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A revelação da meditação

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III.1 Hermenêutica e pensamento bíblico

III.1.3 A revelação da meditação

O problema da revelação contempla o mistério inserido na primeira dobra: a nomea- ção de Deus. A despeito dos nomes bíblicos, por que não é possível um consenso comum e geral no ato de nomear Deus? Por que existe uma total impossibilidade da linguagem ou por que há a fratura da linguagem? O tetragrama hebraico YHWH, para o nome de Deus, decla- ra a impossibilidade de nomear Deus plenamente. A finitude e a linguagem impossibilitam o acesso total ao divino. A expressão “Eu sou o que sou” é uma evasiva de dizer quem é Deus? Pela fratura da linguagem, motivada por uma relação aberta e franca, a dobra da reli- gião, iniciada no teônimo, não pretende ser exclusiva, mas, no paradigma da leitura parce- lar, situa o exercício da reflexão entre dois textos distintos – e.g., o científico e o confessio- nal. O caráter múltiplo da dobra, ao permitir várias dobras, coloca o indivíduo diante de uma estratégia de configuração da multiplicidade das formas de denominar Deus no texto bíblico. Uma vez que a nomeação divina só se faz na diversidade de discursos e de tipos literários bíblicos, para Ricoeur, “poder-se-ia dizer que na Bíblia a nomeação de Deus apa- rece circulando entre os múltiplos tipos de discurso, colocando-os em conjunto e talvez es- capando a cada um deles e a todos de uma perspectiva de fuga no horizonte”.585 A dobra,

584 THOMASSET, Alain. “Biblical Hermeneutics, the Art of Interpretation, and Philosophy of the Self: A Tribu-

te to Paul Ricœur and Paul Beauchamp”, In: Ethical Perspectives 9, Centre Sèvres, Paris, 2002, p. 49.

585 “En ce sens, on pourrait dire que dans la Bible la nomination de Dieu apparaît comme circulant entre les

motivada pelo caráter plural e aporético da filosofia de Ricoeur, não pretende ser exclusiva, i.e., impedir ou esgotar outras dobras, assim como o nome de Deus na narrativa do Êxodo, do mesmo modo, não esgota o que a narrativa diz sobre Deus, sobre seu nome ou sua pro- posição ontológica.586 “Segundo Ricoeur, existe uma multiplicidade do rosto de Deus em virtude dos diferentes gêneros existentes na Bíblia”587. A novidade não se instaura mais na identificação da variedade de estilos literários bíblicos, mas na excedência de um conceito monolítico do nome divino. O tema das faces de Javé comporta as variadas concepções de Deus numa mesma estrutura (a Bíblia) com pontos de intersecção (a dobra). Deste modo, a revelação não é única de uma instituição ou exclusiva de uma determinada autoridade. A revelação, pela mediação do texto bíblico, pede por dobras e a tarefa hermenêutica coloca o desafio da interpretação.

A dobra da religião tem na hermenêutica filosófica o seu método. Para Ricoeur, a ta- refa da hermenêutica filosófica é dupla: “reconhecer efetivamente na representação religiosa o outro da reflexão filosófica; dar dela uma interpretação que, sem poder ser derivada da reflexão, possa estar de acordo com ela. O outro da filosofia é, na tradição cristã, a figura crística”588. A meditação bíblica – cujo exercício assume o método hermenêutico – é revela- da pela revelação nas narrativas bíblicas. “Que é um sujeito que se situa na recepção do ‘Grande Código’?”589, questiona Ricoeur sobre a recepção bíblica. Motivado pelas orienta- ções hermenêuticas, a revelação, antes de preceitos dogmáticos, trata-se de mediação: a re- ciprocidade entre o indivíduo religioso e o texto sagrado. O texto bíblico não é apenas uma abertura diante outros textos, mas, segundo François Dosse, uma abertura de contextos e de mundos.590 A dupla tarefa hermenêutica possibilita, no exercício da leitura e recepção da abertura de mundos, o descobrimento do ser. Tal dinâmica promove desdobramentos de

sée de fuite à l’horizon.”. RICOEUR, Paul. “Herméneutique: Les finalités de l’exégèse biblique”. In: BOURG, Dominique, LION, Antoine. La Bible en Philosophie: Approches contemporaines. Les Éditions du Cerf: Paris, 1993, p. 39.

