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O caminho da sabedoria prática

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IV.2 Hermenêutica de si e dobra existencial

IV.2.4 O caminho da sabedoria prática

A dificuldade do caminho pede por capacidade e possibilidade. O ser humano capaz é o destinatário da religião e pelo espiral de uma vida torna possível o fundo de bondade. A ação da sabedoria opõe-se ao fatalismo, ao interpretar, em um movimento dialético positivo, os eventos que figuram o horizonte da expectativa.891 Na mediação do símbolo, da crença e da convivência comunitária, motivado pelo caráter da bondade da e justiça, a inquietação proveniente dos problemas impostos pela existência encontram na religião “a capacidade extraordinária de tornar o homem ordinário capaz de fazer o bem”892. Seguindo Kant, deve ser destacado constantemente, a face luminosa da religião está na ação boa e justa. Seguindo as orientações de Kant, no livro História e Verdade, Ricoeur evoca a parábola do bom sa- maritano para ilustrar o fim ético da religião diante da fatalidade e do trabalho das apori- as.893 Neste âmbito, a finalidade da religião é ética e a vocação fundamental da religião é moral, i.e., a capacidade de se fazer o bem.894 Os medievais sustentavam conceitos éticos de “noções comuns”; Kant, a concepção da autonomia do sujeito moral; Ricoeur, “a relação primordial entre uma liberdade que surge e uma regra que se direciona a um sujeito capaz

889 Cf. RICOEUR, Paul. La croyance religieuse. [Filme-vídeo], 2000.

890 “Le religieux a pour fonction la délivrance du fond de bonté des liens qui le tiennent captif”. RICOEUR, Paul.

La croyance religieuse. [Filme-vídeo], 2000.

891 “To avoid the pitfall of fatalism, Ricoeur points to the necessity of always interpreting our ‘being-affected-by-

the-past’ in positive dialectical tension with our horizon of expectancy.” KEARNEY, Richard. Poetics of Modernity: Towards a Hermeneutic Imagination, 1995, p. 82.

892 “La capacité extraordinaire de rendre l’homme ordinaire capable de faire le bien”.

893 Cf. RICOEUR, Paul. “Le socius et le prochain”, In: Histoire et vérité, Points Seuil: Paris, 2002, 408p., p. 99. 894 A despeito da particularidade de cada uma no pensamento do filósofo, ética e moral perfazem o mesmo cam-

po do que podemos denominar de “sabedoria prática”. Cf. RICOEUR, Paul. “Ethique et morale”, In: Lectures I. Paris: Seuil, 1991, p. 256.

de imputação”895. Ser capaz de fazer o bem está no nível da articulação entre a posição do si e a imposição da regra, i.e., a aporia da autonomia. Trata-se da primazia da ética sobre a moral. Em outras palavras, da visada em “vida boa” com e para outrem em instituições jus- tas.896 A capacidade efetiva de agir para o bem, na dobra da religião, encontra-se na auto- nomia do sujeito que se reconhece na tarefa do ser mediada pela hermenêutica do si que tem no teônimo e nas aporias religiosas a possibilidade concreta da ação justa.

Ao examinar a ação, além de Kant, Ricoeur reporta a Paul Tillich e a seu conceito de “a coragem de ser”897. A coragem opera a articulação entre o religioso e a moral de modo que a ação ultrapassa os conteúdos normativos para alcançar o agir segundo o bem comum. Para o caminho do bem, a coragem, longe de esgotar o tema do amor – a finalidade da ética da dobra da religião –, como um ato humano, como matéria de avaliação, é um conceito ético; como autoafirmação do ser de alguém é um conceito ontológico.898 Segundo Tillich, “coragem do ser é o ato ético no qual o homem afirma seu próprio ser a despeito daqueles elementos de sua existência que entram em conflito com sua autoafirmação essencial”899. A dobra, em sua condição reflexiva e em ato corajoso, implica a meditação do reconhecimento de si e do outro para o caminho do bem. Com isso, na autoafirmação da religião em sua do- bra, motivado pela coragem de ser e pela confiança incondicional, o ser humano capaz es- capa da primeira ingenuidade e não ostenta diferença extraordinária na segunda ingenuida- de.900 Este é o percurso da dialética entre sedimentação e inovação, presente nos dois pri- meiros volumes de Tempo e Narrativa. O exame da hermenêutica, na busca pela potência do ser que se sedimenta e se inova, contempla a religião em si mesma na tarefa do reconhe- cimento, porém, consciente e reservada de vícios. A “violência simbólica” da inquisição, das guerras religiosas, das contradições de corpos, do sacrifício das religiões arcaicas , na

895 “Le rapport primordial entre une liberté qui se pose et une règle qui s’adresse à un sujet capable

d’imputation” RICOEUR, Paul. La croyance religieuse. [Filme-vídeo], 2000.

