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O difícil caminho do religioso

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IV.2 Hermenêutica de si e dobra existencial

IV.2.3 O difícil caminho do religioso

O horizonte da dobra da religião pressupõe um caminho do religioso. Encontra abri- go na lição de Ricoeur, ao concluir sua obra monumental Tempo e Narrativa: “Uma teoria, seja ela qual for, alcança sua expressão mais elevada quando a exploração do campo em que sua validade se verifica termina no reconhecimento dos limites que circunscrevem seu do- mínio de validade”876. Elevar a narrativa bíblica à fenomenologia da consciência do tempo faz notar, ao leitor motivado pela dobra existencial, os limites de cada narrativa na refigura- ção do tempo pela narrativa. A revelação de Deus no Sinai não permite de modo nenhum reduzir a eternidade à imutabilidade de um presente estável, mas anunciar a fidelidade de Deus na história de seu povo.877 A ampliação gradual dos limites da narrativa acompanha os gêneros literários bíblicos. Em Gênese 1-11, o patrimônio cultural da humanidade, prepara- se um tempo novo (evento do êxodo); o caráter transitório da vida é explorado nos Salmos e no livro de Eclesiastes. Segundo Ricoeur, “essa diversidade de tonalidade combina com um pensamento essencialmente não especulativo, não filosófico, para o qual a eternidade trans- cende a história do meio da história”878. A refiguração do tempo pela narrativa extrapola limites entre o ser e o além dos ser. “Ora, é sempre num mundo possível diferente que o tempo se deixa ultrapassar pela eternidade”879. Conforme já observado no terceiro capítulo,

875 Cf. MONGIN, Olivier. Paul Ricoeur, 1998, p. 38-39. ABEL, Olivier. “Ricoeur sceptique?”, In: Hommage à

Paul Ricoeur. Journée de la philosophie à l’UNESCO, 2004, p. 10-12.

876 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, Vol. 3, 2010, p. 441.

877 Cf. RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, Vol. 3, 2010, pp. 448-449. 878 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, Vol. 3, 2010, p. 450.

sobre a questão da hermenêutica bíblica, a exegese bíblica chamou a atenção inicial de Ri- coeur acerca dos limites da temporalidade.880 A Bíblia, ao invés de esgotar a aporia do tem- po, alia-se à tarefa do mistério do tempo e, em tal exercício, “suscita, antes, a exigência de pensar mais e de dizer de outra forma”881. Trata-se, portanto, de uma fonte, não exclusiva, mas de inspiração, para a hermenêutica do si. O núcleo duro da consistência da dobra da religião encontra-se no espiral de uma vida que se reconhece na medida em que busca além das aporias e responde com narrativas significativas. Este empreendimento permite ao indi- víduo os passos para o reconhecimento e a capacidade.

A dobra do teônimo implica diretamente sobre a terminologia filosófica do “homem capaz”, o “ser humano capaz”. O difícil caminho do religioso (subtítulo da palestra A Cren- ça Religiosa882) insere a esfera da crença na tarefa da hermenêutica do si pelo problema da linguagem. “É pelo o meu desejo de ser, pelo o meu poder de existir, que o crescimento religioso pode me alcançar”883, atestou Ricoeur. A ontologia da dobra se dobra para o possí- vel linguístico. Trata-se de uma nova figura assumida pela atestação para um horizonte de vida cujo caminhar não se restringe apenas ao pensamento e implica numa ação.884 A filoso- fia de Ricoeur não se restringe nos campos do saber, mas se abre para as fissuras da condi- ção humana.885 Partindo da distinção entre agir e caminhar, praxis e pathos, o homem capaz é aquele que age e sofre ao mesmo tempo. Nas fissuras da existência, Ricoeur elenca quatro momentos do ser humano capaz: (1) a capacidade da palavra de um locutor que pode dizer algo sobre alguma coisa a qualquer pessoa, i.e., o discurso; (2) a capacidade de ação do agente encarnado capaz de produzir as mudanças no mundo, de tornar possíveis os eventos ; (3) a capacidade, de narrar, i.e., o sujeito que a partir de uma narrativa histórica busca sua identidade narrativa; (4) e, por fim, a capacidade de imputação de um sujeito moral respon-

880 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, Vol. 3, 2010, p. 460. 881 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, Vol. 3, 2010, p. 463.

