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Do acaso e do destino de Deus

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IV.2 Hermenêutica de si e dobra existencial

IV.2.2 Do acaso e do destino de Deus

Na última fase do espiral de Ricoeur encontram-se considerações sobre a narrativi- dade filosófica da vida de Ricoeur. Esta narratividade filosófica não é uma biografia intelec- tual. Antes, ela culmina, no seu último estrato de vida (após os anos 1990), das questões religiosas nas categorias criadas em sua filosofia (a ética menor, o justo, o si-mesmo como um outro). Dentre as passagens do espiral, a que questão de Deus é inesgotável, pois está relacionada às origens e torna possível as condições para a esperança. A onto-teologia, a despeito de responder o ser, é uma limitação de Deus. Segundo Ricoeur, Deus e o ser devem ser pensados não no sentido da fusão dos termos, mas no sentido da convergência dos con- ceitos.852 A questão se Deus é o ser ou outra coisa não deveria, para Ricoeur, ocupar o cen- tro da reflexão, uma vez que ela está além da capacidade humana de apreensão conceitual. Os limites do pensamento humano deveriam ser contemplados na aproximação desta ques- tão. O que resta dizer sobre Deus? A resposta ricoeuriana, ao aproximar o acaso da decisão no final de sua vida, prefere, no lugar da palavra “Deus”, a expressão de Schelling: “fundo sem fundo”.853 Deus é a primeira questão que implica na dobra no pensamento do filósofo. Não obstante, é fundo sem fundo pela inesgotável fonte de reflexão que advém desta ideia - limite. Entretanto, sem a pretensão de secar o tema, Ricoeur vai além e surpreende com uma resposta teológica, a mesma de João: “Deus é amor”.854 Se a fórmula “Deus é amor” é mais eficiente que “Deus é o ser”, “Deus é o fundo sem fundo”, Ricoeur responde com a metáfo- ra, ao sugerir a complexidade do amor na mesma esfera da complexidade da abordagem de

852 RICOEUR, Paul. Pensando biblicamente, 2001, p. 358.

853 Ricoeur desenvolve sua reflexão entre “Deus” e o “fundo sem fundo” na resposta da primeira pergunta ao

final de sua palestra. Cf. RICOEUR, Paul. La croyance religieuse. [Filme-vídeo], 2000.

Deus. O ser é respondido de diversas maneiras, enquanto o amor é vivido na expressão - limite, daquilo que Huskey denominou de sobreposição sincrônica.855

A sobreposição sincrônica, ao lado dos outros termos como justaposição conflitual, dupla adesão e situação-limite, demonstra a complexidade do pensamento de Ricoeur na tentativa de efetuar uma dobra que não restrinja outras dobras.856 A dobra original é o teô- nimo. Deve-se esclarecer que a representação de Deus que não se esgota nem se limita é devido o próprio movimento da dobra na sobreposição sincrônica. O exemplo retomado é a revelação de Deus a Moisés no Sinai. “Encontrar Deus na narrativa de Moisés da sarça ar- dente não é a mesma coisa que encontrar a própria sarça ardente”857. Há uma diferença entre a sarça ardente e Deus na narrativa da sarça ardente. A sobreposição sincrônica coloca iden- tidade e diferença no seio da narrativa. Do mesmo modo, a descrição de Deus se difere de um conhecimento de Deus. A expressão-limite é a realidade linguística da nomeação de Deus. Na tarefa da dobra da religião, Deus é aquele que aponta, mas não é igual ao que se refere. A identidade e a diferença da manifestação de Deus na sarça ardente é a condição do têonimo que não se limita no campo semântico do verbo ser, do hebraico hyh, ou do grego einai.858 É necessário ao divino “ser o que é”. Trata-se de uma metáfora da expressão-limite de Deus enquanto apontador que não é idêntico ao que se refere. A sarça ardente quer dizer que Deus não é a sarça nem o fogo, mas algo além, que não pode ser apreendido pela duali- dade. Em suma, Deus se manifesta, mas se difere do manifestado. Não é esta dinâmica da própria dobra que desvia um caminho sem o renegar, possibilitando a ida e a volta, a mu- dança e o movimento da primeira e a segunda ingenuidade?

