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Consciência do tempo e a possibilidade de mundos

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II.3 O mito enquanto um portador de mundos possíveis

II.3.1 Consciência do tempo e a possibilidade de mundos

Em diálogo constante com Eliade, vale notar, Ricoeur desconfia do acesso à uma vi- são de totalidade de modo imediato. Para Ricoeur, como também para Merleau-Pony, a per- cepção é gradual. Enquanto Eliade foi levado a reforçar o polo organizador de seu trabalho, i.e., a polaridade sagrado e profano, para compensar as suspeitas de polimatia que lhe foram atribuídas, Ricoeur não simpatiza com tal opção. “Sentia uma grande resistência à oposição

Religious Language, p. 71.

475 “This is why I am tempted to say that this tragic resolution constitutes only one extreme of the range of solu-

tions provided by religions to the relation between sacred and profane time. (A typology of the range of eva- luationss attached to this relation would be a worthwhile project)”. RICOEUR, Paul. “The History of Reli- gions and the Phenomenology of Time Consciousness”. In: KITAGAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions: Retrospect and Prospect, p. 21.

476 Cf. RASMUSSEN, David M. Mythic-Symbolic Language and Philosophical Anthropology: A Constructive

sagrado/profano, ligada ao que eu considera um uso abusivo do simbólico; o que levara a preferir a noção de ‘metáfora’, estrutura a meu ver mais dominável”477, afirmou.

O diálogo entre Ricoeur e Eliade é rico tanto para a pesquisa em Ciências da Reli- gião quanto para as descobertas acerca da religião na obra de Ricoeur. Ambos filósofos se diferenciam, no fundo, em três aspectos. O primeiro é a pertinência da oposição entre sa- grado e profano. Para Eliade esta oposição é a base do desenvolvimento de sua pesquisa, ao passo que Ricoeur se atentava mais à oposição santo e pecador. O segundo aspecto é o pa- pel do texto, da escrita. Escreve Ricoeur: Eliade “considerava que eu sobrevalorizava o pa- pel da textualidade na produção de sentido; para ele, o nível textual era, se não superficial, pelo menos um fenómeno de superfície, em comparação com uma profundidade feita de oralidade e de sentimento”478. E o terceiro aspecto está na hipótese de uma compreensão imanente do fenômeno religioso. Ricoeur acompanha as recomendações de Eliade: o fenô- meno religioso deve ser compreendido a partir dos seus próprios termos, por “aquilo que nele existe de único e irredutível, ou seja, o seu caráter sagrado”479. O caminho para tal em- preendimento, inaugurado pela hermenêutica da suspeita, encarnado na justaposição confli- tual a tarefa negativa, está na via longa e a reflexão sobre as narrativas, símbolos, diálogo com estruturalistas, psicanálise etc. Ricoeur aponta a repercussão de tal empreendimento como uma introdução ao pensamento hermenêutico-fenomenológico no campo da filosofia da religião. Para ele, a troca em diferentes áreas é sempre benéfica.

De um lado, uma hermenêutica da fenomenologia da consciência do tempo pode libertar o nosso pensamento do modelo exclusivo de tempo enquanto a sucessão pura de instantes naturais representados metaforicamente por uma linha – uma linha indiferente com os eventos que a configuraram.480

Por conta do ato libertador, a fenomenologia recebe atenção para alguns aspectos não lineares da temporalidade. A reflexão é aberta para novas concepções de tempo – anun- ciadas pelos mitos. Por outro lado, a descrição da concepção de tempo gerada pelas religi- ões que configuraram os paradigmas da cultura Ocidental podem também enriquecer alguns

477 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 57. 478 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 57.

479 ELIADE, Mircea. Tratado de História das Religiões, 2002, p. 1.

480 “On the one hand, a hereneutical phenomenology of time consciouness may liberate our thought from the

exclusive model of time as a pure succession of neutral instants metaphorically represented by a line—a line indifferent to the events that punctuate it.” Cf. RICOEUR, Paul. “The History of Religions and the Phenome- nology of Time Consciousness”. In: KITAGAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions: Retrospect and Prospect, p. 26.

aspectos da temporalidade no caso da própria fenomenologia não ser suficiente. Toda cultu- ra comporta símbolos e mitos, os quais trazem uma variedade de mundos nas diferentes re- ligiões. Torna-se, então, decisivo para Ricoeur o estudo comparativo das religiões enquanto etapa fundamental para uma hermenêutica dos mitos e uma fenomenologia da consci ência do tempo. Pergunta o filósofo: qual seria o valor de uma hermenêutica que não colocaria em tensão as experiências religiosas e os conflitos das interpretações?481 A temporalidade é a realidade de toda condição humana. O papel dos mitos é responder à este problema com narrativas que configuram sentidos que não podem ser apreendidos em outras formas de discursos.482 Sendo um espaço para a compreensão de si e do mundo, o mito propicia um tempo especial, diferenciado do cotidiano, mas que não exclui de si os atritos e as supera- ções que dele advém. O mito, deste modo, é vivido como a mediação construtiva entre tra- dição e história, de modo que ambos elementos são mantidos em tensão para uma relação criativa.483 O mito, assim como o símbolo, na tensão criativa da linguagem nos limites da tradição e da história, abre o ser para o mundo e, consequentemente, promove mundos pos- síveis na história do indivíduo. Não apenas a esfera do mito, mas a diversidade das narrati- vas bíblicas, cada qual com uma possibilidade temporal, assumem uma moldura no pensa- mento que constitui a narrativa e o tempo da narrativa na meditação dos estilos literários.484 Deste modo, a tarefa da dobra da religião, no trabalho da aproximação do tempo helênico e o tempo bíblico, não esgota a aporia do tempo, mas, antes, possibilita ao ser uma consciên- cia além do ser – além das fissuras que limitam o ser.

481 “For what would be the use of comparative religion if it did not aim at producing an echo in the midst of our

own experience, and if, at the price of some painful tensions and conflicts, it did not enlarge our own self- understanding, by contrasting what we understand with what we do not understand of the religions of others?” Cf. RICOEUR, Paul. “The History of Religions and the Phenomenology of Time Consciousness”. In: KITAGAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions: Retrospect and Prospect, p. 29.

482 Cf. RICOEUR, Paul. “Mythe 3. L’interprétation philosophique”, In: Encyclopaedia universalis, 1971, p. 536. 483 “Myth can thus be salvaged as a constructive mediation between tradition and history, maintaining both ele-

ments in a relationship of creative tension.” KEARNEY, Richard. Poetics of Modernity: Towards a Herme- neutic Imagination, 1995, p. 88.

484 RICOEUR, Paul. “Biblical Time”, In: Figuring The Sacred: Religion, Narrative, and Imagination, 1995, pp.

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