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A profecia do escritor Stefan Zweig que deu nome ao seu livro Brasil, um país

do futuro,287 publicado em 1941, parece ter relampejado em poucos momentos

na história do país de lá para cá. O mais conhecido deles foi certamente a construção de Brasília, em 1960, que fincou a bandeira da capital federal, segundo seus princípios modernos, em meio à vasta terra virgem do cerra- do na região central do país. Na história mais recente, a promessa também ressurgiu em meados dos anos 2000, como um despertar do “gigante ador- mecido”, durante o chamado “boom das commodites”, que coincidiu com o go- verno Lula, e no qual o país se “salvou” da crise mundial financeira de 2008 e se alinhou ao novo bloco econômico dos BRIC (acrônimo de Brasil, Rússia, Índia e China).

Apesar da profecia não ter consolidado suas bases estruturantes com vistas a superar o atraso civilizatório de um país marcado pela herança colonial es- cravocrata (e que mantém, todavia, suas constradições sociais e territoriais), o imaginário da vocação moderna do Brasil como uma nação voltada para o futuro está impregnado por toda parte. A bem dizer, ele é devedor da atuação de Juscelino Kubitschek, que na figura de presidente do Brasil lançou o slogan “50 anos em 5”, pelo qual pretendia estabelecer o programa nacional desenvol- vimentista e com ele colocar o país nos trilhos do progresso rumo ao futuro. Em seu livro de memórias, JK expõe o tom otimista do passado, simbolizado no projeto da nova capital federal. Segundo ele, Brasília deveria:

constituir a base de irradiação de um sistema desbravador [de desen- volvimento] […], teria de ser, forçosamente, uma metrópole com ca- racterísticas diferentes, que ignorasse a realidade contemporânea e se

voltasse, com todos os seus elementos constitutivos, para o futuro.288

287 Zweig, Stefan. Brasil, um país do futuro [1ª edição 1941]. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2006. 288 Juscelino Kubitschek apud Holston, James. Libertem o espírito de Brasília [1989/2010]. Xavier, Al- berto e Katinsky, Julio (orgs.). Brasília: antologia crítica. São Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 307.

252 253 Brasília constitui o principal ícone de uma nação vocacionada para o que virá.

A implantação de um discurso oficial promissor corroborou, ao mesmo tem- po, a crença do nascimento de um novo modo de vida no país:

Muitos imaginavam que o universo de inovações da cidade modernis- ta […] produziria um estranhamento radical que daria origem, nas palavras do relatório de 1963 da Novacap […] à inexistência de discri- minação de classes sociais […], e assim [seria] educada, no Planalto, a infância que construirá o Brasil de amanhã, já que Brasília é o glorio-

so berço de uma nova civilização.289

De acordo com o antropólogo estadunidense James Holston, que pesquisou a capital federal e os viveres de seus primeiros habitantes – chamados can- dangos –, não só o poder público acreditava na possibilidade de uma “nação brasiliense”, mas os próprios migrantes que aportaram na futura capital sentiam uma energia promissora e aberta ao experimental (nos termos de Holston):

Os pioneiros acreditavam que os experimentos de Brasília introduzi- riam novos hábitos sociais, instituições e padrões como modelos que transformariam tudo ao seu redor. Eles acreditavam em criar uma vida urbana brasiliense diferente não pelo exotismo, mas para esta- belecer uma arena de experimentação na qual se resolvessem impor-

tantes problemas nacionais.290

Dois anos depois da inaguração de Brasília, esse mesmo “vir a ser” brasilien- se era ironizado pela escritora Clarice Lispector em sua crônica sobre a capi- tal: “Brasília é artificial. Tão artificial como devia ter sido o mundo quando

289 Holston, op. cit., p. 307. 290 Ibidem, pp. 308-309.

foi criado. Quando o mundo foi criado, foi preciso criar um homem especial- mente para aquele mundo”.291 Como se sabe, a ideia de uma humanidade

reprogramada é um embuste. No lugar dela, seus habitantes foram aos pou- cos imprimindo suas marcas naquele território, ainda que apartados social, econômico e espacialmente do plano piloto. Duas décadas mais tarde, eles se viram novamente de mãos atadas diante do tombamento como patrimônio histórico e cultural,292 já que a cidade “oficial” não poderia mais crescer nem

sofrer qualquer alteração em seu projeto original.

O imaginário moderno de Brasília não está somente no “espírito novo” (l’esprit nouveau) de seus viveres, mas aparece com frequência nas formas si- nuosas assinadas pelo arquiteto. Sabe-se que a sensibilidade plástica de Niemeyer impregnou o vocabulário construtivo das cidades-satélites e se espraiou Brasil afora. A repercurssão simbólica dos edifícios do eixo monu- mental é apontada pelo historiador e arquiteto argentino Adrián Gorelik na seguinte passagem:

Sabe-se, por exemplo, que as tão características colunas do Palácio da Alvorada foram incorporadas maciçamente ao imaginário popular em todo o Brasil, reproduzidas em modestas arquiteturas populares como ícone de uma vontade de modernidade nacional e folclórica. Isso não é só um indício da aceitação popular de um “estilo” Brasília, mas tam- bém da capacidade de Niemeyer como produtor de símbolos – como

icon giver –, cuja eficácia comunicativa deveria ser uma das vias de com-

preensão do fenômeno Brasília e de seu lugar específico na moderni-

dade ocidental.293

291 Lispector, Clarice. Brasília [1962]. Para não esquecer: crônicas. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 40. 292 O plano piloto de Brasília foi tombado primeiramente pela Unesco, em meados dos anos 1980, e, depois, pelo Iphan em 1990. Cabe lembrar ainda que, antes disso, alguns edifícios já tinham sido preservados, tais como o Catetinho, em 1959, e a Catedral, em 1967.

A capacidade plástica impressa nas soluções arquitetônicas de Niemeyer si- nalizada por Gorelik nos edifícios públicos de Brasília já tinha sido comen- tada pela historiadora da arquitetura Françoise Choay momentos antes da inauguração da nova capital federal:

Quanto à arquitetura propriamente dita dos diferentes prédios em es- trutura de concreto, caracteriza-se pelo uso, à frente das simples cai- xas envidraçadas, de uma espécie de cortina servindo tanto de apoio como de contraventamento e quebra-sol, e que, do teto plano em ba- lanço até o piso, recorta o espaço por meio de fantásticos arabescos. Os

edifícios públicos tornam-se grandes esculturas vazadas.294

Para a historiadora francesa, essas soluções construtivas demonstravam que a arquitetura também servia como deleite visual:

A obra de Niemeyer vem reabilitar a arquitetura como permanen- te deleite visual. Vem nos mostrar que uma grande cidade moderna não é necessariamente sinônimo de tédio provocado por arranha- -céus padronizados e que, pelo contrário, pode ser impregnada de

um valor poético.295

294 Choay, Françoise. Brasília – uma capital pré-fabricada [1959]. Xavier e Katinsky (orgs.), op. cit., p. 63. 295 Ibidem, p. 64.