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Eu sou o que sou: entre Aristóteles e o Deus do Sinai

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III.3 A fenomenologia do possível

III.3.4 Eu sou o que sou: entre Aristóteles e o Deus do Sinai

A auto-apresentação de Deus no Sinai é um dos eventos com maior foco de reflexão de Ricoeur em seu trabalho sobre a hermenêutica bíblica. Para Ricoeur, a nomeação do no- me divino configura mundos – os quais, no âmbito da religião, seriam as tradições. As tra- dições são espaços de orientações para a vida, onde organiza-se a fé da decisão e orientação moral pela memória cultural e os usos da linguagem, pelo valor da semântica das palavras, pela crença no nome divino e suas práticas ritualísticas.680 É deste modo que uma das faces mais importantes da religião encontra-se na esperança.681 A teologia do nome divino denota esperanças que se confrontam com o mundo da vida, de modo que a nomeação do divino inaugura um novo horizonte. A esperança não é apenas expectativa. A vida mediada pela narrativa bíblica é uma vida que traz em si a esfera da esperança na reflexão diária.682 A manifestação originária de Deus no texto bíblico – considerada por muitos biblistas como a porta de entrada à narrativa bíblica – encontra-se na revelação de Deus a Moisés no Monte Sinai.683 É diante nessa narrativa que explora-se a dinâmica do nome divino que aporta es- perança (e outras qualidades pertinentes à vida religiosa abertas pela dobra da religião no trabalho da hermenêutica do si).

O ponto de partida desta ontologia é a articulação crítica entre a ontologia grega de Aristóteles e a teologia bíblica do evento da revelação de Deus no Monte Sinai. Em Êxodo 3,14 encontra-se o famoso registro da nomeação de Deus684, importante tanto para a religio- sidade judaico-cristã como para a filosofia de Paul Ricoeur: הֶיְה ֶא ר ֶש ֲא הֶיְה ֶא685, ehyeh asher ehyeh, comumente traduzido por “eu sou o que sou”. A tradição associou o ser hebraico e o ser grego. Entretanto, uma pequena nota exegética deve ser feita. “O Ser para os gregos nunca coincide com um Deus”686. Enfatiza Ricoeur: “Foram as ‘teologias do Antigo Testa- mento’, como diz Gilson, que introduziram uma problemática da existência distinta daquela

680 RICOEUR, Paul. L’herméneutique biblique. Le Cerf: Paris, 2001, p. 103-104. 681 Tal tema será contemplado ao final deste capítulo.

682 Teologias como a de Jürgen Moltmann deram a devida ênfase neste aspecto da esperança na vivência religio-

sa.

683 Para o aprofundamento acerca deste acesso privilegiado, conferir os textos de Von Rad e Milton Schwantes. 684 Ricoeur menciona Etienne Gilson e o seu trabalho sobre a “metafísica do Êxodo” (In: The Spirit of Medieval

Philosophy, New York: Charles Scribner’s Sons, 1936), no qual Gilson declara: “O Êxodo estabelece o princípio a partir do qual a filosofia cristã será erigida” GILSON, Etienne apud RICOEUR, Paul. Pensando Biblicamente, 2001, p. 375.

685 Cf. KITTEL, Rudolf, Biblia Hebraica, p. 82.

da ousía”687. No caso da tradição grega na hermenêutica bíblica, o tradutor da Septuaginta insere nela o verbo grego ειμι688, introduzindo o conceito grego do “ser entidade” (“Eu sou o ente”689). Segundo Werner Schmidt, um dos principais teóricos sobre o mundo do Antigo Testamento, o ser do Antigo Testamento “não significa um ser em si absoluto”690, mas, con- forme sugeriu o biblista Milton Schwantes, seu discípulo, um “estar aí/presente/atuante”691. De certo modo, são sugestões de tradução, na tentativa da aproximação de um possível sen- tido mais fiel, da enigmática fórmula do nome de Deus que não poupou intérpretes ao longo dos séculos.692 A tradução maios apropriada, segundo Ricoeur, é a de Franz Rosenzweig, cuja interpretação coloca o verbo no gerúndio: não mais o Ser eterno, nem mesmo o existen- te [der Seiende], mas o “existindo” [der Da-Seiende].693 Ricoeur se interessou pelo episódio do Êxodo 3,14 e o verbo ser, pois, para ele, esta narrativa comporta tanto a esfera da voca- ção (Moisés) como a da especulação (a questão do verbo ser). As traduções de Martin Buber e de Franz Rosenzweig demonstram uma espécie de irrupção especulativa no meio narrativo devido a utilização particular que se fez do verbo ser. Conforme conclui Ricoeur sobre essas traduções, “assim, é preciso dar lugar, na Bíblia, a um registro especulativo”694. A especula- ção, que também faz parte da Bíblia, reforça a existência do pensamento bíblico. Há uma maneira de pensar e de ser não filosófica. O principal contraste da maneira de pensar e ser não filosófica é dialogado com Aristóteles.

