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O desdobramento metafórico do acaso

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IV.1 O acaso de um espiral

IV.1.1 O desdobramento metafórico do acaso

O espiral de vida aparece como uma narrativa de si.796 A filosofia de Ricoeur é uma narrativa de si-mesmo. A narrativa de si-mesmo retrata as fases (sugeridas aqui em três momentos) de sua obra. Em Vivo Até a Morte! Ricoeur declarou: “eu sou, por um lado, um filósofo, nada mais, até mesmo um filósofo sem um absoluto, preocupado, dedicado e imer- so em uma antropologia filosófica”797. Neste estágio final da pesquisa, afirma-se: a dobra da religião é uma antropologia do ser humano capaz que tem em seu enxerto hermenêutico a religião. Não se trata de uma apologia religiosa, mas do ser humano que encontra nas apo- rias da vida força e capacidade para pensar, agir e viver. A vida de um filósofo que habitou duas esferas inicialmente distintas, mas complementares, é marcada pelo pensador media- dor. Segundo Kevin Vanhoozer,

para começar, Ricoeur media pensadores na história da filosofia. Por exemplo, ele lê Kant até Hegel e Hegel até Kant. Esta “habitação mútua” reflete a esperança de Ricoeur em que todos os pensadores estão, de certo modo, “na verdade”. Ricoeur também esforça-se por mediar a filosofia Anglo-Saxã e Continental, duas tradições que frequentemente falam uma sobre a outra. A carreira pessoal de Ricoeur reflete sua ambição de media- ção: ele assumiu, simultaneamente, cadeiras em Paris e Chicago por muitos anos. Entretanto, talvez mais significativo para a teologia é a mediação dos métodos e objetivos de diferentes disciplinas. A sua teoria narrativa traz uma contribuição original, por exemplo, na mediação da alegação da ver- dade da história e da ficção, as duas maiores formas de narrativa. Uma das características mais impressionante é a essa capacidade imaginativa para

796 Para informações mais detalhadas a respeito do diálogo entre o existencialismo e a fé, cujo trabalho demons-

tra a narrativa do si em diálogo com o pensamento filosófico, cf. RICOEUR, Paul. “Note sur

l’Existentialisme et la Foi Chrétienne”, In: La Revue de l'Evangélisation (Le Christianisme devant les cou- rants de la pensée moderne), 6 (1951), pp. 143-152. Uma reflexão parecida, que questiona a dicotomia entre vida e pensamento, pode ser averiguada em: RICOEUR, Paul. “L'homme de science et l'homme de foi”, In: Le Semeur, 50 (1952), novembre, pp. 12-22.

797 “I am, on one side, a philosopher, nothing more, even a philosopher without an absolute, concerned about,

mediar oposições aparentemente irreconciliáveis. Ricoeur é um mediador, portanto, não por ele “portar o pecado”, mas por “portar o sentido” distante e fazê-lo inteligível ou próximo. Ricoeur é talentoso em fazer compatíveis ou mutuamente dependentes posições que era aparentemente opostas. Este “trazer próximo” (meta-pherein=“trans-ferir”) é também a essência da me- táfora, um “ver junto”, que associa domínios aparentemente distintos em sentidos os dispõem em uso criativo. (...) Ricoeur não poupa esforços para trazer o mundo da Bíblia “próximo” ao indivíduo do século vinte ao criar “aproximações” filosóficas das ideias teológicas. Ao fazer isso, Ricoeur espera ajudar aqueles que estão cegos para a graça para “ver” novamente. É justo, então, que a forma favorita de linguagem do Ricoeur, a metáfora, deve caracterizar o espírito da hermenêutica filosófica de Ricoeur. A medi- ação de Ricoeur é metafórica.798

A tese da dobra da religião desenvolve o pensamento de Ricoeur sob a rubrica da metáfora, que opera no conflito de interpretações e variações de sentidos que vão da finitude à infinitude, do ser humano falível ao ser humano capaz, da virada ao destino . A metáfora é um momento teórico decisivo que permite à linguística e aos estudos literários uma concen- tração capaz de enriquecer a análise dos fenômenos religiosos e ser a linguagem caracterís- tica da religião.

