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A transmissão e recepção do nome divino: uma ontologia quebrada

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I.2 A ontologia da dobra: a nomeação de Deus

I.2.3 A transmissão e recepção do nome divino: uma ontologia quebrada

Diante da autonomia ostentada para os textos sagrados, há uma diferença decisiva entre a atitude crítica e a atitude adesiva de quem lê o texto bíblico. A abordagem filosófica é crítica – filosofia reflexiva – em relação aos textos, enquanto a abordagem religioso é ade- siva – leitura confessional – afinal, há a adesão à uma palavra que é anterior e superior ao indivíduo. Existe na filosofia algo semelhante (e.g., no âmbito platônico, o mundo das idei- as que precedo ao sujeito), entretanto, a aproximação filosófica é predominantemente críti- ca, ao passo que a religiosa oferece crédito à palavra instauradora. A recepção e adesão do texto bíblico mostra-se como uma das características da teologia do nome divino. Nos limi- tes do cânone há a integração do indivíduo com o círculo hermenêutico, o qual Ricoeur anuncia: “conheço esta palavra porque está escrita, e está escrita porque é recebida e lida; e esta leitura é aceita por uma comunidade que, por isso, aceita ser decifrada pelos seus textos fundadores; ora, é esta comunidade que os lê.”226 Assim, a leitura do sujeito religioso aceita a adere à esta grande circulação entre uma palavra fundadora, textos mediadores e tradições de intepretação. Ricoeur mesmo se reconhece neste ciclo onde as histórias geram interpreta- ções e, consequentemente, tradições:

Minha relação com a pessoa e a figura de Jesus é, portanto, duplamente mediada: pelos próprios textos canônicos carregados de interpretação e pe- las tradições de interpretações que fazem parte do patrimônio cultural e da motivação profunda das minhas convicções. É nesse sentido que eu me re- conheci como “aderente” à tradição evangélica reformada.227

Feito o reconhecimento da mediação das narrativas bíblicas, para a investigação do nome divino em Ricoeur, o ponto de partida do filósofo encontra-se, além das considerações hermenêuticas já apontadas, na ontologia quebrada.228 “O homem é um ser que não coinci- de consigo mesmo. É um ser que comporta uma negatividade”229. Há, na vida, aspectos de falta e transcendência – que caracterizam a vontade e seus consentimentos. A dualidade da

226 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 229.

227 “My relation to the person and figure of Jesus is thus doubly mediated: by the canonical texts themselves

loaded with interpretation and by the traditions of interpretations that are part of the cultural heritage and de- ep motivation of my convictions. It is in this sense that I recognized myself as ‘adhering’ to the Reformed evangelical tradition”. RICOEUR, Paul. Living up to Death, 2007, p. 68.

228 Cf. MONGIN, Olivier. Paul Ricoeur, 1998, p. 66.

229 Cf. JAPIASSU, Hilton. “Paul Ricoeur: o filósofo do sentido”, In: RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologi-

realidade comporta o problema da possibilidade do mal, que aponta para a falibilidade do ser humano.

Segundo Olivier Abel230, Ricoeur responde negativamente à questão “eu sou um fi- lósofo cristão?”, pois, para ele, há algo acima da salvação radical e da justificação dos peca- dores: a justificação da existência.231 A existência vai além de qualquer método filosófico ou adesão religiosa. O compromisso com o ser libera a exegese religiosa para uma outra esfera do conhecimento que se difere da dogmática. Abel sugere, a título de exemplo, que Jesus se preocupava a despeito de tudo com um “presente diferente”, com a face a morte, ao invés de se preocupar com o futuro distante e a vida após a morte. Esta interpretação pro- vém da hermenêutica da ontologia quebrada de Ricoeur.

