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Linguagem nos limites da tensão

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II.1 Situação hermenêutica

II.1.4 Linguagem nos limites da tensão

A dobra em tensão sedimenta sentidos e significados para o ser na esfera da lingua- gem. Aos ecos da relação entre a religião e a ontologia, Christina Gschwandtner situou a questão fundamental acerca do posicionamento original de Ricoeur: “Como a sua adesão hermenêutica influencia na forma na qual ele configura a divisão ou a relação entre os dis- cursos filosóficos e bíblicos, fenomenológicos e religiosos?”357 Ao comentar sobre a filoso- fia e a linguagem religiosa, Ricoeur insiste que a hermenêutica filosófica “tentará chegar o mais próximo possível das expressões mais originárias de uma comunidade de fé, daquelas expressões pelas quais os membros de determinada comunidade interpretaram a sua experi- ência para o bem de si mesmos ou por causa de outros.”358 A hermenêutica filosófica ofere- ce subsídios para a interpretação que não se atém à dogmática ou ortodoxia religiosa. A au- tonomia do discurso filosófico e a originalidade da narrativa religiosa implicam numa me- todologia hermenêutica que requer atenção.

Pode, pois, parecer que creditamos a subordinação da hermenêutica bíblica à hermenêutica filosófica, ao tratá-la como uma hermenêutica aplicada. Mas é, precisamente, ao tratar a hermenêutica teológica como uma herme- nêutica aplicada a uma espécie de textos – os textos bíblicos –, que se reve- la uma relação inversa entre as duas hermenêuticas. A hermenêutica teoló- gica apresenta características tão originais que a relação se inverte progres- sivamente, subordinando-se, finalmente, a hermenêutica teológica à her- menêutica filosófica como o seu próprio organon.359

Trata-se, em primeiro lugar, de dois modos de saberes que, a rigor, não fragmentam e nem totalizam um conhecimento. Ambos saberes são complementares, a saber,

a filosofia tem necessidade de uma hermenêutica da religião porque é no

exterior da circunscrição da razão que se inscreve o caráter inescrutável da

origem do mal, da origem da representação crística implantada em nossos

357 “How do his hermeneutic commitments influence the way in which he configures the divide or relationship

between the philosophical and biblical, phenomenological and religious discourses?” GSCHWANDTNER, Christina. “Paul Ricoeur and the Relationship Between Philosophical and Religion in Contemporary French Phenomenology”. In: Études Ricoeuriennes, Vol 3, No. 2, 2012, p. 15.

358 “A hermeneutical philosophy will try to get as close as possible to the most originary expressions of a

community of faith, to those expressions through which the members of this community have interpreted their experience for the sake of themselves or for the other's sake.” RICOEUR, Paul. Figuring the Sacred, 1995, p. 37.

corações, do dom adicional da graça que a crença confessa, finalmente, da instituição dá visibilidade ao Reino de Deus na terra.360

Em uma entrevista, no qual falou especificamente sobre a intersecção dos domínios da filosofia e teologia, Ricoeur declarou: “É isso o que eu aprendi com o pensamento her- menêutico: o horizonte sempre será a totalidade e a unidade, enquanto o nosso pensamento sempre será fragmentário. Isso significa que não podemos transformar este horizonte em uma possessão.”361 Identificar o pensamento, que é fragmentado, como um horizonte leva ao equívoco da possessão – segundo Paul Tillich, a idolatria caracteriza-se por semelhante movimento.362 É necessário explicitar a relação da religião com o texto sagrado, pois é nesta relação que está a função da dobra.

A Bíblia é o horizonte de suas motivações e reflexões religiosas – ela não pode se reduzir à leituras que pretendem a sua totalidade. Falar de religião, em Ricoeur, é a priori referir-se à experiência cristã e a abertura de mundo que dela advém.363 Deste modo, as Es- crituras, segundo ele, são modos de discursos que constituem o campo finito da interpreta- ção na fronteira onde a linguagem religiosa pode ser compreendida.364 Há uma preocupação genuína pela integridade dos textos, que preserva, de certo modo, a filosofia e a teologia, cada uma em seu domínio em relação ao texto. Ao justificar o seu método agnóstico na filo- sofia, encontramos na introdução de O Si-Mesmo como Outro alguns esclarecimentos sobre a primordialidade do texto, como também a aversão por leituras “criptofilosóficas” ou “crip- toteológicas”.365 Se existem autores que não compartilharam tal preocupação – e.g., Jean- Luc Marion, que funde o discurso religioso ao filosófico366, ou Paul Tillich, em sua leitura ontológica da religião bíblica, que rompe, de certa forma, com os limites da teologia e filo-

360RICOEUR, Paul. “Uma Hermenêutica Filosófica da Religião: Kant”, In: Leituras 3 – Nas Fronteiras da Filo-

sofia, 1996, p. 39-40.

361 “This is what I’ve learned from hermeneutic thought, it is a fact that we always aim at totality and unity as a

horizon, but that our thought always remains fragmentary. This means that we cannot transform this horizon in possession”. RICOEUR, Paul, apud RAYNOVA, Yvanka. “All that Gives Us to Think: Conversations with Paul Ricoeur”, In: WIERCINSKI, Andrzej (Org.) Between Suspicion and Sympathy: Paul Ricoeur's Unstable Equilibrium. Toronto: Hermeneutic Press, 2003, p. 686-688.

