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Conflitos de uma antropologia

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I.1 Demarcando os domínios da filosofia e da teologia

I.1.3 Conflitos de uma antropologia

A primeira grande obra de Ricoeur em sua formação – o estudo sobre a vontade e o involuntário – já apresentava a justaposição conflitual da qual o autor se refere em suas me- ditações posteriores acerca da religião. Voluntário e Involuntário possui raízes na tragédia grega (sobre o problema do destino), na vivência na Primeira Guerra Mundial (como teste- munha da avareza humana) e, sobretudo, na influência exercida pela teologia calvinista da predestinação.138 Desde o início dos estudos filosóficos, Ricoeur estava consciente que a justaposição conflitual implicaria em uma tomada de decisão pessoal: “Como resolver as contradições criadas pela minha situação na encruzilhada de duas correntes de pensamento que não se conciliam: a crítica filosófica e a hermenêutica religiosa?”139. Trata-se da dupla adesão, eclética e múltipla, que representa a originalidade da abordagem de suas reflexões.

135 Cf. ANDERSON, Pamela Sue. “Agnosticism and Attestation: An Aporia concerning the Other in Ricoeur's

‘Oneself as Another’”. In: The Journal of Religion, Vol. 74, No. 1, The University of Chicago Press (Jan., 1994), pp. 65-76. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/1203615 Accessado: 05/04/2011

136 RICOEUR, Paul. O mal: um desafio à filosofia e à teologia. Campinas, SP: Papirus, 1988, p. 45.

137 BLUNDELL, Boyd. Paul Ricoeur Between Theology and Philosophy, p. 81. A obra monumental Tempo e

Narrativa é iniciada, motivada pelo livro XI das Confissões de Santo Agostinho, com as aporias da experiên- cia do tempo. RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, Vol. 1, p. 17.

138 A despeito de admirar o tratado de Lutero sobre o arbítrio servil. Cf. RICOEUR, Paul. A Crítica e a Con-

vicção: Conversar com François Azouvi e Mard de Launay. Lisboa: Edições 70, 2009, p. 50.

139 “Comment résoudre les contradictions créés par ma situation à la croisée de deux courant de pensée qui ne se

concilient pas : la critique philosophique et l’herméneutique religieuse ? Mon problème était (...) de savoir si ce que je faisais à l’intérieur du champ philosophique n’était pas de l’éclectisme, si réellement j’articulais de façon originale et honnête mes allégeances multiplies” RICOEUR, Paul. La critique et la conviction. 1995, p. 211.

A religião é “a outra perna” com a qual Ricoeur exerce suas faculdades. Pode-se falar que, entre a retórica e a poética, a religião ocupa um lugar privilegiado de alianças140, cujo papel aponta para a responsabilidade, a alteridade, a esperança e o além do ser.

Ricoeur sempre demonstrou, ao lado dos colegas de reflexão, a autonomia de seus pensamentos.141 Conforme lhe sugeriu Gabriel Marcel, Ricoeur cuidou para não cair num certo ecletismo cuja articulação (original e ingênua) fosse fiel a Husserl, Nabert, Freud e ao próprio Gabriel Marcel. Desta fidelidade intelectual – ou ainda, honestidade intelectual – Ricoeur trabalhou, na perspectiva da justaposição conflitual, a questão da culpabilidade e da fragilidade humana, como também a simbólica do mal: “a passagem de uma análise da es- sência da vontade e uma simbólica dos mitos que as figuras e as genealogias do mal expres- sam”142.

É na condição da justaposição conflitual, com solo na dupla adesão, que surge a abordagem da religião feita por Ricoeur enquanto uma aporia. A tendência de Ricoeur em assimilar diferentes posições filosóficas sem renegá-las, sobretudo no diálogo com a teolo- gia, é equivalente ao princípio da caridade paulina.143 O pensamento religioso propões ques- tões às orientações filosóficas maiores, a saber, a antropologia. “Eu sou, por um lado, um filósofo, nada mais, até mesmo um filósofo sem um absoluto, preocupado, dedicado e imer- so em uma antropologia filosófica”144. O projeto de Ricoeur desde o início de seu método fenomenológico até o enxerto hermenêutico é, segundo Gilbert Vincent, antropológico.145 Esta sensibilidade parece escapar dos leitores que tendem a elevar a questão da religião no pensamento do autor ou a rejeitá-la. Interessa a Ricoeur o estudo de determinado segmento da história do cristianismo e do judaísmo – e do reencontro destes com a filosofia –, o exa- me crítico dos escritos sobre religião dos filósofos, enfim, a interpretação direta e pessoal de determinados textos bíblicos. As reflexões propostas por Ricoeur resistem à tentação de definir, em suas obras, um corpo em particular acerca da religião. Ao partir de motivações

140 RICOEUR, Paul. La critique et la conviction, p. 49, apud Cf. Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 27. 141 A autonomia será aprofundada na última etapa desta pesquisa ao versar sobre a dobra existencial.

142 RICOEUR, Paul. La critique et la conviction. Paris, Calmann-Lévy, 1995, p. 52. 143 Cf. RICOEUR, Paul. History and Truth, p. 6-7.

144 “I am, on one side, a philosopher, nothing more, even a philosopher without an absolute, concerned about,

devoted to, immersed in philosophical anthropology”. RICOEUR, Paul. Living up to Death, 2007, p. 69.

145 “À en juger selon l’ordre des raisons – qu’il ne faut pas confondre avec celui des motivations personnelles –,

le projet de Ricoeur est donc de nature anthropologique.” Cf. VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 28.

diversas, suas análises promovem uma leitura independente, cortada de dogmas, abertas para considerações vastas e novas.146 Constata Gilbert Vincent:

A originalidade do empreendimento filosófico de Paul Ricoeur, a este res- peito, é de empreender os preconceitos subjacentes às representações em via de construir o novo espaço de encontro de uma razão mais modesta e uma religião mais crítica com respeito as suas afirmações e práticas.147

Ricoeur não oscila de uma área à outra, da filosofia à teologia ou da teologia à filo- sofia, sem que os limites estejam demarcados e sem certificar ao leitor sobre o que o mesmo lerá. Dominique Janicaud, ao analisar a virada da teologia [theological turn], elogiou a rígi- da distinção entre as disciplinas de filosofia e teologia em Ricoeur.148 A distinção entre teo- logia e filosofia não diz respeito à nenhuma desconfiança profissional ou nem mesm o con- vicção pessoal, mas, segundo Christina Gschwandtner – que mapeou e distinguiu a questão da religião na obra de Paul Ricoeur – esta separação é parte do próprio método filosófico de Ricoeur.149

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