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Espiral e pertença religiosa na dobra da vida

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IV.2 Hermenêutica de si e dobra existencial

IV.2.1 Espiral e pertença religiosa na dobra da vida

Inicialmente, as categorias existenciais de Ricoeur reportam a uma fenomenologia pragmática da ação – uma praxis “boa”, que restitui a ação humana naquilo que Ricoeur denominou de “filosofia analítica da ação”.826 A ética encontra-se no horizonte da filosofia ricoeuriana e caminha ao lado da dobra da religião. Atitudes éticas de ação implicam em destino. O destino é uma virada religiosa.827 O trabalho do filósofo que se coloca no espiral motivado pela religião lê o mundo também com a inquietação proveniente da religião. A leitura bíblica, no pensamento de Ricoeur, está diretamente relacionada à compreensão do si. “O crente que procura compreender a si mesmo compreendendo melhor os textos de sua

bilidade do mal escandaloso ao mal de falta”. Cf. RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal, 2013, p. 333.

824 RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal, 2013, p. 333.

825 Cf. RICOEUR, Paul. O mal: um desafio à filosofia e à teologia. Papirus: Campinas, 1988, pp. 48-50. 826 Um estudo dedicado à relação entre ética e ação pode ser conferido no quarto capítulo de Écrits et confé-

rences 2, “Implication éthique de la théorie de l’action”, pp. 65-90.

827 Para mais detalhes sobre a virada religiosa, cf. MANOUSSAKIS, John P. (Ed.) After God: Richard Kearney

fé”.828 Em O homem da ciência e o home da fé, Ricoeur, ao questionar a pretensão dos hori- zontes das atitudes”, invoca a modalidade da compreensão ao invés da verdade.829 Compre- ender, e compreender melhor, é a dinâmica da leitura bíblica do ponto de vista da fé. “Para compreender o texto, devo crer naquilo que o texto me anuncia; mas o que o texto me anun- cia não é dado em parte alguma senão no texto. É por essa razão que precisamos compr een- der o texto para crer”830. Em termos hermenêuticos, na dinâmica da compreensão e da cren- ça, a dobra possui circularidade. Inicia-se com a adesão religiosa. É importante para Ricoeur a ideia (no sentido kantiano de ideia, quer dizer, a abertura do pensável, do concebível) da relação de adesão.831 O a adesão, que é uma sensação pertença [appartenance], segue com o testemunho – que é a narrativa da pertença – para a vivência medida pela pertença. Há ingenuidade e consentimento. O conflito da ingenuidade – a primeira ingenuidade – assume o distanciamento. Distante dos problemas e interposições iniciais, o ser humano, ameaçado pelo tempo, pela finitude e pelas mesmas questões existenciais, encontra a confiança. O conhecimento de novas aporias e a maturidade implicam na ação confiante da pertença e da atestação.832 Há uma pertença novamente – a segunda ingenuidade. Tal movimento asseme- lha-se a Kierkegaard, que diz haver, quando reflete sobre a relação indivíduo e comunidade, uma dinâmica de abandono – abnegação – do mundo por parte do indivíduo, um ato forte de escolher ser si mesmo e, depois, voltar ao mundo modificado.833 A hermenêutica do si de O Si-Mesmo Como Outro, que converge com a noção de testemunho de Jean Nabert, trata- se não apenas da análise do cogito cartesiano, mas também da humilhação nietzscheana e os desafios que provém da crítica filosófica para o círculo hermenêutico da compreensão do si na adesão religiosa.

828 “Le croyant qui cherche à se comprendre en comprenant mieux les textes de sa foi”. Cf. RICOEUR, Paul,

apud VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, p. 91.

829 No caso, Ricoeur contrapõe os modelos de mundo e insere a reflexão da contribuição do horizonte da fé dian-

te dos limites de modelos de horizontes. Cf. “L’unité du monde sur laquelle se détachent toutes les ‘attitudes’ est seulement l’horizon de toutes ces attitudes.” RICOEUR, Paul. “L'homme de science et l'homme de foi”, In: Le Semeur, 50, 1952, novembre, p. 21; “Démythologisation et herméneutique”, Nancy, Centre Européen universitaire, 1967, p. 32.

830 RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações, 1978, p. 326-327. 831 “relation d’appartenance”, influência de Gadamer.

832 Cf. MONGIN, Olivier. Paul Ricoeur, 1998, p. 167-168.

833 “A interioridade exigida é aqui a da abnegação ou renúncia de si, que não se define mais proximamente em

relação com a noção do amor da pessoa amada (do objeto), mas sim em relação com auxiliar a pessoa amada a amar a Deus. Daí segue que a relação de amor, enquanto tal, pode constituir-se no sacrifício que é exigido. A interioridade do amor deve estar disposta ao sacrifício, e mais: sem exigir nenhuma recompensa.” KIER- KEGAARD, Soren. As Obras do Amor. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 156.

