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A dobra como linguagem aberta

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II.1 Situação hermenêutica

II.1.3 A dobra como linguagem aberta

A filosofia depende da linguagem. Seguindo a tradição linguística francesa da lin- guagem, como em Ferdinand de Saussure, a linguagem é a realidade antropológica e cultu- ral. Conforme notado anteriormente, a linguagem ocupa um lugar privilegiado no pensa- mento de Ricoeur e a citação que se segue ilustra, inicialmente, a importância da linguagem e sua posição em relação à religião:

A interpretação da linguagem religiosa pode ocupar dois lugares diferentes no empreendimento filosófico: enquanto fonte não-filosófica da filosofia, este lugar é central, mas (...) mesmo a partir deste ponto de vista, o qual denomino algumas vezes de motivação, o senso para a ação humana, as preocupações morais e políticas constituem, para mim, o centro de interes- ses distintos que não são absorvidos inteiramente na preocupação para a re- ligião. Em vez disso, eu falarei de uma constelação primitiva de interesses na qual a preocupação religiosa é ao mesmo tempo central e periférica. Se nós levarmos em consideração agora o discurso filosófico, a questão do lu- gar da experiência e da linguagem religiosa exige uma resposta completa- mente diferente (...). Eu sustento a autonomia do discurso filosófico, como gosto de repetir, e assumo a responsabilidade que ele coloca. A filosofia cuida de si mesma. Mas, isso não quer dizer que o problema da linguagem religiosa desapareceu do horizonte. Da fonte mais ou menos central, tor- nam-se temas mais ou menos periféricos. É tematizada como linguagem, como uma linguagem entre as demais (...), um modo de interpretação den- tro outros.332

330 VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 109. 331 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 236.

332 “L’interprétation du langage religieux peut occuper deux places différentes dans l’entreprise philosophique :

A constelação primitiva de interesses que cercam a religião, mencionada por Ri- coeur, constituem características da dobra da religião na linguagem. Preserva-se a autono- mia do discurso filosófico e busca-se outra contribuição mais para o pensamento: a origina- lidade da religião no ato filosófico. A abordagem filosófica de Ricoeur no estudo da lingua- gem é da filosofia reflexiva.333 O trabalho sobre Lachelier e Lagneau constituiu a primeira etapa do contato de Ricoeur com a filosofia reflexiva francesa e foi aprofundado com Jean Nabert. A fase pré-fenomenologia em Ricoeur, situada na abordagem reflexiva, é despertada como um pensamento que não se limita na determinação dos objetos, mas que se fortalece no retorno da própria reflexão ao se interrogar sobre as próprias operações filosóficas.334 O encontro com a fenomenologia aprimora tal tarefa. A reflexão não é primeira, mas segunda. De acordo com Ricoeur, “a contribuição da fenomenologia consiste em subordinar a refle- xão no ato intencional e tratá-la como um ato segundo que se volta ao primeiro ato da saída de si”335. A abordagem reflexiva é preenchida pela fenomenologia husserliana e se faz pre- sente pelo restante de sua obra.

Motivado pela filosofia reflexiva, do início de sua carreira, a hermenêutica de Paul Ricoeur implica numa vida examinada como uma vida narrada. Este é o grande empreendi- mento da sua obra Tempo e Narrativa: a temporalidade não se deixa dizer no discurso direto de uma fenomenologia, mas requer a mediação do discurso indireto da narração.336 A finitu- de ameaça o ser. A narrativa assumem múltiplas direções do ser possível, de modo que o acesso a si-mesmo é sempre indireto e mediado. A identidade narrativa é, pela mediação das

de vue, que j’appelle parfois celui de la motivation, le sens pour l’action humaine, les préoccupations morales et politiques constituent pour moi des centre d’intérêt distincts que ne sont pas entièrement absorbés dans la préoccupation pour la religion. À la place, je parlerai d’une constellation primitive d’intérêts dans laquelle la préoccupation religieuse est tour à tour centrale et périphérique. Si l’on prend maintenant en considération du discours philosophique, la question de la place de l’expérience et du langage religieux appelle une réponse entièrement différente (...). Je maintiens que le discours philosophique est autonome, comme j’aime à le répéter, et assume la responsabilité de lui-même. La philosophie prend soin d’elle-même. Mais cela ne veut pais dire que le problème du langage religieux a disparu de l’horizon. De source plus ou moins centrale, il devient thème plus ou moins périphérique. Il est avant tout thématisé comme langage, et donc un langage parmi d’autres (...), un mode d’interprétations parmi d’autres... ”. RICOEUR, Paul. L’herméneutique biblique. Le Cerf: Paris, 2001, p. 103-104.