Melhor do que o símbolo, de fato, a metáfora é, como dissemos, uma enti- dade de linguagem cuja existência chama para o compromisso interpretati- vo do seu leitor, o intérprete sendo encarregado, menos de destacar um

798 “To begin with, Ricoeur mediates thinkers in the history of philosophy. For instance, he reads Kant

through Hegel and Hegel through Kant. This ‘mutual indwelling’ reflects Ricoeur’s hope that all thinkers are to some extent ‘in the truth’. Ricoeur also attempts to mediate Anglo-Saxon and Continental philoso- phy, two traditions which often talk past each other. His personal career reflects this mediating ambition: he simultaneously held professorial chairs in Paris and Chicago for a number of years. Perhaps o f most significance for theology, however, is Ricoeur’s mediation of the methods and goals of different discipli- nes. His narrative theory makes an original contribution, for example, in mediating the truth claims of his- tory and fiction, the two major forms of narrative. One of the most impressive features of Ricoeur’s philo- sophy is precisely this ability imaginatively to mediate seemingly irreconcilable oppositions. Ricoeur is a mediator, then, not because he ‘bears sin’, but because he ‘bears meaning’ from afar and makes it intelli- gible or near. Ricoeur is particularly gifted in making positions which at first blush seem mutually exclu- sive to appear compatible and even mutually dependent. This ‘bringing near’ (meta -pherein=‘trans-fer’) is also the essence of metaphor, a ‘seeing together’, which associates seemingly disparate realms of meaning and puts them to creative use. (...) Ricoeur ultimately strives to bring the world of the Bible "near" to the denizen of the twentieth century by creating philosophical ‘approximations’ of theological ideas. By so doing, Ricoeur hopes to enable those who are blind to grace to ‘see’ again. It is only fitting, then, that Ri- coeur’s favorite form of language, the metaphor, should itself characterize the spirit of Ricoeur’s h erme- neutic philosophy. Ricoeur’s mediation is metaphorical.” VANHOOZER, Kevin J. Biblical narrative in the philosophy of Paul Ricoeur: A study in hermeneutics and theology. Cambridge University Press: Cam- bridge, 1990, p. 5.

sentido que já está lá, embora pouco aparente, menos do que explicitá-lo do que inventá-lo, com o risco de traí-lo.799

Um breve adendo sobre a metáfora para o sentido no acaso deve ser ludibriado. Tan- to símbolo como metáfora habitam a esfera do duplo sentido. Ao invés de realizar uma filo- sofia da linguagem, Ricoeur trabalha através da linguagem. O símbolo é um modo de metá- fora enquanto a metáfora é um mecanismo inovador da linguagem. A metáfora acompanha o trabalho dos símbolos e os prolonga por conter um excedente de significação.800A imagi- nação linguística passa pela metáfora, de modo que a variação de mundo se deve, na capa- cidade linguística, ao processo metafórico de narração do mundo. Trata-se de um estágio criativo da linguagem que vai além do símbolo e no qual introduz-se um desvio que faz di- zer algo novo. Segundo David Pellauer, “este aspecto transgressivo ou transformativo da metáfora é o que a torna capaz de criar novo significado ao perturbar a ordem da lógica existente, ao mesmo tempo que o gera sob nova forma”801. A metáfora age como reagente inovador linguístico, enquanto o símbolo é uma metáfora que se impõe numa tradição, prin- cipalmente uma tradição de origens. Para além da experiência de palavras e de conceitos, a metáfora situa o ser em sentidos profundos de interpretação capazes de revelar aspectos on- tológicos. Dito de outra forma, o processo metafórico, ao lado do processo simbólico, é a relação do ser humano com aquilo que o constitui.802 Por isso a metáfora é viva, é uma me- táfora vigente (usadas, relembradas ou esquecidas).

O símbolo, por sua vez, é uma metáfora com uma força tradicionante maior; um im- pacto de poder imaginativo maior. Entretanto, o mecanismo da produção do símbolo é o mesmo da metáfora. A metáfora é a força criadora de sentido na linguagem. “Não há outra maneira de fazer justiça à noção de verdade metafórica”, escreve Ricoeur, “do que incluir a incisão crítica do ‘não é’ (literal) na veemência ontológica do que ‘é’ (metafórico)”803. A filosofia deve compreender os limites do discurso conceitual para explorar um novo nível da

799 “Mieux que le symbole, en effet, la métaphore est, comme nous l'avons rappelé, une entité langagière dont

l’existance appelle l’engagement interprétatif de son lecteur, l’interprète étant chargé, moins de surligner un sens déjà là, bien que peu apparent, moins de l'expliciter, que d'inventer, au risque de trahir”. VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 54.

