• Nenhum resultado encontrado

A ontologia do possível

No documento Download/Open (páginas 146-151)

III.3 A fenomenologia do possível

III.3.1 A ontologia do possível

A ontologia do possível estava em gestação em alguns autores no século XX. Traba- lhado por alguns leitores de Ricoeur642, o possível, cuja motivação filosófica advém, sobre- tudo, de Heidegger643, é um dos horizontes assumidos pela dobra da religião na tarefa da hermenêutica do si. Ricoeur herda a discussão acadêmica da ontologia do possível e inter- preta-a de modo original, sobretudo nos possíveis da religião. Ricoeur acompanha a filoso-

637 RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações, 1978, p. 334. 638 A ética será abordada na última parte desta pesquisa.

639 “Do we create imaginary possibilities which can never be realized or do we discover real possibilities that can

become actual?” VANHOOZER, Kevin J. Biblical narrative in the philosophy of Paul Ricoeur: A study in hermeneutics and theology, 1990, p. 9.

640 Cf. KEARNEY, Richard, Poetique du possible: Phenomenologie herméneutique de la figuration. Paris: Beau-

chesne, 1984, p. 15.

641 “In short, we must restore to the fine word invent its twofold sense of both discovery and creation.” Cf. RI-

COEUR, Paul. The Rule of Metaphor. London, Routledge & Kegan Paul, 1978, p. 306.

642 Cf. KEARNEY, Richard. Poetics of Modernity: Towards a Hermeneutic Imagination. New Jersey: Humani-

ties Press Internation, Inc., 1995.; STIVER, Dan. Theology after Ricoeur: New Directions in Hermeneutical Theology. Westminster: Westminster John Knox Press, 2001; BLUNDELL, Boyd. Paul Ricoeur between Theology and Philosophy: Detour and Return. Bloomington: Indiana University Press, 2010, 230p.; HUS- KEY, Rebecca Kathleen. Paul Ricoeur on Hope: Expecting the Good. Peter Lang Publishing, Inc.: New York, 2009.

fia do possível de Martin Heidegger644, Ernst Bloch645 e Jürgen Moltmann646. A metafísica ocidental é desconstruída para dar lugar à uma ontologia da primazia dos possíveis. O real possível é o real realizado, de modo que a ética se situa nas possibilidades.

A ontologia do possível, diferentemente das ontologias metafísicas, rompe com as- pectos substancialistas de pensamento e trabalha na esfera de possibilidades realizáveis. A existência, para Ricoeur, não é definida por uma metafísica anterior, mas pela possibilidade de realização, um movimento dinâmico de estar acontecendo – os sentidos múltiplos do ser. Ricoeur, neste sentido, reinterpreta Aristóteles na questão do ato e da potência, principal- mente na metafísica.647 A relação entre ato e potência, em Aristóteles, dominados pela no- ção de “o ser enquanto ser”, apontam para as questões de substância e acidente.648 Resumi- damente, Ricoeur herda a ontologia aristotélica do ato enquanto possível realizado. A po- tência [dynaton] carrega os possíveis que poderão ou não serem realizados. Não há, a rigor, uma substancialidade metafísica; há um movimento de acontecimento das coisas.649 O pos- sível exigido pela linguagem, como modalidade de juízo, é o possível da esfera hermenêuti- ca que trabalha a ontologia quebrada para uma ontologia do possível. A ontologia do possí- vel, portanto, é uma ontologia do sentido no tempo, do que se realiza e do que não se reali- za. Não se trada exclusivamente da ontologia de vigor metafísico de Aristóteles, mas da importância do possível no pensamento de Heidegger para Ricoeur.