896 O componente primeiro da ética aristotélica do “viver-bem”, “vida verdadeira”, i.e., a “vida boa” é aquilo que

deve ser noemado em primeiro lugar porque é o próprio objeto da visão ética. Cf. RICOEUR, Paul. O Si- mesmo como um outro. São Paulo: Martins Fontes, 2014, pp. 186-187.

897 “A coragem de ser” é uma expressão (também título do livro filosófico) de Paul Tillich, no qual ele trabalha a

ansiedade e a falta de sentido em relação ao fundamento do ser: a fé absoluta. Cf. TILLICH, Paul. A Cor- agem de Ser. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, 146p.

898 Cf. TILLICH, Paul. A coragem de ser, 1976, p. 3. 899 TILLICH, Paul. A coragem de ser, 1976, p. 3.

900 “A coragem participa da auto-afirmação do ser-em-si, participa da potência do ser que prevalece contra o não-

ser”. Cf. TILLICH, Paul. A coragem de ser, 1976, p. 140. Deste modo, a essência da coragem combina de Tillich com a tarefa hermenêutica de Ricoeur.

condição de “vícios da religião”, de inovações quebradas, denunciam a propensão para o mal mesmo na própria religião (que tem em seu discurso a inclinação para o bem). Trata-se, portanto, de renunciar o sonho de uma super-religião que pretende qualquer totalização.901 Evidentemente o caminho religioso, pela adesão de cada indivíduo, evoca a fundação do próprio indivíduo em seus símbolos e narrativas que sustentam a sua identidade no mundo. Entretanto, a preocupação religiosa e os sentimentos religiosos não devem ser identificados como o fim último da existência individual nem coletiva. Essas preocupações e sentimentos são comuns na condição humana, transponíveis ou comunicáveis de uma religião à outra, justamente pela queda original e a finitude. Isto quer dizer, a ideia de uma super-religião (que pretende ser a única narrativa possível de uma fenomenologia da consciência do tem- po) perde a capacidade de perceber as manifestações comuns diversas nas singularidades da vida. A reflexão do sentimento de dependência absoluta – o sentimento religioso por exce- lência – segundo Shcleiermacher, é proposto como a precedência da palavra à toda palavra articulada no discurso.902 Em termos mais apropriados, para o caminho da religião, Ricoeur recorre a Tillich a respeito da dimensão religiosa de uma confiança incondicional a despeito do acaso, um compromisso total, apesar de qualquer hesitação ou dúvida. A confiança in- condicional, a despeito do acaso, em ato corajoso, vai ao encontro do pensamento de Ri- coeur em assumir o acaso no destino.

O intricamento do caminho religioso com a sabedoria prática está na religião como ideia-limite. Tal ambição encontra-se na articulação do tripé kantiano do símbolo funda- mental, da crença intelectual e da mediação comunitária com o “fundo sem fundo”, de Schelling. A ideia-limite de uma religião, ao entendimento de Ricoeur, mesmo no fundo do abismo, responde com sentidos para a vivência individual e comunitária por aquilo que ele denomina de “o simbolismo do bem”. A religião é um elogio à possibilidade do bem e uma opção pela ação justa. Na tarefa da dobra da religião, Ricoeur resgata o simbolismo da torre de Babel ao enfatizar a dimensão linguística inerente na religião. Um ponto em comum en- contra-se no trabalho da tradução. A linguagem, assim como a religião, não é universal. Há línguas maternas e línguas estrangeiras. A capacidade do aprendizado de outros idiomas,

901 “La première à prendre en compte est qu'il faut renoncer au rêve d'une super-religion.” RICOEUR, Paul. La

croyance religieuse. [Filme-vídeo], 2000.

