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As noções plurais do tempo cíclico e linear aplicadas ao tempo mítico

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II.2 Além das aporias: o mundo do mito

II.2.4 As noções plurais do tempo cíclico e linear aplicadas ao tempo mítico

Ao resgatarmos o trabalho da fenomenologia da consciência do tempo no tempo mí- tico, Ricoeur alerta que, ao estilo de Mircea Eliade, é necessária a compreensão do tempo mítico em seu próprio termo, i.e., “não o avaliar contra o seu adversário alegado, nossa con- cepção moderna de tempo linear”418. Acompanhando os fundamentos em Mythe 3,

414 Cf. RICOEUR, Paul. “The History of Religions and the Phenomenology of Time Consciousness”. In: KITA-

GAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions: Retrospect and Prospect, p. 16.

415 RICOEUR, Paul. “The History of Religions and the Phenomenology of Time Consciousness”. In: KITA-

GAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions: Retrospect and Prospect, p. 16.

416 Cf. o modelo metafórico do mito, In: RICOEUR, Paul. “Mythe 3. L’interprétation philosophique”, In: En-

cyclopaedia universalis, 1971, p. 532.

417 “The complex interlocking relationship between nowness, pastness, and futurity confers a ‘thickness’ to

nowness irreducible to the discrete status of the instant as a mere abstract break in the linear continuity”. RI- COEUR, Paul. “The History of Religions and the Phenomenology of Time Consciousness”. In: KITAGA- WA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions: Retrospect and Prospect, p. 16.

418 “It (mythical time) has to be understood on its own terms, that is, without measuring it against its alleged

opposite, our modern concept of linear time”. RICOEUR, Paul. “The History of Religions and the Phenome- nology of Time Consciousness”. In: KITAGAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions: Retrospect and Prospect, p. 19.

L’interprétation philosophique419, um importante artigo publicado na Encyclopaedia uni- versalis, de Paris, em 1971, Ricoeur estabelece que “o mito é considerado aqui como uma forma de discurso que suscita uma pretensão de significado e de verdade ”420. Ricoeur, mes- mo com raízes calvinistas421, desconstrói os mitos vigentes e aprofunda os estágios da refle- xão do mito. Há uma narrativa filosófica e há uma narrativa mítica. Ao contrário de uma opor-se a outra, a narrativa mítica é uma linguagem que ajuda a própria filosofia. Motivado pelo estudo da simbólica do mal, a narrativa mítica apresenta uma lógica e um mundo, dife- rente da argumentação filosófica, porém vinculado ao mundo real. A condição do mito é possível pela temporalidade. A objeção inicial de Ricoeur, neste caso, encontra-se no tempo cíclico. Para este caminho, Ricoeur sugere, como ponto de partida, dois dos célebres traba- lhos de Mircea Eliade: Tratado de História das Religiões422 e O Mito do Eterno Retorno423.

Ao analisar as ideias e comportamentos das religiões arcaicas e primitivas, Eliade percebeu, inspirado no “eterno retorno” de Friedrich Nietzsche, que havia, dentre os textos analisados, uma “tendência do Espírito ao retorno ao Todo-Um”424. Eliade sustentou que eram tendências de reintegração e unificação do ser humano para superar os contrários e realizar a androginia. Segundo ele, uma busca de ser humano perfeito, que supriria todas contradições e alcançaria a unidade-totalidade em uma origem primordial, narrada em mitos e vivenciada em ritos. Tão logo Ricoeur observou que a implicação básica da filosofia de Eliade está na exemplaridade. Citando Eliade, Ricoeur escreveu sobre a primordialidade e exemplaridade do mito. A especulação mítica, antes da gnose e das construções antignósti- cas, reportam à “narrativa tradicional sobre acontecimentos que tiveram lugar na origem dos tempos, destinada a fundar a ação ritual dos homens dos dias de hoje e, de maneira geral, a

419 RICOEUR, Paul. “Mythe 3. L’interprétation philosophique”, In: Encyclopaedia universalis. XI, Paris, En-

cyclopaedia Universalis France, 1971, 530-537pp.

420 “Le mythe sera envisagé ici comme une forme de discours que élève une prétention au sens et à la vérité”.

RICOEUR, Paul. “Mythe 3. L’interprétation philosophique”, In: Encyclopaedia universalis, 1971, p. 530.

