• Nenhum resultado encontrado

O acesso à tese: a intersecção no teônimo

No documento Download/Open (páginas 43-45)

I.1 Demarcando os domínios da filosofia e da teologia

I.1.4 O acesso à tese: a intersecção no teônimo

Após delimitar a abordagem da tese e preparar os assuntos e referências para a apre- sentação das mesmas, iniciamos o trabalho da hipótese da pesquisa. A bifurcação entre filo- sofia e teologia tematiza a hipótese da tese e anuncia os seus objetivos. Retomando a intro- dução desta pesquisa, questionado por François Azouvi e Marc de Launay, no ano de 1996, em uma conversa sobre moral e ética, a respeito da possibilidade da reflexão da existência implicar em duas ordens (uma filosófica, outra religiosa), Ricoeur argumentou que susten- tou, durante muitas décadas, ao longo do seu trabalho, a distinção entre os domínios da filo-

146 Cf. VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 25.

147 “L’originalité de l’entreprise philosophique de Paul Ricoeur, à cet égard, est d’entreprise les préjugés sous-

tendant les représentations en vue de construire le nouvel espace de rencontre d’une raison devenue plus mo- deste et d’une religion devenue plus critique à l’égard de ses affirmations et de ses pratiques”. VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur. Les Éditions de l’Atelier/Éditions Ouvrières: Paris, 2008, p. 11.

148 Cf. JANICAUD, Dominique. Phenomenology and the “Theological Turn”: The French Debate, New York:

Fordham University Press, 2001, p. 34.

149 “Ricoeur’s stronger divisions between the two are rooted not simply in professional insecurity or personal

conviction, but in his particular philosophical approach”. GSCHWANDTNER, Christina. “Paul Ricoeur and the Relationship Between Philosophical and Religion in Contemporary French Phenomenology”. In: Études Ricoeuriennes, Vol 3, No. 2, 2012, p. 8.

sofia e da religião.150 Entretanto, ele declarou, ao final de sua vida, que tal separação já não lhe parecia apropriada. “Creio”, conclui Ricoeur, “ter avançado suficientemente na vida e na interpretação de cada uma dessas duas tradições para me arriscar sobre os lugares de inter- secção”.151 É esse risco e esses lugares de intersecção que interessam à esta pesquisa. É neste ponto que a tese O ser e o além do ser: a dobra da religião em Paul Ricoeur é inaugu- rada. A intersecção é a novidade do estudo da dobra da religião em Paul Ricoeur. “É aliás um problema que me proponho, hoje, no fim da vida: o que acontece apesar de tudo na in- tersecção?”, pontuou em outra entrevista, desta vez para Edmond Blattchen.152 A hipótese da tese da dobra da religião se coloca neste trabalho de pensamento originário na intersec- ção e as implicações aporéticas que dele advém.

Se é possível partir da demonstração da distinção entre filosofia e teologia, é porque será plausível demonstrar que ao longo do pensamento e das obras de Ricoeur há um traba- lho de pensamento acerca do religioso e do filosófico.153 Há, sobretudo, um trabalho de re- ciprocidade. “Eu penso”, declarou Ricoeur, “que há mais violência na integração da religião com a filosofia do que no reconhecimento das especificidades e na especificidade das inte- rações.”154 Em suma, integrar a filosofia na teologia, como o fez Paul Tillich e Jean-Luc Marion, nunca foi o projeto de Ricoeur. Na integração da filosofia com a teologia poderia nascer algo novo, porém haveria um custo alto – ou, se preferirmos, em linguajar merleau- pontyano, haveria um prejuízo do mundo155 nas duas disciplinas a despeito da novidade que advém da integração. A proposta hermenêutica de Ricoeur é outra: o reconhecimento daqui- lo que cada uma das áreas possui de original e os pontos de interseção possíveis destas especificidades. Ao invés de delimitar, o movimento que passa pela intersecção amplia o

150 “Je ne suis pas un philosophe chrétien, comme la rumeur en court, en un sens volontiers péjoratif, voire dis-

criminatoire. Je suis, d’un côté, un philosophe tout court, même un philosophe sans absolu, soucieux de, voué à, versé dans l’anthropologie philosophique. Et, de l’autre, un chrétien d’expression philosophique, comme Rembrandt est un peintre tout court et un chrétien d’expression picturale et Bach un musicien tout court et un chrétien d’expression musicale”. RICOEUR, Paul. Vivant jusqu’à la mort: suivi de fragments, p. 24.

151 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 251.

152 RICOEUR, Paul. Paul Ricoeur: o único e o singular, 2002, p. 24. 153 Cf. RICOEUR, Paul. Paul Ricoeur: o único e o singular, 2002, pp. 24-25.

154 “Thus I find that there is more violence in this integration of religion with philosophy than in the recognition

of their specificity and the specificity of their intersection.” RICOEUR, Paul, apud RAYNOVA, Yvanka. “All that Gives Us to Think: Conversations with Paul Ricoeur”, In: WIERCINSKI, Andrzej (Org.) Between Suspicion and Sympathy: Paul Ricoeur's Unstable Equilibrium. Toronto: Hermeneutic Press, 2003, p. 686- 688.

155 Sobre o prejuízo do mundo, o primado do mundo é limitado pelas representações de mundo fundadas nas

impressões exclusivas de uma determinada sensação da realidade. Cf. MERLEAU-PONTY, Maurice. Sense and Non-Sense, p. 83.

mundo de cada abordagem no ato hermenêutico. Há, inspirado no trabalho do voluntário e involuntário, uma reciprocidade entre as polaridades.156 Por outro lado, de semelhante críti- ca, a divisão ingênua entre fé e razão seria uma solução simplista, uma vez que o discurso bíblico possui uma racionalidade particular – enquanto o discurso científico, mesmo moti- vado pela neutralidade, pode se basear na fé e atuar com pressuposições típicas de cren- ças.157

Dentre as diferentes leituras das obras de Ricoeur, Blundell foi quem mais aproxi- mou-se daquilo pelo qual denominamos em nossa tese por dobra da religião. Segundo Blun- dell, ao analisar os grandes trabalhos de Ricoeur – a saber, Tempo e Narrativa e O Si- Mesmo Como Outro –, nota-se um padrão estrutural na obra de Ricoeur: a estrutura do “desvio e retorno” [detour and return].158 Esta estrutura representa o princípio organizador do pensamento de Ricoeur. Blundell trabalha com os conceitos de “desvio filosófico” e “re- torno teológico”. Tanto o desvio como o retorno nestas duas áreas são movimentos caracte- rísticos nos processos de filosofia de Ricoeur.

No documento Download/Open (páginas 43-45)