586 RICOEUR, Paul. “Herméneutique: Les finalités de l’exégèse biblique”. In: BOURG, Dominique, LION,

Antoine. La Bible en Philosophie: Approches contemporaines. Les Éditions du Cerf: Paris, 1993, p. 40.

587 Cf. MARTINS, Maria Manuela Brito. “As razões hermenêuticas para ‘Pensar a Bíblia’”, In: HENRIQUES,

Fernanda (Org.) A filosofia de Paul Ricoeur: Temas e percursos. Ariadne Editora: Coimbra, 2006. p. 387.

588 RICOEUR, Paul. “Uma Hermenêutica FIlosófica da Religião: Kant”, In: Leituras 3 – Nas Fronteiras da

Filosofia, 1996, p. 29.

589 No caso, Ricoeur faz referência ao título do livro Le grand code. La Bible et la littérature, de Northrop Frye,

traduzido no Brasil por O Código dos Códigos (Boitempo Editorial, 2004). Cf. RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 147.

590 “Le texte biblique nést pas suelement dans une situation d’ouverture sur d’autres textes, mas sur des contex-

aporias e questões profundas do ser. A revelação da primeira meditação bíblica em Ricoeur refere-se à aporia do mal. Essa aporia encontra-se tanto na reflexão filosófica como na reli- giosa. O mal é o “outro comum” das duas áreas de conhecimento e sua interpretação depen- de do esforço alocado na tarefa hermenêutica ao dialogar os dois domínios do saber. Dito isto, o mito etiológico de Adão é, segundo Ricoeur, “a tentativa mais extrema para desdo- brar a origem do mal e do bem”591. Há a intenção de uma função instrutiva, na saga bíblica, ao descrever, consistentemente, origens – no caso, a origem radical do mal diante das ori- gem mais primordial: o caráter ontologicamente bom das coisas no mundo. Mais importante que o problema da veracidade escriturística da Bíblia está o juízo da fundação de políticas de memória que autoriza a sia mesma através das histórias que são contadas pela saga bíbli- ca e pela tradição.592 Não apenas a crítica exegética atual, mas também Homero, Hesíodo e os trágicos gregos auxiliaram Ricoeur a situar-se diante dos profetas de Israel e dos filóso- fos pré-socráticos.593 O mito adâmico, neste sentido da fundação de políticas de memória, é mais um mito do desvio [écart] do que um mito da queda.594 No desvio ocorre a produção de pensamento bíblico.

O mito, pela consciência do tempo, remonta sempre à origem primordial e ao ser humano ideal. A justificação por Javé da monarquia, como também a historicidade alegada ao longo de toda a história da humanidade, denotam a primordialidade na narrativa e apon- tam para uma teologia política – a qual Ricoeur também denomina por “corpo político- teológico”.595 O reconhecimento de si pela leitura sugere o espaço privilegiado da Bíblia e interpela vida, existência e reflexão no corpo político-teológico.596 A figura de Abraão refle- te funções de autoridade para os eventos subsequentes. As genealogias da Bíblia comportam políticas teológicas, cuja escala, se respeitada, oferece sentido à história em totalidade. Ain- da nestes méritos, a endogamia hebraica está nas estruturas da concepção do judaísmo como uma grande família – que perdera seus traços no decorrer da história (simbolicamente repre-

591 RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal, 2013, p. 252. 592 Cf. RICOEUR, Paul. Living up to Death, 2007, p. 78. 593 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 222. 594 Cf. RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal, 2013, p. 253.

595 Cf. GREISCH, Jean. “Lire, interpéter, comprendre”, In: VERHEYDEN, J.; HETTEMA, T.L.; VANDECAS-

TEELE, P. (Org.) Paul Ricoeur: Poetics and Religion. Uitgeverij Peeters: Leuven/Paris/Walpole, MA, 2011, p. 26-27.