421 João Calvino faz uma distinção simples de narrativa e de mito, sendo o mito apenas um modo de narrar o

mundo.

422 ELIADE, Mircea. Tratado de História das Religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2002, 479p.

423 Cf. ELIADE, Mircea. O mito do Eterno Retorno. Lisboa: Edições 70. 1969. 174p. A melhor obra para a in-

trodução ao pensamento de Eliade. “Quando me perguntam em que ordem meus livros devem ser lidos, sem- pre recomendo que se comece pelo presente trabalho (O Mito do Eterno Retorno)”. ELIADE, Mircea. O Mito do Eterno Retorno, p. 13.

instituir todas as formas de ação e de pensamento através das quais o homem se compr eende a si mesmo no se mundo”425. Segundo Ricoeur,

o mito não se esgota na sua função explicativa, ele não é apenas uma ma- neira pré-científica para procurar a causa ou uma fabulação de tomada de valor presciente e exploratória em direção à dimensão da verdade que não se identifica com a verdade científica; parece que o mito expressa um po- der de imaginação e representação.426

Na metafísica tradicional, a imaginação é tida como a função de trazer à esfera con- ceitual coisas ausentes ou não existentes. Para Platão, a imaginação, pela mimesis, está a um passo da verdade (o ser eterno) por ser uma cópia da aparência.427 Kant, Schelling, Hegel e Bergson estudaram o poder da imaginação na esfera conceitual e a dicotomia que dela ad- vém. Ricoeur, entretanto, indo além de Platão e dos demais filósofos, segue a alternativa de Aristóteles da imaginação enquanto “imitação criativa”, na qual a ficção apenas imita por- que recria a realidade em um nível maior. Deste modo, Ricoeur vê na imaginação a trans- cendência da dicotomia na linguagem poética.428 O mito é, enquanto linguagem poética – ou, mito-poética –, uma outra abordagem que não se limita na lógica empirista do conceito. Por outro lado, o mito e a atividade criativa da imaginação não se limitam, por exemplo, ao estruturalismo.429 Em face de o modelo estrutural do mito e de a imaginação, há diferença notável entre uma filosofia estruturalista e um estudo estrutural de textos determinados.430 Ricoeur não faz filosofia estruturalista – mesmo tendo sido acreditado que se tornara estru- turalista em A Metáfora Viva, ao colocar em prova o método fenomenológico – pois, para ele, uma análise estrutural de textos é mais apropriada, afinal “é uma maneira de fazer justi- ça ao texto e de o levar ao melhor das suas articulações internas, independentemente das

425 RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal, 2013, p. 21.

426 “le mythe s’épuise pas dans sa fonction explicative, qu’il n’est pas seulement une manière pré-scientifique de

chercher les causes et que la fonction fabulatrice elle-même a valeur prémonitoire et exploratoire à l’égard de quelque dimension de la vérité qui ne s’identifie pas avec la vérité scientifique ; il paraît bien que le mythe exprime une puissance d’imagination et de représentation dont on n’a encore rien dit tant qu’on s’est borné à la qualifier de ‘maîtresses d’erreur et de fausseté’” RICOEUR, Paul. “Mythe 3. L’interprétation philosophi- que”, In: Encyclopaedia universalis, 1971, p. 531.

427 KEARNEY, Richard, Poetique du possible: Phenomenologie herméneutique de la figuration. Paris: Beau-

chesne, 1984, p. 14-16.

428 Para um trabalho mais detalhado sobre a imaginação e a religião em Ricoeur, cf. VANHOOZER, Kevin J.

Biblical narrative in the philosophy of Paul Ricoeur: A study in hermeneutics and theology, 1990, p. 9-10.