333 Cf. RICOEUR, Paul. Du tete à l’action: Essais d’hermenéutique II, Paris: Seuil, 1986, p. 29.

334 Cf. RICOEUR, Paul. In: “Entretien avec Paul Ricoeur: Questions de Jean-Michel Le Lannou”, Revue des

sciences philosophiques et théologiques, 74, 1990, p. 91.

335 “L’apport de la phénoménologie a consisté à subordonner la réflexion à l’acte intentionnel et à la traiter

comme un acte second de retour sur un premier acte de sortie de soi.” RICOEUR, Paul. In: “Entretien avec Paul Ricoeur: Questions de Jean-Michel Le Lannou”, Revue des sciences philosophiques et théologiques, 74, 1990, p. 88.

produções culturais, uma hermenêutica do si-mesmo. O desvio representa uma das caracte- rísticas da dobra. As aporias da experiência do tempo na descoberta do si é o próprio fazer filosófico de Tempo e Narrativa, onde “o texto informa a vida, a vida formula o texto, a vida é transformada à luz de mundos abertos pelo texto, os textos são criados e formados pela multiplicidade de novas experiências da vida”337. Pela dinâmica entre a concordância e a discordância das interpretações é possível descobrir a identidade narrativa nos desvios da hermenêutica do si. No intentio o espírito sofre distentio.338 “O ponto central em sua argu- mentação sobre a identidade narrativa é de que a relação entre individualidade e identidade precisa ser entendida dialeticamente”339. A identidade, na condição da individualidade, re- quer narrativa para que o sentido repouse no indivíduo. É importante para a tese da dobra da religião levar em consideração a condição da narrativa: sendo a narrativa não isenta de mo- ralidade, toda narração implica em ação e moral. O processo da identidade narrativa se dá, portanto, num desenrolar de si mesmo como sujeito na relação e que assume ações morais. Diferente do ego narcisista, a identidade narrativa – o relacionamento do indivíduo, ao des- cobrir sua condição de sujeito diante dos outros indivíduos e, na preocupação central de Ricoeur, diante de textos que lhe são narrados – é o descolamento do ego para o si mesmo instruído por símbolos culturais.340 A noção da identidade narrativa, que se dá pela busca do conhecimento de si, é importante para o movimento da dobra da religião, pois refere-se à hermenêutica do si que tem na tradição religiosa elementos para o trabalho do cogito que- brado.

A apropriação da leitura de qualquer texto ou narrativa deve ser antecipada por dis- tanciamento.341 Não há propriedade real da leitura sem um distanciamento primeiro. A her- menêutica da desconfiança e o processo de distanciamento caracterizam a base metodológi- ca de Ricoeur.342 A tarefa hermenêutica não estaria completa se o texto, na dialética do evento e do sentido, não invocasse a ação. Um dos aspectos caracterizantes do projeto her-

337 Cf. GSCHWANDTNER, Christina. “Paul Ricoeur and the Relationship Between Philosophical and Religion

in Contemporary French Phenomenology”. In: Études Ricoeuriennes, Vol 3, No. 2, 2012, p. 17.

338 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, Vol. 1., p. 38. 339 PELLAUER, David. Compreender Ricoeur, 2009, p. 136.

340 Cf. WOOD, David In: WOOD, David (Org.) On Paul Ricoeur: Narrative and Interpretation. London and New

York: Routledge, 1991, p. 11.