A fratura está no limite da identidade da narrativa com a diferença da vida. A sobre- posição sincrônica deste limite, pela fratura linguística, ressalta a incompletude do conhe- cimento de Deus, o hiato aparente da impossibilidade da definição de Deus. Entretanto, há a possibilidade de uma descrição de Deus na qual Ricoeur situa a sua filosofia e hermenêutica religiosa. Das nomeações surgem dobras. A ontologia de Jó está no poder de falar e de ou- vir, de narrar e de escutar, que leva a poiesis, i.e., o ato de criação no mais amplo sentido.

855 Cf. HUSKEY, Rebecca Kathleen. Paul Ricoeur on Hope: Expecting the Good, 2009, p. 182.

856 Motivado pela adesão dupla, o pensamento do autor é inclusivo, no que diz respeito aos temas diversos, ao

invés de propor uma exclusão que desse originalidade metafísica à espiritualidade. Cf. RICOEUR, Paul. “De l’esprit le retour du spirituel”, In: Initiations, no. 12, Automne, 1994, pp. 6-7.

857 HUSKEY, Rebecca Kathleen. Paul Ricoeur on Hope: Expecting the Good, 2009, p. 182. 858 RICOEUR, Paul. Pensando biblicamente, 2001, p. 353.

Cristo não deve ser equivalente a Deus, segundo Ricoeur, afinal a nomeação de Cristo é uma dobra na expressão-limite.859 Ricoeur, influenciado pela demitologização de Rudolf Bultmann860 e a hermenêutica de Gerhard Ebeling, interpreta Cristo como um evento lin- guístico, um acontecimento da palavra.861 Entre a ontologia bultianna e a hermenêutica ebe- lingiana, o enfoque reside no teor existencial da recepção da palavra e a implicação dela no ser. Dito isto, para entender Cristo é necessário entender o Deus de Jesus que é chamado de Cristo.862 Há uma passagem do enigmático teônimo de Êxodo 3.14 para o Evangelho de João 8.58, que afirma: “Antes de Abraão ser, Eu sou”. Para o cristão, Cristo é aquele que auxilia na compreensão de Deus. Para Ricoeur, Cristo é um dos usos do verbo grego einai estendido de Deus a Cristo863. A dinâmica do símbolo – aquilo que dá a pensar – de Jesus enquanto símbolo de Deus864, fornece elementos para o entendimento de preocupações úl- timas. Conforme escreveu Ricoeur em Nomear Deus, trata-se de colocar a palavra para tra- balhar.865 A tarefa se dá no exame do mundo desdobrado pela palavra trabalhado na própria palavra.866

A dobra se vale de diversos movimentos, inclusive o ateísmo. O teísmo deve passar pela crítica ateia. Para Ricoeur, o ateísmo pode ser uma ponte entre a religião e a fé.867 Con- forme ele escreveu em O Significado Religioso do Ateísmo, o ateísmo deve destruir o Deus moral em sua condição de poder último de acusação e de proteção.868 É necessário construir uma fé pós-crítica. O trabalho de Ernst Bloch, cuja declaração de que apenas um bom cris- tão pode ser um bom ateu ou um bom ateu pode ser um bom cristão, acompanha o pensa- mento da totalidade na esfera quebrada da fratura.869 A ambiguidade do ateísmo é o movi-

859 Cf. HUSKEY, Rebecca Kathleen. Paul Ricoeur on Hope: Expecting the Good, 2009, p. 183.

860 Influenciado em parte, pois, para Bultmann, o mito deixa de ser mito, enquanto para Ricoeur o mito continua

sendo mito.

861 “Un autre théologien a beaucoup compté pour Ricoeur dans cette période, c'est Gerhard Ebeling. Post-

bultmanien, is a particulièrement insisté sur la parole, sur le Christ comme événement de langage, comme advenir de la parole.”DOSSE, François. Paul Ricoeur: un philosophe dans son siècle, 2012, p. 233.

862 HUSKEY, Rebecca Kathleen. Paul Ricoeur on Hope: Expecting the Good, 2009, p. 183. 863 RICOEUR, Paul. Pensando Biblicamente, 2001, p. 362.

864 A teologia de Roger Haight, sacerdote católico jesuíta norte-americano, acompanha, de certa forma, a filoso-

fia de Ricoeur ao propor em sua obra Jesus, símbolo de Deus uma leitura cristológica cujo centro estaria no simbolo religioso da figura de Cristo na preservação do mistério de Deus. Cf. HAIGHT, Roger. Jesus, símbo- lo de Deus. São Paulo: Paulinas, 2005.