Destaca-se o artigo Croyance na Encyclopaedia Universalis.834 Diante da filosofia, a virada da crença se dá pela força da singularidade das palavras na ação humana, sobretudo a ação do crer.835 Por um lado há o problema filosófico da crença, i.e., o pensamento que se direciona à veracidade das proposições e enunciados da crença. Por outro lado, aquele no qual Ricoeur coloca sua reflexão, está a dinâmica da crença no círculo da pert ença religiosa, cujo enigma do ter por verdade é mantido na aporia do pensamento para a compreensão do ato de crer.836 A despeito dos autores analisados no extrato, a investigação sobre a crença se dá no plano filosófico da compreensão e distinção da experiência e dos horizontes que con- figuram o ato do crer.837 A centralidade da crença está na noção de atestação na pertença religiosa, que se distingue e se situa entre a doxa aristotélica e a opinião epistêmica.838 Na perspectiva cartesiana e na hermenêutica do si, a crença é a atestação de ser si-mesmo e agir mesmo no sofrimento.839 A atestação do si diferencia o “quem” do “quê” (a pessoa da coisi- ficação), de modo que o sujeito possa reconhecer-se na tarefa hermenêutica que pergunta pelo sentido daquilo que se crê. Segundo Olivier Mongin, é pela força da atestação que se pode renunciar ao vazio depressivo da aporia.840 Ricoeur afirma que a hermenêutica do si se distancia do cogito exaltado de Descarte e do cogito caído de Nietzsche, a despeito da con- tribuição dos mestres da suspeita, para um equilíbrio de representação pós-kantiana da tare- fa do reconhecimento do si.841

Resgata-se, na esfera da crença e da hermenêutica do si, a dialética da imprevisibili- dade e do papel da alteridade. A atestação é o movimento da ação na hermenêutica do si . O involuntário assumido na esfera voluntária se dá pela apelação possível da hermenêutica do si na ação. A crença é o possível da hermenêutica do si assumido no destino. Responder à imprevisibilidade, no ato do crer, é agir eticamente. Interpelado pelo texto sagrado da tradi-

834 RICOEUR, Paul. “Croyance”, In: Encyclopaedia Universalis. V, Paris, Encyclopaedia Universalis France,

1969, pp. 171-176.

835 RICOEUR, Paul. “Croyance”, In: Encyclopaedia Universalis. 1969, p. 171. 836 RICOEUR, Paul. “Croyance”, In: Encyclopaedia Universalis. 1969, p. 172. 837 RICOEUR, Paul. “Croyance”, In: Encyclopaedia Universalis. 1969, p. 174. 838 Cf. MONGIN, Olivier. Paul Ricoeur, 1998, p. 167.

839 “L’attestation peut se définir comme l’assurance d'être soi-même agissant et souffrant”. RICOEUR, Paul

apud MONGIN, Olivier. Paul Ricoeur, 1998, p. 167.

840 MONGIN, Olivier. Paul Ricoeur, 1998, p. 170.

841 “En tant que créance sans garantie, mais aussi en tant que confiance plus forte que tout soupçon, l'herméneu-

tique du soi peut prétendre se tenir à égale distance du cogito exalté par Descartes et du cogito déclaré déchu par Nietzsche” RICOEUR, Paul apud MONGIN, Olivier. Paul Ricoeur, 1998, p. 170.

ção mediadora, o agir responsável implica em alteridade ética.842 A “arquitetura textual dos corpos cristãos”, conforme trabalhada por Gilbert Vincent, abre o reconhecimento do si na imprevisibilidade diante das narrativas e tradições religiosas (no caso, a cristã) da qual o indivíduo pertence e se interage com outros que também creem. Podemos conferir um cui- dado didático semelhante em O Si Mesmo como um Outro, onde Ricoeur afastou o religioso da abordagem filosófica, de modo que este é visto sob a voz da consciência. No caso, ele adotou os termos de “linguagem de transição”, ou ainda, uma espécie de armistício, para distinguir o filosófico e público da dimensão pessoal e comunitária.843 No âmbito da crença, Ricoeur escreveu sobre “uma relação fraterna com os seres em uma espécie de amizade franciscana com a criação, encontrar o gracioso, o perdoado, o inesperado, o impensável: é aqui que a ‘comunhão dos santos’ faz sentido”844. A crença é o elemento que identifica e promove a relação fraterna do ser humano com a criação e os outros demais indivíduos.