A ontologia, antes da preocupação religiosa, reluta na busca filosófica engajada com o caminho da lógica e das ciências físicas. A ontologia em Ricoeur, segundo Gilbert Vin- cent, é o nome filosófico da forma de atenção ao real que procede da recusa de não ter por realidade aquilo que não se conhece melhor.232 A ontologia quebrada de Ricoeur relaciona- se com a questão limite e da insuficiência humana. Este aspecto é decisivo para a compre- ensão da ontologia: o ser humano não é um ser pronto e acabado. Num linguajar nietzschea- no, é o instrumento “homem desafinado”233. Vale reforçar que Ricoeur pensa a religião a partir da ontologia. O contrário – pensar a ontologia a partir da religião – seria metafísica (algo que Ricoeur não se propôs a fazer com a religião). Deste modo, ele se difere de teólo- gos que ofereceram respostas religiosas aos problemas da filosofia e da teologia – e.g., Pier- re Teilhard de Chardin, se nos atermos ao pensamento francês contemporâneo. Semelhan- temente, Ricoeur se diferencia dos pensadores de sua época, sobretudo das tendências da filosofia que confrontavam com qualquer proposta de pensamento religioso.

A contribuição filosófica de Ricoeur à hermenêutica, na teoria da metáfora e a cons- tituição narrativa do si, acontece igualmente tanto para a filosofia como para a teologia.234 A extensa produção intelectual e literária de Ricoeur oferece novos horizontes aos assuntos

230 Professor de filosofia no L’Institut Protestant de Théologie de Paris e diretor do Fons Ricoeur. 231 Cf. ABEL, Olivier In: RICOEUR, Paul. Living up to Death, 2007, p. xviii.

232 VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 112.

233 NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo: como alguém se torna o que é. São Paulo: Companhia das Letras,

2008, p. 25.

234 Cf. WERBICK, Jürgen. “Foreword”, In: JUNKER-KENNY, Maureen, KENNY, Peter. (Org.) Memory, Nar-

abordados em sua carreira sobre o ser. Enquanto Paul Tillich mistura a ontologia com a teo- logia, Ricoeur evita esta manobra. No que diz respeito à ontologia, Ricoeur aproxima-se de Heidegger – com reservas. A ontologia de Ricoeur não é religiosa/teológica, como é em Tillich235, mas, também, não se resume a ontologia, como em Heidegger. A rigor, trata-se de uma ontologia filosófica na qual Ricoeur inaugura, pelo caminho da fenomenologia herme- nêutica, um caminho próprio entre Tillich e Heidegger. A religião, em Ricoeur, ao invés de ser confundida com a ontologia, como em Tillich, ou abandonada pela ontologia, como em Heidegger, ganha autonomia e destaque por portar outras narrativas fundamentais. Deste modo, a religião é mais radical que a própria ontologia e possui um lugar especial no pen- samento do autor – é responsável por uma virada hermenêutica analisada nos capítulos sub- sequentes.236 As ferramentas e análises da fenomenologia hermenêutica de Ricoeur na onto- logia são transpostas para a religião. À vista disso, há um novo desafio a averiguar, mais atentamente, os conceitos e limites da ontologia e religião, porém, ao mesmo tempo, a reli- gião possui um papel especial no seu pensamento.

Seguindo as indicações de Gilbert Vincent, os aspectos mais importantes da religião em Ricoeur, destacados pelo próprio autor na composição de suas obras, são o caráter in- completo da linguagem religiosa e a compreensão do si.237 Sobre este aspecto, segundo Ri- coeur,

nós existimos porque somos apreendidos por acontecimentos que nos to- cam no sentido forte da palavra: aquelas reuniões totalmente fortuitas, aqueles dramas, aquelas felicidades (...) que, como se costuma dizer, mu- daram o curso da nossa existência. A tarefa de nos compreendermos atra- vés deles, é a tarefa de transformar o acaso em destino.238

Se não houver a incompletude da vida, a imperfeição do ser, em suma, a ontologia quebrada, a interpretação não seria possível – a interpretação seria apenas uma parasita – a pluralidade de opiniões acerca da verdade, do justo e do bom seriam inúteis ou absurdas. É pela incompletude que há o encontro de diferentes tradições simbólicas, de aspirações às

235 Tillich escreveu um livrinho cuja pretensão une a religião bíblia e a ontologia. Cf. TILLICH, Paul. Biblical

Religion and the Search for Ultimate Reality, Chicago: University of Chicago Press, 1956.

236 Para mais informações sobre a virada hermenêutica, consultar: GEFFRÉ, Claude. Crer e interpretar: a virada

hermenêutica da teologia. Petrópolis: Editora Vozes, 2004, 234p.