429 A discussão entre o estruturalismo e o símbolo em Ricoeur não é central nesta tese. Para um maior aprofun-

damento sobre o assunto, cf. RICOEUR, Paul. “Le symbolisme et l’explication structurale”, In: Cahiers in- ternationaux de Symbolisme, 2, 1964, n° 4, pp. 81-96.

intenções do autor e, portanto, da sua subjetividade”431. Há, em partes, aspectos estruturalis- tas em Ricoeur – uma vez que a autonomia da semântica do texto escapa do autor e significa por si mesma. No entanto, há distinção entre a filosofia estruturalista e a filosofia de Ri- coeur. Enquanto ele é familiar da prática estrutural, há conflito, sobretudo, com o estrutura- lismo de Lévi-Strauss – para este, segundo Ricoeur, havia um “transcendentalismo sem su- jeito transcendental”432. Sendo o mito uma forma de discurso autônomo e original, Ricoeur insere a ciência semiótica e o estruturalismo no prolongamento linguístico.433 A diferença, neste aspecto, segundo Ricoeur, está no final de L’Homme nu434: a despeito da admiração, Ricoeur aponta para o caráter ontológico do papel da imaginação no mito, enquanto, basi- camente, “Lévi-Strauss escolheu o domínio de objetos que é afim à sua teoria”435. Eviden- temente isso não esgota a discussão entre ambos os autores, mesmo porque o modelo estru- tural foi analisado por Ricoeur na perspectiva da mito-lógica.436 Entretanto, tal suposição delimita a abordagem pela qual a tese da dobra da religião pretende, seguindo o modelo ricoeuriano de reflexão: a não eliminação dos aspectos linguísticos da análise dos mitos e a pergunta pelo sentido das narrativas míticas que denotam exemplaridades na imaginação e representação.437

A palavra imagem provém do grego φάντασιμα, fantasia, que, conforme Aristóteles, são as coisas sensíveis, porém sem matéria.438 Trata-se da ficção da própria vida. A raiz de imagem está no latim imago – cuja relação encontra-se, também, com mimesis, imaginação, mago e magia. Imagem, em sua origem e seu papel ficcional, segundo Richard Kearney, resgata a importância da abordagem reflexiva no exercício criativo das possibilidades. “Não há ação sem imaginação... e de várias maneiras: no plano de projeto, no plano da motivação e no plano do poder fazer”439. É nesta dinâmica, por exemplo, que Ricoeur interpreta a obra

431 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 126. 432 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 127.

433 Cf. RICOEUR, Paul. “Mythe 3. L’interprétation philosophique”, In: Encyclopaedia universalis, 1971, p. 531. 434 Cf. LÉVI-STRAUSS, Claude. Mythologiques, vol. 4: “L’Homme nu”, Plon: Paris, 1971.

435 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 129.

436 “Pour Claude Lévi-Strauss, le représentant le plus important de cette école en France, la mythologie doit être

considérée comme une ‘mytho-logique’”. Cf. RICOEUR, Paul. “Mythe 3. L’interprétation philosophique”, In: Encyclopaedia universalis, 1971, p. 531.

437 RICOEUR, Paul. “Le symbolisme et l’explication structurale”, In: Cahiers internationaux de Symbolisme, 2,

1964, n° 4, p. 96.

438 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia, p. 620.

439 “Pas d’action sans imagination... Et cela de plusieurs manières : au plan du projet, au plan de la motivation et

au plan du pouvoir même de faire.” RICOEUR, Paul. “L’imagination dans le discours et dans l’action”, In: Du texte à l’action. Éditions du Seuil: Paris, 1986, p. 224.

A Estrela da Redenção, de Franz Rosenzweig440, ao trabalhar a questão da imagem na cate- goria de figura. “Uma das chaves nos é dada”, escreve Ricoeur, “pelo maravilhoso encontro, em francês, entre as duas palavras figure [figura] e visage [rosto], mas que a especulação judaica já tinha aproximado a partir da expressão bíblica a face de Deus”.441 O trabalho da reflexão na imagem – ou, como a antropologia religiosa de Rosenzweig, a figura – possibili- tam, pela imaginação, a união de sentidos divergentes (figura e rosto) em outra figuração. Assim sendo, a face de Deus, na união de dois aspectos – o que Merleau-Ponty chamaria de membrure442 – possibilitam a singularidade, mesmo quando a linguagem é múltipla e com- plexa. O exercício da imaginação, neste caso, abre camadas de linguagem que possibilitam outras dimensões de um dizer sobre Deus.

