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A partir do panorama esboçado – da arte, da cidade e da crítica –, será preciso tecer ainda algumas considerações sobre a segunda edição do Arte/Cidade de 1994, na qual Rubens Mano realizou a obra detetor de ausências. Especialmen- te quanto às intenções curatoriais de Brissac e as especificidades daquele contexto urbano na cidade de São Paulo. De antemão, A cidade e seus fluxos não oferecia um determinado espaço expositivo, mas uma zona imprecisa, de escala metropolitana, representada por um “espaço entre” edifícios que marcavam sua extensão: o prédio da Light, a antiga sede do Banco do Brasil e o edifício Guanabara.

Nesta segunda edição, a abertura para a cidade fez com que seus par- ticipantes confrontassem outros desafios: ao invés de trabalhar num es- paço protegido que garantisse uma situação especial para a fruição dos trabalhos, como o conjunto edificado do antigo Matadouro, a escolha da curadoria impunha uma área de fluxo visualmente ruidosa, com sobre- posição de diversos extratos de circulação intensa, cujas travessias eram feitas por olhares fugazes perante a metrópole, opostamente a uma dis- ponibilidade do olhar para a apreensão das obras em locais institucio- nais protegidos e codificados.

O projeto curatorial do Arte/Cidade 2 elegera, assim, uma situação de movimentação intensa da cidade de São Paulo, característica de sua me- tropolização. O entorno do Vale do Anhangabaú acumula extratos de diferentes escalas de trânsito e circulação urbana; nele estão contidos um rio histórico canalizado, vias expressas de fluxo automobilístico in- tenso, dois viadutos que transpõem o vale e um extenso parque com pequenas áreas ajardinadas, cuja superfície seca possibilita o desloca- mento peatonal entre o centro novo e o centro velho. Além disso, o vale expressa um espaço de cruzamentos historicamente ligado ao cresci- mento da cidade, ao representar a geografia primordial de São Paulo,

168 169 sendo o Viaduto do Chá a sua construção fundamental.191 Nas palavras

do arquiteto Angelo Bucci:

Eles representam os dois elementos fundantes da nossa cultura cons- trutiva. Geografia primordial porque no Anhangabaú comparecem condensados elementos recorrentes da base física da implantação da cidade: a várzea e o patamar de terra firme e, junto deles, todos os valores e ocupações típicas que se imprimiram a cada um. Constru- ção fundamental porque o Viaduto do Chá equivale, simbolicamente, à superação. Durante os seus três primeiros séculos de existência, a cidade de São Paulo esteve restrita ao seu sítio de implantação inau- gural, no chamado “triângulo histórico” ao leste do Anhangabaú [co- nhecido por “centro velho”]. Depois disso, […] a cidade lutara para vencer a dificuldade imposta pela dramática geografia da garganta do Anhangabaú […], durante um século a cidade inteira sonhara

com a passagem em nível.192

Voltar o olhar novamente para a historicidade deste lugar, que foi relegado por décadas, parecia ser um ponto crucial para se pensar aquela cidade.

A complexidade do contexto urbano escolhido para a realização do Arte/

cidade 2 também abarcava a condição momentânea das três construções que

delimitavam o raio de alcance do projeto: todas elas se encontravam em es- tágio de reconversão de uso, uma vez que tinham sido relegadas ao abandono por décadas, em decorrência da evasão do centro histórico de São Paulo por empresas e pelo próprio poder público. Por trás disso, emergia um processo estratégico de revalorização da zona central da cidade após um longo período

191 O Viaduto do Chá é um símbolo da conquista do homem sobre a natureza acidentada do territó- rio paulistano, e que ainda se encontra no imaginário arquitetônico. A primeira construção data de 1892 e foi concebida por Jules Martin; a segunda versão do viaduto, e que persiste até hoje, foi proje- tada por Elisario Bahiana, em 1938. Bucci, op. cit., p. 33.

192 Ibidem, pp. 33-34.

de “obsolescência programada”. Pensar nos fluxos da cidade, portanto, não se restringia a provocar um deslocamento espacial no território, mas con- vidava a pensar os processos históricos envolvidos na configuração daquela região primordial da cidade e seus significados atuais.

Ao mesmo tempo, instaurado num lugar de trânsito, o segundo Arte/Ci-

dade exigiu do público uma disposição peatonal para alcançar os trabalhos,

ao percorrer a distância entre os três edifícios envolvidos. Ao longo dos per- cursos, o público não só se deparava com as obras realizadas para o projeto; seu deslocamento implicava a fruição da paisagem urbana, atravessado pela grande perspectiva do vale.