341 Cf. RICOEUR, Paul. “La tâche de l’herméneutique”, In: BOVON, F. ROUILLER, G. (Eds) Exegesis. Pro-

blèmes de méthode et exercices de lecture. Neuchâtel: Paris, Delachaux & Niestlé, 1975, p. 203. (pp. 201- 215).

menêutico de Ricoeur é o seu engajamento com a vida. O engajamento é refletido em suas reflexões sobre o comprometimento do texto com a ação. É necessário ao leitor mover-se do texto à ação para alcançar a plenitude da linguagem.343 A língua, ao articular evento e senti- do, ultrapassa seus próprios sistemas e ingressa no processo de compreensão. Em outras palavras: “se a linguagem é um meinen, uma visada significante, é precisamente em virtude dessa ultrapassagem do evento da significação”.344 A função da linguagem, tanto na dinâmi- ca da discurso enquanto obra como a noção e sujeito de discurso, exalta a relação entre fala e escrita. A “coisa” do texto, de Gadamer, i.e., a autonomia do texto, que se desprendeu do horizonte intencional finito do autor, pretende o mundo do texto.345 Todo discurso encontra- se com a realidade, independente de sua abordagem (descritivo, constatativo, didático), e todo texto se liberta da intenção do autor. Conforme conclui Ricoeur, “o que deve ser inter- pretado, num texto, é uma proposição de mundo, de um mundo tal como posso habitá-lo para nele projetar um de meus possíveis mais próprios”346. É isto o que Ricoeur chama de mundo do texto, o mundo próprio ao texto único.

Para o exercício da leitura e o acesso ao mundo do texto deve haver correspondência entre o ato da leitura e a vida do leitor de modo que a consciência faça parte do mundo e parte de si mesma.347 A dimensão da noção de texto implica num compreender-se diante da obra. Lego ut intelligam – “eu leio para compreender”. A identidade do si é interpelada pe- las narrativas. A redação confere ao texto, imediatamente, independência relativa à seu con- texto e ao seu autor. O texto encarna a polissemia das palavras e possibilita a variedade de interpretações possíveis dentro de si mesmo. Enquanto para Gadamer não é possível escapar do círculo hermenêutico, para Ricoeur, no distanciamento enriquecedor da reflexão do si, há a possibilidade da incorporação da dialética entre explicação e compreensão. Esta metodo- logia satisfaz, segundo o filósofo, as exigências da compreensão no círculo hermenêutico.348

343 No caso da religião, a ação é mediada pelo símbolo em meio as fraturas e quebras da existência humana. “La

structure symbolique de l'action”, In: Actes de la 14e Conférence internationale de sociologie des religions (Symbolisme), Strasbourg, Lille, Secrétariat C.I.S.R., 1977, p. .

344 RICOEUR, Paul. “A função hermenêutica do distancioamento”, In: Interpretação e Ideologias, 1990, p. 47. 345 RICOEUR, Paul. “A função hermenêutica do distancioamento”, In: Interpretação e Ideologias, 1990, p. 54-

57.

346 RICOEUR, Paul. “A função hermenêutica do distancioamento”, In: Interpretação e Ideologias, 1990, p. 56. 347 “Il n’y a pas d'intuition unitive, pas de savoir absolu dans lequel la conscience prendrait à la fois conscience

de l’absolu et de soi-même.” RICOEUR, Paul. “Herméneutique de l’idée de révélation”, In: La révélation (collectif), Bruxelles: Faculté Saint-Louis, 1977, p. 51.

É necessário haver tanto uma teoria da interpretação como de explicação para que não se caia em um relativismo.

O distanciamento – herança de Kant, na metodologia da primeira e a segunda inge- nuidade349 – recorrente no processo de auto-reconhecimento, individual ou comunitário, inclui a explicação, que é tanto a descrição técnica dos elementos do texto como a verifica- ção das possibilidades de existência que o texto apresenta ao leitor.350 Neste momento, a variação imaginária, em seu papel de ficção, oferece ao leitor uma possibilidade de verifica- ção de sua própria realidade onde o tempo presente encontra outras possibilidades diante da realidade que o instiga.351 “Doravante, compreender é compreender a si mesmo diante do texto. Não é uma questão de impor a nossa capacidade finita de compreensão sobre o texto, mas de expor-nos ao texto e receber dele um alargamento de si”, escreve Ricoeur e conclui: “a metamorfose do jogo do mundo também é a jogada da metamorfose do ego”.352