Em Heidegger, o ser humano é compreendido, basicamente, a partir dos seus possí- veis. O Dasein – o lugar da manifestação e da compreensão do ser – é preparado pela ques- tão da temporalidade e da historicidade na ontologia do possível.650 A palavra essência, a rigor, não se refere ao que é, mas ao que está sendo e ao que é possível ser. Essência [lt. esse] diz sobre um modo de ser.651 Tratar do modo de ser das coisas é tratar a essência das coisas. Enquanto para a fenomenologia husserliana, tratam-se de unidades ideias de signifi- cado que se dão à intuição essencial652, para Heidegger a essência, além de ser o modo de

644 Cf. HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Rio de Janeiro: Vozes, 2006.

645 Cf. BLOCH, Ernst. O Princípio Esperança. Vol 1, 2 e 3. São Paulo: Contraponto Editora, 2005. 646 Cf. MOLTMANN, Jürgen. Teologia da Esperança. São Paulo: Loyola, 2010.

647 RICOEUR, Paul. Ser, essência e substância em Platão e Aristóteles. São Paulo: Martins Fontes, 2014, pp.

163-165.

648 Cf. RICOEUR, Paul. Ser, essência e substância em Platão e Aristóteles, 2014, pp. 206-207. 649 RICOEUR, Paul. Ser, essência e substância em Platão e Aristóteles, 2014, p. 224.

650 Cf. KEARNEY, Richard. Poetics of Modernity: Towards a Hermeneutic Imagination, 1995, p. 36. 651 MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 226-230. 652 Cf. MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 230.

ser das coisas, tem a ver com a esfera do possível, do realizado. Em suma, coloca-se o ser na esfera dos possíveis e do realizável. A reinterpretação heideggeriana do ato e da potência de Aristóteles privilegia a dinâmica da possibilidade do ser realizado e Ricoeur herda do filósofo alemão a questão do possível em diálogo com Aristóteles.653

Ricoeur desenvolve a questão do possível e Richard Kearney é um dos seus leitores que melhor aprofundou esta questão. As obras de Richard Kearney, ao lado de Kevin Va- nhoozer, a partir deste ponto, são fundamentais para a tese da dobra da religião. Frutos de seus diálogos e estudos com Ricoeur por mais de trinta anos de pesquisa, textos como The God who May Be: A Hermeneutics of Religion654 e Enabling God655 carregam a dinâmica da dobra religiosa na hermenêutica do autor. Keaney estudou com Ricoeur, dentre algumas questões da filosofia – a principal: a poética e a imaginação – sobre o possível [possible].656 Vanhoozer, por sua vez, aplicou a filosofia ricoeuriana à uma paixão do possível – na per- mitiu uma chave de leitura da hermenêutica filosofia mediada pela adesão religiosa.657 Nes- te sentido, a importância do pensamento religioso de Ricoeur para outros pensadores atuais, como Jean-Luc Marion, Michel Henry, Richard Kearney e Olivier Abel, representa a virada teológica hermenêutica, motivada pela proposta filosófica do autor.658 Em seus estudos, motivado pela reflexão do voluntário em Ricoeur, está a relação do homem capaz com o Deus capaz.659 Kearney aponta o início deste projeto à uma ontologia do possível, à partir do homem capaz, que levaria, ao final, à uma escatologia do possível – portanto, como con- clui Kearney, à uma ideia de um Deus capaz.660 Segundo Kearney, o aspecto central de seus trabalhos acerca do possível demonstra o lugar entre a fragilidade e a capacidade humana, entre o sofrer e o agir. Tal lugar não é negligenciável para Ricoeur e é assumido pelo filóso- fo como o espaço privilegiado de reflexão.

653 Cf. KEARNEY, Richard. Poetics of Modernity: Towards a Hermeneutic Imagination, 1995, pp. 68-69.. 654 KEARNEY, Richard. The God who May Be: A Hermeneutics of Religion. Indiana University Press, 2002. 655 In: MANOUSSAKIS, John P. (Ed.) After God: Richard Kearney and the Religious Turn in Continental Phi-

losophy. Fordham University Press: New York, 2005.