902 “Ainsi le sentiment de « dépendance absolue » dont parle Schleiermacher, que j’interprète entre autre comme

la précédence de la parole à toute parole articulée en discours”. RICOEUR, Paul. La croyance religieuse. [Filme-vídeo], 2000.

pela “hospitalidade linguística”, permite a transição e compreensão em diferentes culturas, em diferentes mundos. Esta dinâmica aproxima-se da crença religiosa em meio a outras crenças e transporta, no plano da linguagem, a possibilidade do conhecimento e reconheci- mento de outras tradições religiosas. A exploração das diferentes crenças religiosas é uma das tarefas da dobra da religião na intenção de compreender e traduzir outros mundos par a o próprio mundo. A ação boa e justa, a finalidade da religião, comporta a interpretação ricoeu- riana da sensibilidade com o outro, com o diferente.903

A “sabedoria prática”, da qual Ricoeur aponta no final de sua meditação acerca da crença religiosa, é a ação do bem diante da violência mimética no campo religioso.904 A sabedoria prática constitui a prática diária da tolerância.905 O encontro de diferentes religi- ões e convicções, na via da tolerância, pode iniciar um movimento progressivo de uma as- censão árdua. O estado da subida alcança outros degraus, nos quais a confissão religiosa e o princípio de justiça se tornam comum. O direito de igualdade para confessar uma determi- nada religião é garantido pela tarefa do reconhecimento do outro em sua individualidade. Estas reflexões podem ser enaltecidas com a própria vida de Ricoeur e seu diálogo interno acerca das aporias religiosas. Segundo ele,

no buraco da minha convicção, da minha convicção, eu reconheço que há um fundo que eu não controlo, nem pela linguagem, emoção ou ação. Eu discirno no fundo da minha adesão uma fonte de inspiração que, pela sua exigência de pensamento, sua força de mobilização prática e sua generosi- dade emocional, ultrapassa a minha capacidade de acolhimento e de com- preensão.906

Metaforicamente, Ricoeur remete à imagem do cume de uma montanha. Para ele, a adesão religiosa, sendo esta uma das questões centrais implicadas pela dobra da religião, é tida como um equilibrar-se no cume da montanha, no qual o gesto do equilíbrio separa o

903 Cf. RICOEUR, Paul. La croyance religieuse. [Filme-vídeo], 2000.

904 Para maiores informações sobre a violência mimética, consultar: GIRARD, René. A violência e o sagrado.

São Paulo: Paz e Terra/UNESP, 1990. 391p.

905 “Je voudrais tirer une ultime conséquence de mon interprétation du phénomène de la violence dans le champs

religieux. C’est une conséquence pratique, plus assurée que les précédentes et relevant de ce que j’appelle la « sagesse pratique ». Elle concerne l’usage quotidien de la tolérance. RICOEUR, Paul. La croyance religieu- se. [Filme-vídeo], 2000.

906 “Au creux même de ma propre conviction, de ma propre confession, je reconnais qu’il y a un fond que je ne

maîtrise ni par le langage, ni par l’émotion, ni par l’action ». Je discerne dans le fond de mon adhésion une source d’inspiration qui par son exigence de pensée, sa force de mobilisation pratique, sa générosité émo- tionnelle, excède ma capacité d’accueil et de compréhension” RICOEUR, Paul. La croyance religieuse. [Filme-vídeo], 2000.

caminho justo e bom do caminho leviano e mal. Na figura da sociedade, uma montanha nunca está sozinha: ela faz parte de uma cadeia composta por outras montanhas. A tolerân- cia exagerada corrompe o ceticismo e torna a diferença indiferente. O desafio inerente na dobra da religião é enraizar a crença no solo da montanha, assim como uma língua nativa, e abrir-se lateralmente, amplamente, i.e., abrir-se para outras crenças (no caso de diferentes religiões) e outras línguas (no caso de diferentes culturas). O solo da língua nativa não é o único solo possível, assim como a religião praticada não é a abordagem exclusiva de mundo – mas o alargamento de um mundo possível. Como manter-se no cume da montanha sem perder a identidade religiosa? Este é o grande desafio invocado por Ricoeur ao fim de uma de suas últimas reflexões sobre a crença religiosa.907 Para este desafio, a dobra da religião evoca o destino.

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