Ao invés de uma localização, a situação aportada aqui era a de um deslo- camento, um transitar entre as coisas. Mas, para o curador da mostra, não se tratava de simplesmente criar um percurso de um lugar para o outro; a ideia era “produzir um movimento que afetasse simultaneamente todo o es- paço”.193 Inúmeros caminhos eram possíveis. A situação buscada exigiria que

o público tomasse parte do fluxo urbano, como pretendia seu idealizador. Sobre a edição do Arte/Cidade 2, parte da crítica especializada reagiu à épo- ca com ressalvas, e por vezes identificou no projeto as evidências de uma relação problemática entre arte e percepção urbana. Para alguns, o embate fundamental dos fluxos metropolitanos acabou por coibir a arte de sua po- tência estética (em outras palavras, a curadoria se sobressaia aos trabalhos e a escala da cidade os amortecia).

Aos olhos de Lorenzo Mammì, “curiosamente, os artistas que mais se deram bem foram aqueles que mais resistiram à aceleração imposta pelo ambiente, propondo peças que exigem um olhar demorado, uma certa sus- pensão temporal”.194 Iole de Freitas, Arthur Lescher e Waltercio Caldas são

os exemplos citados pelo crítico de arte, sendo que todos eles tinham obras expostas em recintos fechados “protegidos”.

193 Peixoto, Nelson Brissac. Arte/Cidade: a cidade e seus fluxos, op. cit., 1994, s.p.

194 Mammì, Lorenzo. Novo “Arte/Cidade” fica aquém do esperado, O Estado de S. Paulo, Cultura, 8 out. 1994, p. Q1.

Aqueles que optaram por sair às ruas, segundo Mammì, acabaram incor- rendo em redundância, e só reafirmaram o que já estava embutido na tese central do projeto. “Postos no meio do trânsito, colocados de maneira a esti- mular a atenção flutuante do público, [os trabalhos] tenderam a acelerar ain- da mais o fluxo, remetendo freneticamente a outros espaços, ou inventando gags visuais instantâneas”.195 De acordo com o crítico, Rubens Mano foi um

dos raros artistas que tiveram êxito em lidar com a escala metropolitana:

Entre os artistas que mais se expuseram ao movimento convulsivo da cidade, o único a ter encontrado o tom certo me parece ser Rubens Mano, com seus dois holofotes apontados contra os passantes do Via- duto do Chá. Luz fortíssima, que realça e ao mesmo tempo queima as

figuras, sublinha e apaga o movimento.196

Na mesma direção, a crítica de Alberto Tassinari considerou que a escala do Anhangabaú teria inibido a intensidade estética da grande maioria dos tra- balhos: “O clima é repetidamente lúdico, como se as obras tivessem imitado as proezas – malabarísticas, eletrônicas, e tantas outras – que se espalham pelos calçadões e galerias do centro da cidade. Do simplesmente lúdico para o estético, porém, poucos dão bem o salto”.197

No primeiro Arte/Cidade que se abria francamente à cidade, não foi sim- ples – e isso é compreensível – enfrentar aquela escala imensa. Conforme ponderou a crítica de arte Lisette Lagnado, “a tarefa de estabelecer uma re- lação entre os dois enunciados do projeto, isto é arte e cidade, coloca uma exigência primordial: obra e espaço devem propiciar a impregnação física de um no outro”.198 Porém, segundo ela, nem todos os artistas se despuseram a

195 Ibidem. 196 Ibidem.

197 Tassinari, Alberto. Escala do espaço parece ter inibido intensidade estética, O Estado de S. Paulo, Cultura, 8 out. 1994, p. Q1.

198 Lagnado, op. cit.

enfrentar o problema; dentre os raros artistas que encaram a urbe para valer, Mano aparece novamente como um exemplo de relativo êxito:

as instalações mais atentas à escala da cidade não foram realizadas pelos artistas plásticos. É o caso do fotógrafo Rubens Mano, autor do fascinante projeto de iluminação, detetor de ausências […]. À noite, a luz destes poderosos faróis atravessa horizontalmente os pedestres do Via- duto do Chá, projetando suas sombras e multiplicando a questão do

anonimato.199

Percebe-se aí que nem os artistas nem tampouco os críticos estavam habitua- dos a lidar com a realidade “não-institucional”, em espaços extramuros. De certa forma, o projeto de Brissac abriria um caminho potente a se explorar, pelo qual Rubens seguirá despontando como um dos artistas mais interes- santes e contundentes da geração paulistana.