656 Sobre o papel de Ricoeur em outros pensadores no contexto da filosofia francesa, consultar: BENSON, Bruce

Ellis; WIRZBA, Norman (Ed.) Words of Life: New Theological Turns in French Phenomenology (Perspecti- ves in Continental Philosophy (Paperback Unnumbered). New York: Fordham University Press, 2010.

657 Cf. VANHOOZER, Kevin J. Biblical narrative in the philosophy of Paul Ricoeur: A study in hermeneutics

and theology, 1990.

658 Ver, por exemplo, MANOUSSAKIS, John Panteleimon (Org.). After God: Richard Kearney and the Reli-

gious Turn in Continental Philosophy. Bronx, NY: Fordham University Press, 2006.

659 Cf. KEARNEY, Richard. “L’homme capable – Dieu capable”. In: Rue Descartes, Hors série, Revue trimes-

trelle. L’homme capable – Autour de Paul Ricoeur. Presses Universitaires de France: Paris, 2006, pp. 39-47.

660 KEARNEY, Richard. “L’homme capable – Dieu capable”. In: Rue Descartes, Hors série, Revue trimestrelle.

A ontologia do possível relaciona-se diretamente à dobra da religião. A filosofia está plenamente realizada; há os possíveis da filosofia. Do mesmo modo, a religião não está to- talmente realizada; há os possíveis da religião. Assim, a religião não se apresenta acabada e nem pronta; a religião está sendo. A religião carrega o aspecto aberto da hermenêutica. É uma dobra de possíveis filosóficos e teológicos. Portanto, a aproximação da dobra da reli- gião com a filosofia se dá pela ontologia do possível. A questão do possível em Ricoeur, entre os extremos da condição humana, parte da ontologia (ser), da possibilidade (capacida- de) e da temporalidade (finitude). Segundo o projeto heideggeriano, a natureza humana não é fixa e o destino do ser depende unicamente de si próprio. A compreensão do ser humano, para Heidegger, dá-se nas possibilidades.661 De Heidegger, Ricoeur acompanha a possibili- dade e a temporalidade, enquanto rejeita a existência “autêntica” – i.e., o ser no mundo que, ao reconhecer sua finitude, enfrenta-a firmemente em si próprio. Ricoeur sugere o trabalho da narrativa, sobretudo, na aporia do tempo, para a tarefa do reconhecimento do si.662 A obra Tempo e Narrativa é, neste sentido, a proposta mais original de Ricoeur. Segundo Va- nhoozer,

Ricoeur oferece uma “correção narrativa” ao projeto de Heidegger, a qual confere uma orientação mais promissora à noção da existência autêntica e coloca a análise das possibilidades existenciais em fundamentos hermenêu- ticos firmes.663

A narrativa – destaque para os mitos – oferece, em sua condição da narração, possi- bilidades para o ser que vão além da imediatidade do mundo. A exemplo, a narrativa da queda, como analisada em A Simbólica do Mal, já contém em si a possibilidade para o bem ou para o mal. Não por acaso os primeiros trabalhos de Ricoeur, motivados pela fenomeno- logia, privilegiaram a questão da vontade. A filosofia da vontade segue a fenomenologia eidética de Husserl, a reflexão noemática. Em Método e tarefas de uma fenomenologia da vontade, Ricoeur trabalha com a relação da percepção e a aparência no ato da consciência e retoma a originalidade do método fenomenológico:

661 Sobre a relação de Ricoeur com Heidegger acerca do possível, cf.: DASTUR, Françoise, “ La critique ricoeu-

rienne de la conception de la temporalitédans. Être et temps de Heidegger”, In: Archives de Philosophie, 2011/4 Tome 74, p. 565-580.

662 Cf. RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, Vol 3 – O Tempo Narrado, 2010, p. 29.

663 “Ricoeur offers a "narrative correction'' of Heidegger's project which gives a more hopeful orientation to the

notion of authentic existence and puts the whole analysis of existential possibilities on firmer hermeneutical foundations.” VANHOOZER, Kevin J. Biblical narrative in the philosophy of Paul Ricoeur: A study in her- meneutics and theology, 1990, p. 19-20.