A hermenêutica do texto depende da hermenêutica da ação na recomposição do ser humano na tarefa do conhecimento de si mesmo.353 Tal dinâmica implica em um alargamen- to do ser, cujo movimento implica em dobras. Filosofia e teologia, enquanto pensamentos sistematizados de um conhecimento, encontram-se na fronteira onde acontece o diálogo entre texto e ação, narrativa e vida, teoria e prática. A fronteira denota o limite das aborda- gens filosóficas e teológicas, valorizando-as e promovendo um novo evento na linguagem: o pensamento com plicas, com dobras, i.e., um pensamento complicado por natureza. A dis- tinção que advém do pensamento permite a interação das especificidades do filosófico no teológico e do teológico no filosófico. Em suma, diante da dualidade inerente em Ricoeur, a adesão religiosa previne a teologia de ameaças filosóficas, enquanto o agnosticismo meto- dológico abre a pesquisa para as tradições filosóficas. É justamente por Ricoeur manter a

349 Cf. WALLACE, Mark I. The Second Naiveté: Barth, Ricoeur, and the New Yale Theology. Mercer University

Press, Macon, Georgia, 1995, p. 81.

350 Cf. RICOEUR, Paul. “A função hermenêutica do distancioamento”, In: Interpretação e Ideologias, 1990, p.

57.

351 RICOEUR, Paul. “La fonction herméneutique de la distanciation”, in BOVON, F. ROUILLER, G. (Eds)

Exegesis. Problèmes de méthode et exercices de lecture. Neuchâtel: Paris, Delachaux & Niestlé, 1975, p. 211.

352 “Henceforth, to understand is to understand oneself in front of the text. It is not a question of imposing upon

the text our finite capacity for understanding, but of exposing ourselves to the text and receiving from it an enlarged self (...) the metamorphosis of the world in play is also the playful metamorphosis of the ego”, RI- COEUR, Paul. From Text to Action, 1991, p. 88.

aporia em tensão e, conforme destacou Christina Gschwandtner354 acerca desta dualidade em diálogo, por preservar a integridade dos discursos, que o diálogo genuíno pode ser pos- sível e a imaginação e a simpatia possibilitam novas interpretações complicadas – com vá- rias dobras.

A dobra da religião não é um desvio que remove o pensamento de Ricoeur de seu centro, alcançando respostas religiosas. Assim seria se o pensamento de Ricoeur fosse linear e teológico. Não se trata, igualmente, da superação da ontologia, como tampouco da subtra- ção da razão. Entretanto, dizer que a religião ocupa um papel importante no pensamento de Ricoeur também seria traçar um círculo demasiado largo. A religião, a rigor, é, num primei- ro momento, uma forma de pensamento, original e autêntico, e, posteriormente, uma mito- poética.355 O distanciamento hermenêutico, ao contrário do que Gadamer pensava, é produ- tivo – é, na dinâmica de Rosenzweig, criativo. A produtividade e criatividade deste movi- mento resultam em inovações na dialética do evento e do significado. É no ato da leitura, da abertura inaugurada pelo texto, que o mundo se torna possível – sobretudo o mundo religio- so interpretado pela narrativa bíblica, na esfera da criação, revelação e redenção. Enquanto texto, a religião comporta mundos e carrega a questão mais fundamental da hermenêutica: o mundo possível.356 Sendo uma forma de pensamento, a religião inaugura desvios e turnos na reflexão pelo ato da leitura e do reconhecimento do leitor. A religião, na força da compreen- são e na meditação da existência, inaugura uma ação. Assim sendo, a dobra é uma tensão da religião com a ontologia.

354 GSCHWANDTNER, Christina. “Paul Ricoeur and the Relationship Between Philosophical and Religion in

Contemporary French Phenomenology”. In: Études Ricoeuriennes, Vol 3, No. 2, 2012, p. 18.

355 O trabalho do pensamento aporético implica, em Ricoeur, na ontologia do possível (conforme será visto mais

a frente). Em suma, a ontologia quebrada, na tarefa do reconhecimento do si, leva à ontologia poética. No la- do da religião, a incompletude da linguagem religiosa – ou seja, a linguagem fraturada – leva à mito-poética. Para um trabalho mais aprofundado sobre a mito-poética, cf. RASMUSSEN, David M. Mythic-Symbolic Language and Philosophical Anthropology: A Constructive Interpretation of the Thought of Paul Riceur, 1971, p. 29.

356 Cf. RICOEUR, Paul. “A função hermenêutica do distancioamento”, In: Interpretação e Ideologias, 1990, p.

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