em um espaço diferen- ciado que encerra um lugar […] ou que separa áreas diferentes, que ficam lateralizadas pelo percurso (borda como trânsito entre lugares). […] é o limite que marca a abertura ou fechamento para outro lugar

distinto, dando lugar à experiência do atravessamento.236

Tanto em calçada como em vazadores (proposição analisada a seguir) as situações se definem pelas figuras espaciais da fronteira e da borda – entendida como linha divisória entre dois espaços –, constituídas pelos elementos arquitetô-

we have split in two – but we don’t take notice any more. Is that the reality of a door? […] A door is a place made for an occasion that is repeated millions of times in a lifetime between the first entry and the last exit”. Van Eyck, Aldo. Is Architecture Going to Reconcile Basic Values? Neuman, Oscar (ed.).

CIAM’59 in Otterlo. Londres: Alec Tiranti, 1961, pp. 27-28.

235 Bernard Tchumi apud Sales, op. cit., p. 141.

236 Arroyo, Julio. Bordas e espaço público. Fronteiras internas na cidade contemporânea, Arquitextos, São Paulo, ano 7, n. 081.02, Vitruvius, fev. 2007. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revis- tas/read/arquitextos/07.081/269>. Acesso em 3 dez. 2017.

205 nicos ali encontrados. Ao intervir sobre elas, Mano as dissolve na experiência do atravessamento e faz delas uma obra-arquitetura. Algo que já se insinuava na fotografia de casa verde, porém neste caso ainda restrita a uma apreensão visual da imagem. Lidos como trabalhos in-between, ambas as proposições de Mano procuram estabelecer zonas de contaminação entre o espaço aberto (da cidade) e o espaço fechado (da instituição), e entre o espaço legitimado da arte e o espaço da “não-arte” (das outras esferas da vida cotidiana extra-artísticas). No exemplo de calçada, paradoxalmente, a adesão à obra parece se cum- prir por sua funcionalidade, algo que a arte moderna jamais reivindicou; porém, essa aplicabilidade não teria um fim em si mesma, mas serve como estratagema para algo exterior à própria obra, qual seja a de cativar o público e efetivar a conexão entre o dentro e o fora do mundo da arte, refundando um nexo entre os dois.