A fenomenologia aposta na possibilidade de pensar e de nomear, até na flo- resta dos afetos, até na corrente do fluxo de sangue. A fenomenologia aposta nesta discursividade primordial de todo vivido que o torna apto para uma reflexão que seja implicitamente um “dizer”, um légein. Se a possibi- lidade de dizer não estivesse inscrita no “querer dizer” do vivido, não seria a fenomenologia o lógos dos phainómena.664

Sem tomas grandes desvios, vale notar, para a discussão da ontologia do possível na dobra da religião, a contribuição da fenomenologia com a intencionalidade, i.e., a primordi- alidade da consciência de algo. O significado (a essência, i.e., o eidos, segundo Husserl) de algo, adiantando o recorte da tese, implica na variedade de possibilidades da essência. A variação imaginária é um dizer dos possíveis do que é manifestado, de acordo com a per- cepção da essência do objeto visado.665 Trata-se, pela questão do ser, no nascimento da fe- nomenologia, do problema autônomo da maneira de aparecer das coisas.666 A questão do possível recai sobre o próprio método fenomenológico de Ricoeur, no qual os princípios fenomenológicos do que é manifestado e percebido são incorporados na dialética das possi- bilidades. Segundo ele, ao analisar as possibilidades da fenomenologia,

há uma terceira possibilidade para a fenomenologia: é que ela não esteja nem em tensão com uma ontologia, nem a caminho para a sua supressão em uma ontologia; é que ela seja a redução sem retorno de toda ontologia possível; é que não haja nada a mais no ser ou nos seres senão aquilo que aparece ao homem e pelo homem.667

Na ontologia do possível, a definição da essência de algo pode ser empreendida co- mo “o conjunto imaginado de suas possibilidades”668. No trabalho fenomenológico da von- tade, a fenomenologia, enquanto a tarefa do conhecimento de si, é a “a exegese de si mes- mo” [Selbstauslegung]669. Na tarefa da exegese de si mesmo, pela imaginação das possibili- dades, o possível é anterior ao real. “A presença do homem no mundo”, escreve Ricoeur em O Voluntário e o Involuntário, “significa que o possível precede o real e abre o caminho para ele; uma parte do real é uma realização voluntária de possibilidades antecipada por um

664 RICOEUR, Paul. Na escola da fenomenologia, Petrópolis: Vozes, p. 65.

665 Em Meditações Cartesianas, Husserl exemplifica com a imagem da mesa, cujos os componentes básicos que

formam a mesa são invariáveis, independente da posição, tamanho e cor do objeto visado.

666 RICOEUR, Paul. Na escola da fenomenologia, Petrópolis: Vozes, p. 150. 667 RICOEUR, Paul. Na escola da fenomenologia, Petrópolis: Vozes, p. 154.

668 Cf. VANHOOZER, Kevin J. Biblical narrative in the philosophy of Paul Ricoeur: A study in hermeneutics

and theology. Cambridge University Press: Cambridge, 1990, p. 21.

projeto”670. O projeto do qual Ricoeur se refere trata-se da possibilidades da potencialidade de cada indivíduo. Evidentemente, a possibilidade é delimitada pelas condições que são oferecidas ao indivíduo. Para retomar um exemplo de O Voluntário e o Involuntário, assim como um mundo de possibilidades é aberto ao passageiro que embarca em um trem, o mes- mo mudo é limitado pelas possibilidades oferecidas pela técnica do trem. Portanto, a ordem da existência, na reflexão ricoeuriana de mundo, é preferível à ordem das coisas. A fenome- nologia de Ricoeur é pautada por estas considerações ontológicas e existenciais e segue na direção de outras possibilidades mais, como a possibilidade de uma vida cuja dobra do ser encontra-se na religião.

No documento Download/Open (páginas 146-151)