Em uma de suas últimas palestras, aos 29 de Novembro de 2000, sobre o tema “A crença religiosa”, Ricoeur sintetizou o papel da religião dizendo: a religião é a restauração da bondade humana.845 Olivier Abel enfatiza o aspecto da religião em Ricoeur ser uma oportunidade de fazer o bem. Não se trata de um empreendimento novo, muito menos de uma ontologia reformulada, mas de um caminho que parte da ontologia quebrada e aponta para um humanismo ético. A possibilidade para o bem e a postura ética é uma das heranças do calvinismo no pensamento de Ricoeur. A religião, como a capacidade do ser humano fazer o bem, é uma herança de Aristóteles, Espinoza e, sobretudo, Kant (principalmente Kant)846. A religião é o interlúdio da bondade humana; interlúdio, pois não é início nem fim: é meio para uma ética do possível pela crença em um nome divino. Seguimos a indicação de Vincent: a possibilidade de fazer o bem acontece ne encontro das confusões (como, por

842 Sobre a ética, o ethos radical, Ricoeur pretende ir além da ética moral das estrutura ternária para uma ética

suscetível de fornecer um fio condutor na reflexão das outras camadas da constituição de pessoa. Em suma, a “aspiração a uma vida realizada – com e para os outros – em instituições justas” RICOEUR, Paul. Leituras 2 – A Região dos Filósofos, 1996, p. 164.

843 Cf. RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 237.

844 “Se soustraire à la fascination de la puissance, habiter ce monde sans le dominer, renouer une relation frater-

nelle aux êtres dans une sorte d’amitié franciscaine pour la création, retrouver le gracieux, le gracié, l’imprévu, l’inouï : c’est ici que la ‘communion des saints’ prend son sens”. Texto publicado originalmente em História e verdade. In: RICOEUR, Paul, apud VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur.s, 2008, p. 51.

845 In: RICOEUR, Paul. La croyance religieuse. [Filme-vídeo]. Produção de Mission 2000 en France. França,

Universités Numériques Thématiques, 29 de Novembro 2000. 1 vídeo digital online, 80 min. Colorido. Som. Disponível em: http://www.canal-u.tv/video/universite_de_tous_les_savoirs/la_croyance_religieuse.1186 Acessado em: novembro de 2012.

exemplo, a oposição “fé” e “obediência”847). Dos aspectos fraturados na religião – destaca- dos por Ricoeur em suas obras – os que relacionam-se à crença para a dobra da religião são: o caráter incompleto da linguagem religiosa e a compreensão de si.848 O primeiro refere à linguagem fraturada que é insuficiente até na religião – denominado de incompletude da linguagem religiosa. A crença, neste caso, é a possibilidade que se faz presente na reconsti- tuição da fissura linguística na incompletude da linguagem religiosa. O segundo, a compre- ensão do si – que é um empreendimento da própria filosofia de Ricoeur – é pela crença a possibilidade do reconhecimento do si na tarefa hermenêutica que lida com textos sagrados . Segundo Ricoeur, a crença e confiança do testemunho não estão na esfera do conhecimento dedutivo nem com a evidência empírica. A crença e a confiança religiosa que passa pelo testemunho se enquadra na categoria de compreensão e interpretação.849 Este movimento leva ao sentimento de pertença religiosa e desdobra as preocupações do reconhecimento do si e da bondade humana numa ética. A dobra em Ricoeur caracteriza-se como um entrela- çamento do pensamento religioso com a vida – e também, em certas medidas, com o ato filosófico. O entrelaçamento mais original é o nome de Deus.

Para a continuação da reflexão sobre o acaso e o destino da religião, deve ser enfati- zada a dimensão ontológica da linguagem na religião. A vida, para Ricoeur, reflete-se lin- guisticamente, de modo que a religião tem em seu centro a autonomia da linguagem e o problema da interpretação – e, consequentemente, da compreensão de si.850 Para o recorte específico da tese, assumir o destino implica na reflexão linguística, a despeito dos limites hermenêutico, pois implica em retornar à vida. Este é o problema central da linguagem em Ricoeur: mesmo com as fraturas, é preciso retornar à vida.851 A linguagem estabelece um intervalo reflexivo, pelo qual o ser humano se reconhece, testemunha e age. A linguagem é existencialmente e ontologicamente deslocada, de modo que ela não possui continuidade e imediaticidade com o mundo: ela é interpretativa. Embora há um fundo ontológico, a lin-

847 Para uma discussão mais detalhada sobre o sasunto, cf. RICOEUR, Paul. “Croyance”, In: Encyclopaedia

Universalis. 1969, p. 173-176.

848 VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, p. 122.

849 “La croyance-confiance du témoignage second sur le témoignage premier, absolu, ne coïncide ni avec le sa-

voir déductif, ni avec la preuve empirique. Il relève de la catégorie de la compréhension et de l’interprétation.”

850 Cf. “La métaphore et le problème central de l’hermnéneutique”, In: RICOEUR, Paul. Écrits et conférences 2.

Hermeneutique. 2010, pp. 91-93.

851 Cf. RICOEUR, Paul. Do texto à acção: Ensaios de Hermenêutica II. RÉS-Editora, Ltda: Porto-Portugal,

guagem é um lugar revelador mas com carência de fundo. Portanto, a linguagem, sobretudo a linguagem religiosa, para Ricoeur, em sua condição incompleta, é mediação que tem uma descontinuidade ontológica e pede por interpretação. A carência existe por conta da fratura linguística e do acaso que permeia o mistério – e de todos os mistérios, o mais significativo, aquele que fornece movimento à dobra da religião, é o mistério da nomeação de Deus.

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