865 RICOEUR, Paul. “Nomear Deus”, In: Leituras 3: Nas fronteiras da filosofia, p. 186. 866 HUSKEY, Rebecca Kathleen. Paul Ricoeur on Hope: Expecting the Good, 2009, p. 184. 867 HUSKEY, Rebecca Kathleen. Paul Ricoeur on Hope: Expecting the Good, 2009, p. 187.

868 RICOEUR, Paul. The Religious Significance of Atheism. Columbia University Press: New York and London,

1969, p. 82.

mento que pode até implicar numa nova fé, segundo a sua abordagem religiosa. Do mesmo modo que a metafísica poderia ser considerada numa nova fé para a tragédia clássica, ou a fé de Jó poderia ser considerada uma nova fé para as leis arcaicas professadas em sua épo- ca870, o reconhecimento de si na sobreposição sincrônica que se dá no mistério do teônimo tem a tarefa de cavar debaixo da superfície para encontrar a dinâmica da fé e o sentido reli- gioso tanto do ateísmo como do cristianismo.871

Ricoeur conclui sua reflexão sobre Deus e o ateísmo: “Um ídolo deve morrer para que um símbolo do Ser possa falar”872. Ao invés de consolação (de um Deus que fala) há a afirmação. Pela Palavra, Deus se afirma. “Se pudermos dizer que Deus é algo”, conclui Huskey após a leitura de Ricoeur, “a nossa melhor afirmação seria que Deus é o logos, e é através do logos que conhecemos e temos o nosso ser”.873 A dobra da religião coloca uma perna na filosofia e a outra na teologia. Da filosofia, o trabalho da linguagem permite ques- tionar a natureza da própria linguagem e, consequentemente, de Deus. Todavia, é da própria condição da linguagem o acesso ao si, um movimento de regressão às questões fundamen- tais e últimas. Estando Deus na esfera da linguagem – na esfera do pensamento, segundo Lachelier – e na dinâmica do símbolo, a preocupação de Ricoeur é evitar o esvaziamento da reflexão-Deus para qualquer idolatria ou dogmatismo. Estas reflexões acompanham a espiri- tualidade da alegria do sim que vem da tristeza do não. i.e., um “não” ao Deus fundamenta- lista é um “sim” ao Deus encarnado e possível. O caminho da linguagem aponta para o Deus encarnado e possível na dimensão simbólica. “Enquanto símbolo, seria a parábola do fundamento do amor; a contra partida, na teologia do amor, da progressão que n os leva de uma mera resignação do Destino para o vida poética”874, declarou Ricoeur num texto de 1969.

Em suma, a questão de Deus, pela dobra, está intimamente relacionada às possibili- dades. Assim como Levinás e Tillich, Ricoeur experimentou o Holocausto e tantas outras

870 Para uma discussão mais detalhada sobre a relação da filosofia e ateísmo na esfera religiosa segundo Ricoeur,

cf. RICOEUR, Paul. The Religious Significance of Atheism, 1969, pp. 84-91.

871 RICOEUR, Paul. The Religious Significance of Atheism, 1969, p. 88.

872 “Such, I believe, is the religious significance of atheism. An idol must die, in order that a symbol of Being

may speak”. RICOEUR, Paul. The Religious Significance of Atheism, 1969, p. 98.

873 “If we must say that God is something, our best assertion may be that God is logos, and it is through logos

that we have our being and that being is made known to us” HUSKEY, Rebecca Kathleen. Paul Ricoeur on Hope: Expecting the Good, 2009, p. 189.

874 “As a symbol it would be a parable of the ground of love; it would be the counterpart, in a theology of love,

of the progression which led us from a mere resignation of Fate to a poetic life” RICOEUR, Paul. The Religious Significance of Atheism, 1969, p. 98.

fraturas da existência. É necessário pensar em um novo Deus ou em um outro Deus. A in- fluência de Heidegger e Levinas se faz presente: Ricoeur nos apresenta um Deus pós- teísmo, i.e., um “Deus pós-religião”. A partir disso, abre-se a noção do Destino, usado em letra maiúscula propositalmente pelo autor. O destino está presente no coração de sua fé. O destino assumido vira poética. Grande parte do conjunto da obra de Ricoeur aponta para a poética.875 Ela não é o fim de sua filosofia, mas um dos horizontes, assim como a religião. Pelo destino os entrelaçamentos, e.g., Deus, perdão e esperança são efetuados e concretiza- dos.

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