A questão da imaginação e linguagem, para Ricoeur, com inspirações heideggeria- na443, trabalham juntas, de modo a avançar a passagem do possível ao ato.444 Além da espi- ritualidade judaica (ilustrada com Rosenzweig anteriormente), essa dinâmica desdobra o papel do mito na exemplaridade. A exemplaridade se dá pela repetição ritualística de um paradigma. Nas palavras de Eliade: “O homem é obrigado a regressar aos actos do Antepa- sado, enfrentá-los ou repeti-los, não os esquecer, em suma, seja qual for a vida escolhida para operar esse regressus ad origenem.”445 O objetivo da exemplaridade é o retorno e a regeneração total da vida e do ser. Isso pode ser ilustrado pelo ioga: as técnicas do yogui buscam a reintegração e unificação de diferentes modalidades do ser com o todo. “A reinte- gração total, isto é o retorno à unidade, constitui para o espírito indiano o objetivo supremo de toda existência responsável.”446 Tal retorno às origens torna a dinâmica ritualística cícli- cas. O movimento direto e indireto do modelo de criação, ao ser repetido, denota certa cir- cularidade – apesar desta circularidade não ser, para Ricoeur, o centro fundamental a respei- to do tempo mítico.447 O fim não é a meta, mas, para o homo religiosus, a origem é o objeti-

440 ROSENZWEIG, Franz. The Start of Redemption. Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 2005. 441 Cf. RICOEUR, Paul. Leituras 3 – Nas fronteiras da filosofia, 1996, p. 68.

442 i.e., os membros que compõem um corpo.

443 A influência de Heidegger em Ricoeur é sutil, mas congruente com as etapas da relação entre a imaginação e

o possível na filosofia: Moglichkeit (a possibilidade); Seinkonnen (potencialidade para ser), e Ermoglichen (tornar possível). Cf. KEARNEY, Richard. Poetics of Modernity: Towards a Hermeneutic Imagination. New Jersey: Humanities Press Internation, Inc., 1995, p. 36.

444 Cf. KEARNEY, Richard. “L’homme capable – Dieu capable”. In: Rue Descartes, Hors série, Revue trimes-

trelle. L’homme capablre – Autour de Paul Ricoeur. Presses Universitaires de France: Paris, 2006, p. 43.

445 ELIADE, Mircea. Mitos, Sonhos e Mistérios. Lisboa: Edições 70. 1957, 199p., p. 47.

446 ELIADE, Mircea. Yoga: Imortalidade e Liberdade. São Paulo: Palas Athena. 1996, 398p., p. 112.

vo final de toda cosmogonia. O tempo mítico de Eliade está no retorno. “O essencial é que há sempre uma concepção do fim e do princípio de um novo período do tempo, baseada na observação dos ritmos cósmicos”448, escreve Eliade sobre a renovação periódica da vida e o eterno retorno às origens, que é basicamente a repetição de atos cosmogônicos.

Apenas mais tarde “os hebreus foram os primeiros a descobrir o significado da histó- ria como epifania de Deus”449 e, com o profetismo, pela primeira vez uma religião passaria a valorizar a história enquanto evento na linearidade temporal. O judaísmo e o cristianismo perdem, portanto, a característica do eterno retorno.450 Segundo Eliade, a história é o terror das sociedades primitivas451: ritualizar-se e inserir-se no tempo é negar a história e suas consequências.452 As religiões perdem sua dimensão histórica e preferem o estatuto ontoló- gico, pois a história pode ser abolida e, por conseguinte, renovada, várias vezes, antes do eschaton final. O mito, portanto, é a experiência pessoal que vai legitimar a renovação e o retorno às origens. Desta forma, há algumas aporias nas quais Ricoeur oferece algumas ino- vações além de Eliade. Para Ricoeur, não se deveria expressar ou descrever o modo mais arcaico da temporalidade mítica em termos filosóficos que já foram esboçados. No caso, Ricoeur se refere ao modelo platônico da exemplaridade transferido à esfera do sagrado e do profano, a despeito dos termos platônicos terem sua eficiência e mérito na apreensão do sentido mítico, uma vez que não há o aspecto da periodicidade em Platão.453 A exemplari- dade do mito, sustentada por Eliade e desenvolvida por Ricoeur, inclui o paradigma da atemporalidade [in illo tempore] do mito.