362 Cf. TILLICH, Paul. Dynamics of Faith, p. 45.

363 Por religião compreendemos o campo das experiências e vivências do religioso. Enquanto objeto de reflexão,

como a tese é um trabalho de ontologia, optamos por trabalhar com a religião – mesmo porque a teologia, pa- ra Ricoeur, é teologia cristã. Quando o termo teologia aparecer, ele é usado para se referir, em suma, à área do conhecimento teológico (geralmente em contraste com a filosofia).

364 Cf. RICOEUR, Paul. Figuring the Sacred, 1995, p. 38. 365 Cf. RICOEUR, Paul. O si-mesmo como outro, 2014, p. XLI.

366 Cf. MARION, Jean-Luc. “‘Christian Philosophy’: Hermeneutic or Heuristic?”, In: AMBROSIO, Francis.

sofia367 – é justamente pela fidelidade ao texto que Ricoeur sustenta, como pressuposto me- todológico, a distinção entre os campos do saber para uma hermenêutica filosófica autôno- ma e um discurso religioso autêntico.

A hermenêutica praticada por Ricoeur, na esfera da suspeita, comporta dobras. Em termos metodológicos para a dobra, Paul Ricoeur sugere a hermenêutica da via longa. “Nós nos compreendemos apenas através do longo desvio dos sinais de humanidade depositados em obras culturais”.368 As produções culturais são estudadas enquanto fenômenos que se manifestam e comunicam algo sobre o ser e sobre o si mesmo. A análise da realidade, sob a hermenêutica do ser, feita por Ricoeur, é intermediada pelas exteriorizações culturais e, so- bretudo, religiosas, que compõem a identidade narrativa do indivíduo. “O caminho é o mais longo. É o caminho da paciência e não da pressa e da precipitação”.369 Neste sentido, a via longa de Ricoeur se diferencia da via curta de Martin Heidegger – para Heidegger, a pri- mordialidade do fenômeno é estritamente de cunho ontológico e fenomenológico, enquanto para Ricoeur a via longa é também ontológica e fenomenológica, mas caminha por linhas diversas da cultura. A via longa, com a intermediação da hermenêutica e do ser, encontra na religião uma das suas principais vias. Registrado em sua autobiografia, Ricoeur articula, originalmente e honestamente, suas alianças, que são múltiplas. Ricoeur valoriza as raízes religiosas, sobretudo protestantes, como também a origem e a solidariedade que dela ad- vém.370 A dobra da religião opera na tensão oriunda das aporias destas alianças. As aporias são aprofundadas em turnos – a exemplo, a crítica filosófica e a hermenêutica religiosa seri- am alguns desses turnos.371 Ao invés de afastar a centralidade da pesquisa, os diferentes turnos enriquecem a via longa e aproximam outros conteúdos à reflexão. A dobra é, deste modo, o movimento de voltas que acrescentam em vez de excluir. Ricoeur indica o caminho da história e da narrativa bíblica.372 Tratam-se de desvios, turnos, em suma, dobras, das quais Ricoeur não aspira o caminho breve ou instantâneo, aquilo que foi denominado por

367 Cf. TILLICH, Paul. The Biblical Religion and the Search for the Ultimate Reality, Chicago: University Of

Chicago Press, 1987.

368 Cf. RICOEUR, Paul. “A função hermenêutica do distancioamento”, In: Interpretação e Ideologias, 1990, p.

55.

369 RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações, 1978, p. 335.

370 GISEL, Pierre. “Prefácio”, In: RICOEUR, Paul. O mal: um desafio à filosofia e à teologia, p. 13.

371 RICOEUR, Paul. La critique et la conviction, p. 49, apud Cf. Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 27. 372 DIferenciando-se de Karl Jaspers, que aponta para a metafísica. Cf. RICOEUR, Paul. “Philosophie et Reli-

via curta. Antes, o filósofo projeta o caminho longo, com tarefas e desafios, no qual a pró- pria dinâmica do ser é vivenciada em turnos criativos e desvios inovadores.

A tese da dobra a religião, inspirada na via longa, situa o eixo articulador no distan- ciamento e, consequentemente, na suspeita. Em Do Texto à Ação373, a dialética do distanci- amento e da suspeita, i.e., o distanciamento da experiência de pertença e de alienação, a suspeita da relação justiça e ideologia374, caracteriza a hermenêutica na dinâmica de concor- dância e discordância. No coração das preocupações hermenêuticas, o pulsar do texto só é possível pela ação, que acontece no diálogo. O comprometimento hermenêutico se recusa a estabelecer um fim definitivo para qualquer assunto, muito menos possuí-lo enquanto hori- zonte, de modo que a implicação leitura denota um modo de ser. Evitando transcendências ou imanências absolutas que impossibilitem a pluralidade hermenêutica375, a seu ver, dis- cursos de ideologia e utopia encerram a realidade em “conclusões prematuras”, inibindo outras manifestações possíveis376 – promovendo o prejuízo de mundo. A hermenêutica da suspeita, portanto, segundo Ricoeur, é parte integral e indispensável da apropriação de sen- tido e aponta para a reflexão do ser que se distanciou de ideologias.377

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