596 Cf. GREISCH, Jean. “Lire, interpéter, comprendre”, In: VERHEYDEN, J.; HETTEMA, T.L.; VANDECAS-

TEELE, P. (Org.) Paul Ricoeur: Poetics and Religion. Uitgeverij Peeters: Leuven/Paris/Walpole, MA, 2011, p. 26-27.

sentados pela separação de Israel, ao norte, e da Judeia, ao sul). A unidade genealógica legi- tima a entidade política-teológica que configura a identificação de Israel e dos judeus.597

O que Ricoeur declara sobre esta construção política feita através da saga bíblica? A construção política constitui uma forma de ser que implica numa leitura de mundo possível. Primeiramente, a política, nos termos bíblicos, é encarada como a esfera social laica que dialoga com a fé. Não se trata da negação da fé, muito menos da interação dos domínios do político e do religioso. A ligação entre a política e a religião reside na inspiração ou na in- tenção. Trata-se da inspiração de uma fé que doa um olhar bom aos pensamentos e ações profanas, enquanto a política, em seu caráter comum, apresenta outras faces de uma realida- de plural contingente a história que possibilita à fé significar.598 Com isso, deve ser enfati- zado, na esfera política da religião, a recepção da narrativa bíblica enquanto história presu- midamente verdadeira, i.e., história presente fundadora de sentido e de mundo – diferente- mente das histórias da Ilíada e Odisseia, que possuem funções ficcionais ao lado da história política. A intenção da fé é ler a Bíblia não apenas como uma narrativa mito-poética [mythopoetical], mas uma narrativa com um poder mito-político [mythopolitical], a serviço de aplicações política-teológicas (permitindo, historicamente, ambições teocráticas).599 A tarefa hermenêutica do conhecimento de si segue as descobertas arqueológicas para não depender de discursos políticos que utilizam a Bíblia para compor normas e práticas.

Qual o limite entre a mito-poética, na qual Ricoeur localiza a fonte das aporias e sen- tidos, e a mito-política, cujo papel pode comprometer o reconhecimento de si? A medida, para ele, encontra-se na possibilidade de um mundo bom e justo. Ricoeur toma emprestada a expressão “aumento icônico”, de François Dagognet, cujo sentido remonta ao efeito de revi- talizar o significado de uma narrativa em função de sua importância e efeito exercido em uma segunda narrativa.600 A mito-poética implica no aumento icônico das representações vividas pelo leitor das narrativas bíblicas. Não apenas na questão da justiça, mas todas ou- tras questões de virtudes e ética são prolongadas pelo aumento promovido pelos textos sa-

597 Em um estudo dedicado à esfera política do cristianismo, Ricoeur alerta sobre o risco de qualquer forma de

autoritarismo oriundo de determinadas leituras bíblicas, de modo que tais leituras, na paixão clerical e teocrá- tica, podem mascarar qualquer autoridade ou uso político da religião pela tentação de comandar o nome de Deus. RICOEUR, Paul. “Pour un christianisme prophétique”, In: Les chrétiens et la politique (Dialogues), 1948, pp. 84-85.

598 RICOEUR, Paul. “Pour un christianisme prophétique”, In: Les chrétiens et la politique (Dialogues), 1948, p.

86.

599 Cf. RICOEUR, Paul. Living up to Death. The University of Chicago Press: Chicago, 2007, p. 80. 600 Cf. VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 69.

grados. Este aumento icônico se dá pela relação entre os movimentos de extensão e intensão da leitura da narrativa.601 Da narrativa adâmica até Cristo, há uma ética do possível, que está na intensão da narrativa, que se contrai e tenciona as possibilidades, movimento de ve emên- cia, e na extensão da mesma, que desenvolve e aumenta os sentidos de uma ética possível. Neste sentido, a dobra da religião descobre e revela o texto sagrado que, na tensão da apo- ria, pelo ofício filosófico, aponta questões fundamentais de um mundo possível. O caminho da dobra, na tarefa negativa, é a descoberta da ontologia do possível.

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