800 RICOEUR, Paul. “Metáfora e símbolo” In: Teoria da Interpretação: o discurso e o excesso de significação.

Lisboa: Edições 70, 2009, p. 45-69.

801 PELLAUER, David. Compreender Ricoeur. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 95. 802 Cf. MONGIN, Olivier. Paul Ricoeur. Paris: Éditions du Seuil, 1998, p. 145.

linguagem no discurso figurativo e ontológico da metáfora.804 A dobra da religião denota inovação metafórica, transgressão de sentido, resistência linguística. A poética de Ricoeur não se restringe à literatura, pois a poética se insere num esfera de primazia linguística, mas capaz de outras poiesis. É na fase intermediária, na qual Ricoeur trabalhou a hermenêutica, que o símbolo é ampliado para a metáfora e a narratividade. A nova dimensão não abandona as etapas anteriores. Entretanto, no desenvolvimento filosófico, o símbolo aparece como um processo metafórico da linguagem que produz “metáforas fortes”: aquelas que adquirem uma força social tão grande que passam a ter valores ontológicos que ofuscam a metáfora, como, por exemplo “Deus”. A metáfora é identificada praticamente com a pessoa divina, o ser divino, no entanto, trata-se de uma metáfora: do sânscrito dia e luz aplicado a Deus. A força simbólica concentra um significado no qual a metáfora passa a dar lugar quase que ao objeto mesmo.

Portanto, a dobra tem em sua linguagem a interpretação metafórica dos mitos.805 A fenomenologia da consciência do tempo é o método da dobra da religião e a interpretação metafórica dos mitos é a linguagem da própria dobra religiosa. Além do método e da lin- guagem, a metáfora, em termos gerais, é importante porque na linguagem ela é a encarnação do possível. A metáfora remove o mecanismo da língua de um movimento linear ou endó- geno. A metáfora abre a língua para muitos possíveis, de passagens à novos horizontes. Sendo a própria vida de Ricoeur, no movimento da metáfora – o encontro de pontos distin- tos – e na passagem do ser para o além do ser – a tarefa da superação –, uma dobra existen- cial, a dobra não é apenas a descrição de uma ideia, mas a própria vida de Ricoeur. A pró- pria vida de Ricoeur é a dobra. Como demonstra-se esta ambição? Nos entrelaçamentos da dobra, a virada religiosa e o destino acontecem justamente na medida em que Ricoeur man- tém seu caminho de pensar-se cristão, mas constantemente voltado com o ser cristão na prá- tica, existencialmente. Segundo ele, a linguagem religiosa articula a função da existência humana no plano da experiência individual, de modo que o pensar da existência humana é a reflexão sobre uma vida reconhecida na virada do destino.806 É neste momento, portanto, que surge a originalidade da tese: a dobra da religião na fenomenologia do possível com a

804 RICOEUR, Paul. A metáfora viva. São Paulo: Edições Loyola, 2005, p. 465-469.

805 Para um estudo mais detalhado acerca da interpretação metafórica dos mitos, cf. JOSGRILBERG, Rui. “O

mito: uma interpretação metafórica”, In: Estudos em Antropologia e Lingaugem, São Paulo: Factash Editora, 2014, pp. 11-126.

806 RICOEUR, Paul. “Foi et philosophie aujourd'hui”, In: Foi-Éducation (Week-end Versailles), 42, 1972, n°

sofisticação teológica da interpretação metafórica da virada religiosa no destino. Tal em-

preendimento apontará para a dobra existencial, cuja novidade ressalta o agnosticismo filo- sófico e a adesão religiosa de Ricoeur, destacando as possibilidades e as originalidades de uma vida interpelada pelo saber acadêmico e pela tradição religiosa. Com esta questão, mostra-se que o pensamento de Ricoeur é um pouco sobre dar conta que a dobra não é ape- nas uma questão da esfera do pensamento, mas assume proporções existenciais da sua pró- pria vida no mundo.807 Não se trata simplesmente de uma reflexão abstrata ou de autoridade. A possibilidade é uma possibilidade de existência. O ponto de chegada, pela virada religio- sa, é o destino, de onde emerge a novidade e a figura da dobra da religião.

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