882 Cf. RICOEUR, Paul. La croyance religieuse. [Filme-vídeo]. Produção de Mission 2000 en France. França,

Universités Numériques Thématiques, 29 de Novembro 2000. 1 vídeo digital online, 80 min. Colorido. Som.

883 “C’est en mon désir d’être, dans mon pouvoir d’exister que la flèche du religieux peut m’atteindre” Cf. RI-

COEUR, Paul. La croyance religieuse. [Filme-vídeo], 2000.

884 Importante para Ricoeur é a noção de ação. Em outras palavras, a praxis, enquanto ação humana, em sua

complexidade, apontam para a implicação ética da filosofia motivada por uma fenomenologia do agir. Sobre a hermenêutica da ação e sua relação com a praxis com implicações éticas no pensamento de Ricoeur, Cf. os capítulos seis a oito de O Si-mesmo como um outro.

885 DOSSE, François. “Une phenomenologie de l’agir”, In: Paul Ricoeur: Un philosopphe dans sons siècle, 2012,

sável pelos atos dos quais se reconhece ser o verdadeiro autor.886 É na incapacidade de se dizer algo, de se contar algo ou de ser algo que a possibilidade surge. Além disso, é na ne- gação da impossibilidade de algo (a tarefa negativa) que, segundo Ricoeur, a mensagem religiosa se destina ao ser humano capaz que se encontra na tarefa do ser entre a capacidade e a incapacidade. Neste momento, podemos aprofundar o difícil caminho do religioso no caminho da dobra da religião.

Segundo Ricoeur, “nós podemos dizer que o religioso está ligado fundamentalmente ao fundo da bondade original, mantido em cativeiro e escondido”. Esta dimensão da religião remete à palavra enquanto libertação da bondade humana.887 O tema da bondade humana, inserido na raiz da finitude e das aporias, é fruto das meditações ricoeurianas sobre A Reli- gião nos Limites da Simples Razão, de Kant. O misterioso fundo da bondade sustenta-se na tripla articulação do fenômeno religioso utilizado pelo próprio Kant: o plano simbólico, o plano das crenças e o plano da existência comunitária. No plano simbólico, e.g., na cultura ocidental – que é judaica ou cristã – o símbolo pode ser pensado em termos de “simbolismo cristão”. Este símbolo, dentre outros, exerce a capacidade de intervenção no plano da ima- ginação. Trata-se de um relacionamento original com o mundo como evento fundador de sentido que, na dobra da religião, implicam em ação bondosa e justa. No plano da crença, a saber, é o ato da recepção das boas novas cristãs anunciadas pelas narrativas religiosas apontam para o mesmo fim da praxis do bem. “Crer” é, em suma, “”acreditar no discurso dos outros que testemunharam a favor do poder de regeneração do símbolo de Cristo”888. Crê-se, no plano individual e comunitário, pelo bem comum e pelas instituições justas. Faz- se presente a ética e a justiça na mediação do simbolismo fundamental e a crença intelectual que serve para o pensamento das qualidades de uma crença em algo que inspira e motiva para um viver correto e bondoso. Neste sentido, é mais preciso, para Ricoeur, falar de “crer

886 “Capacité de parole d’un locuteur qui peut dire quelque chose sur quelque chose à quelqu’un: discours. Capa-

cité d’action d’un agent incarné capable de produire des changements dans le monde, de faire arriver des évènements. Capacité de raconter, d’un sujet historique en quête d’identité narrative. Enfin capacité d’imputation d’un sujet moral responsable des actes dont il se reconnaît être l’auteur véritable.” Cf. RI- COEUR, Paul. La croyance religieuse. [Filme-vídeo], 2000.

887 “On peut dire toutefois dès maintenant que le religieux aura fondamentalement partie liée avec ce fond de

bonté originaire tenu captif et caché, en un mot avec la libération de la bonté.” Cf. RICOEUR, Paul. La cro- yance religieuse. [Filme-vídeo], 2000.

888 “Croire en la parole de ces autres qui témoignent en faveur de la puissance de régénération du symbole chris-

em” do que “crer que”.889 A crença em algo se inicia na recepção do teônimo e a esperança de uma possibilidade boa para a existência. A dificuldade do caminho religioso encontra-se no paradoxo da impossibilidade de se fazer o bem quando se está chamado para tal tarefa . Não por acaso Ricoeur declarou: “o religioso tem por função a abertura do fundo da bonda- de antes mantido em cativeiro”.890

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