A dimensão cíclica se dá pela periodicidade da repetição do modelo no ritual. Num gesto teogônico, uma variedade de relações e possibilidades é inaugurada na dinâmica ritual de periodicidade e exemplaridade. Ricoeur faz lembrar a importância de Georges Dumézil e seu trabalho sobre o tempo e o mito.454 O ritual da repetição de um modelo pode ter três formas: continuo, ocasional e periódico. O ritual contínuo (comida, sexo) é diferenciado do

GAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions: Retrospect and Prospect, p. 19.

448 ELIADE, Mircea.O Mito do Eterno Retorno, 1969, p. 67. 449 ELIADE, Mircea.O Mito do Eterno Retorno, 1969, p. 119.

450 Paul Tillich, no livro Era Protestante, diz que a história antiga (grega) é cíclica e circular, e nas tradições

monoteístas, em especial a cristã, a história é linear e teleológica.

451 Cf. ELIADE, Mircea.O Mito do Eterno Retorno, 1969, p. 162. 452 Cf ELIADE, Mircea.O Mito do Eterno Retorno, 1969, p. 109.

453 RICOEUR, Paul. “The History of Religions and the Phenomenology of Time Consciousness”. In: KITA-

GAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions: Retrospect and Prospect, p. 20.

454 Cf. DUMÉZIL, Georges. “Temps et mythes”, In: Recherches philosophiques 5 (Paris, 1935/1936), pp. 235-

ritual ocasional (nascimento, matrimônio, sepultamento), que, por sua vez, encontram a ri- tuais derivados de ambos os dois mencionados e politicamente escolhidos para comporem o ritual periódico. É no estudo da instituição das três formas dos rituais que seria possível aprofundar a variedade das relações entre o tempo sagrado e o tempo profano.455 No entan- to, esta solução – ou, se preferir, esta taxionomia – é, para Ricoeur, insuficiente, uma vez que a história comparada das religiões pode descobrir outros modos de temporalidade e ri- tualidade que não cabem neste modelo. Ricoeur propõe um outro horizonte para a tempora- lidade. Eliade se esforçou, em seus trabalhos, por abolir o tempo. A crítica da abolição do tempo não é apenas de Ricoeur, mas também é a crítica de tantos outros teóricos (contra os quais André Guimarães, em sua tese doutoral O Sagrado e a História456, tentou refutar). Se Eliade quis anular toda e qualquer concepção de tempo, seja para escapar das aporias da temporalidade ou por um desejo, antes de qualquer noção de tempo, para desconstruir as noções já elaboradas, propondo um novo tempo mítico, a originalidade em seu pensamento reside na regeneração do tempo pela repetição dos atos cosmogônicos arquetípicos.457 A rigor, há, nesta vertente da fenomenologia religiosa, a abolição do tempo pela imitação do arquétipo e a repetição dos atos paradigmáticos.458 A imaginação da renovação é uma das características do tempo para os arcaicos que implicaria na anulação do passado – como seria, para a os duas atuais, a função da celebração do ano novo que enterra o ano anterior e inaugura um ano prestigioso.

A abolição do tempo se trata, segundo Ricoeur, de uma solução trágica para o para- doxo do tempo sagrado e do tempo profano. O próprio Eliade nota que esta solução não é exclusiva das formas religiosas arcaicas. Há, sobretudo no pensamento Oriental, formas sofisticadas de meditação, principalmente no budismo, que buscam a anulação do tempo sem se inserirem na dinâmica da regeneração do tempo pela repetição de atos cosmogôni- cos. A abolição do tempo na dialética entre o sagrado e o profano constituiria, para Ricoeur, apenas uma solução dentre outras possíveis. Um dos pontos essenciais para a reflexão do

455 Cf. RICOEUR, Paul. “The History of Religions and the Phenomenology of Time Consciousness”. In: KITA-

GAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions: Retrospect and Prospect, p. 20.

456 In: GUIMARÃES, André Eduardo. O sagrado e a história: fenômeno religioso e valorização da história à luz

do anti-historicismo de Mircea Eliade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.

457 Cf. RICOEUR, Paul. “The History of Religions and the Phenomenology of Time Consciousness”. In: KITA-

GAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions: Retrospect and Prospect, p. 20.

tempo mítico, segundo Ricoeur, está na insistência da plurivocidade das concepções religio- sas.459 É diante deste dilema que Ricoeur aponta dobras hermenêuticas.

No documento Download/Open (páginas 98-105)