237 Cf. VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 122.

238 “Nous existons parce que nous sommes saisis par des événements qui nous arrivent au sens fort du mot: telle

rencontres entièrement fortuites, tels drames, tels bonheurs (...) qui ont, comme on dit, changé le cours de notre existence. La tâche de nous comprendre à travers eux, c’est la tâche de transformer le hasard en destin.” RICOEUR, Paul. “Herméneutique de l’idée de révélation”, In: La révélation (collectif), 1977, p. 51.

memórias, na possibilidade de um mundo pacífico. Nesta dinâmica, a pluralidade, segundo Gilbert Vincent, é convertida em polifonia239, dando lugar ao ser que diz algo sobre o ser. São afirmações que dizem a respeito de identidades reconhecias. Esta incompletude faz par- te estrutural da estrutura da linguagem e do ser.

Ricoeur, na escola da fenomenologia a qual pertence, prioriza as aprendizagens que advém dos eventos diários. Há a valorização das coisas imprevistas e a indispensabilidade das coisas inevitáveis. Segundo ele, “o evento é o nosso mestre”240. “Nós”, declara Ricoeur, “dependemos absolutamente de certos eventos fundadores”241. Afinal, são estes eventos, enquanto experiências fundamentais, ao serem interpretados, que estruturam e duram no tempo, possibilitando o trabalho do símbolo e permitindo a compreensão religiosa (como, por exemplo, em esferas de testemunho). “O símbolo”, escreve Ricoeur, “faz apelo não so- mente à interpretação, mas verdadeiramente à reflexão filosófica”242. A experiência funda- mental do ser, em sua reconciliação com o devir da vida, é exprimida através de uma her- menêutica que tem no símbolo uma reflexão autêntica de abordagem fi losófica. Símbolos são interpretações criadoras de sentidos e reflexões que possibilitam o pensar de uma vida. “O ser se dá ao homem mediante sequências simbólicas, de tal forma que toda cisão do ser, toda existência como relação ao ser, já é uma hermenêutica”.243 Nesta dinâmica o ser huma- no é introduzido no estado nascente da linguagem. Na linguagem, pelos símbolos, surge a metáfora, que introduz a inovação semântica da linguagem. Para além da experiência das coisas e dos acontecimentos, das próprias palavras e dos conceitos, a narrativa que carrega metáforas, símbolos e sentidos profundos se situa na interpretação capaz de revelar a expe- riência ontológica que é a relação do ser humano com aquilo que o constitui, i.e., o foco de sentido.

A questão da narrativa é o ponto de partida para a compreensão da teologia pelo no- me de Deus diante da ontologia quebrada. Ricoeur medita sobre a linguagem, utilizando o método fenomenológico, e suspende o debate sobre a validade das experiências religiosas

239 Cf. VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 123.

240 “L’vénement est notre maître”, RICOEUR, Paul apud VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p.

125.

241 “Nous dépendons absolument de certains événements fondateurs”, RICOEUR, Paul apud VINCENT, Gilbert.

La religion de Ricoeur, p. 125.

242 RICOEUR, Paul. Da Interpertação: Ensaio sobre Freud, Rio de Janeiro: Imago, 1977, p. 42.

243 JAPIASSU, Hilton. “Paul Ricoeur: o filósofo do sentido”, In: RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias, p.

ao fixar uma especificidade para a “abordagem hermenêutica”244: os textos precedem a vi- da245 – mas não estão acima da vida. O interesse do filósofo está em apontar um caminho para a ontologia, que não pretende reconstituir a ontologia, mas mostrar que é possível viver diante das “quedas”. Deste modo, as narrativas precedem o sujeito, justamente porque o discurso consiste no sujeito que diz algo para outro sujeito sobre algo. A função referencial do discurso instaura um mundo – e na escrita, ao dirigir-se a qualquer sujeito que saiba ler, o mundo vai além dos interlocutores. O mundo do texto comporta a nomeação de Deus feita num passado de tradição oral. Nesta perspectiva, Deus é o referente último dos textos bíbli- cos, que está, de algum modo, implicado pelo mundo do texto que é desdobrado diante do leitor.

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