Como a ontologia de Aristóteles se aproxima da revelação do Sinai? A ontologia é a arte da distinção e da centralidade, em um único ponto, do discurso filosófico. Nesta centra- lidade, Aristóteles propõe, no livro IV, da Metafísica, o estudo da ontologia em quatro eta- pas: as categorias; o ser em ato e o ser em potência; o ser verdadeiro e o ser falso; o ser ne-

687 A ontologia de Aristóteles baseia-se na transição do ser enquanto ser para a substância (ousía), constratan do

com a ontologia do Sinai, cujo movimento não se atém na ousía, mas aponta para uma narrativa da criação da não-filosofia do Antigo Testamento. Cf. RICOEUR, Paul. Ser, essência e substância em Platão e Aristó- teles, 2014, p. 264.

688 Septuaginta: Id est Vetus Testamentum graece iuxta LXX interpretes. Edição de Alfred Rahlfs. Stuttgart:

Privileg. Weertt. Bibelanstalt, 1950. v. 2.

689 SCHIMIDT, Werner H., A fé do Antigo Testamento, 2002, p. 105. 690 SCHIMIDT, Werner H., A fé do Antigo Testamento, 2002, p. 104.

691 SCHWANTES, Milton. História de Israel: local e origem. São José dos Campos: Editora Com Deus, 2004.

144p., p. 154.

692 Para um estudo mais detalhado sobre a variedade de interpretações de Êxodo 3,14, cf. o artigo “Êxodo 3.14:

da interpretação à tradução” In: RICOEUR, Paul. Pensando biblicamente, 2001.

693 RICOEUR, Paul. Pensando biblicamente, 2001, p. 383. 694 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 236.

cessário o ser por acidente.695 Destas, a relação entre ato e potência encontram-se em posi- ção privilegiada no pensamento de Ricoeur. Ao trabalhar sobre o limite das categorias do ser em Aristóteles, Ricoeur constata que indiferença na existência de um ser em Aristóteles, de modo que a relação entre Deus e os seres se situa na causalidade ao invés da eficiência produtora.696 A este respeito, Ricoeur sugere: “É o encontro com o Deus de Israel – que mais ‘cria’ as coisas do que deixa imitar seu sereno pensamento do pensamento – que pro- vocará a renovação do aristotelismo”697. Não apenas a renovação do aristotelismo, mas do próprio pensamento na religião, cuja motivação encontra-se no deslocamento da ontologia quebrada para as possibilidades do ser. Ricoeur, portanto, trabalha com a questão da potên- cia aristotélica, mas não se restringe à ela. Há a ontologia do possível em Aristóteles e há a ontologia do possível no Sinai. Ricoeur extrai do Sinai a metafísica tradicional. “Eu sou o que sou”, muitas vezes interpretado como o absoluto, é recebido por Ricoeur no sentido de Martin Buber e Franz Rosenzweig: “eu sou o que serei”. Essa recepção privilegia os possí- veis históricos para a nomeação de Deus. O teônimo, na reflexão aporética, vivencia possí- veis históricos. No Antigo Testamento, o possível histórico de Deus vai desde um nome que promove reconhecimento (Sinai) até um Deus militar (Israel). Ao não identificar Deus como uma metafísica divina, Ricoeur abre os possíveis divinos, de modo que no possível histórico de Jesus, Deus será um Deus gracioso, um Deus amoroso, um Deus que aponta um horizon- te para a humanidade. Em suma, ao aproximar-se de Aristóteles, Ricoeur reinterpreta o filó- sofo grego, como também o Sinai, anunciando um possível divino que caminha ao lado da filosofia do justo, do bem e da ética.

Nos limites da tradução e dos encontros interpretativos ao longo dos séculos, “se- gundo Ricoeur, trata-se de uma transformação escatológica da ontologia grega”698, escreve Kearney sobre o movimento dinâmico da ontologia do nome divino. Segue Ricoeur: “É re- almente o verbo ser, mas sem significado encontrado pelos gregos”699, conclui ele.

695 “Selon les catégories, selon l’être en acte et l’être en puissance, selon l’être vrai et l’être faux, selon l’être

nécessaire et l’être par accident”. Cf. RICOEUR, Paul. RICOEUR, Paul. “Ontologie”, In: Encyclopaedia universalis. XII, Paris, Encyclopaedia Universalis France, 1972, p. 97.

696 RICOEUR, Paul. Ser, essência e substância em Platão e Aristóteles, 2014, p. 263. 697 RICOEUR, Paul. Ser, essência e substância em Platão e Aristóteles, 2014, p. 263.

698 “Ricoeur voit bien qu’il s’agit d’une transformation eschatologique de l’ontologie grecque” KEARNEY,

Richard. “L’homme capable – Dieu capable”. In: Rue Descartes, Hors série, Revue trimestrelle. L’homme capablre – Autour de Paul Ricoeur, p. 45

699 “C’est vraiment le verbe être, mais dans aucune des significations rencontrées par les Grecs”. RICOEUR,

Há uma espécie de alargamento do significado do verbo ser, que é o signi- ficado de ser-com, de ser-fiel, é o ser do acompanhamento de um povo, mas é realmente um outra dimensão de ser. Quando Aristóteles disse que havia uma variedade de significados do ser, ele não previa o ser do Êxodo 3.14. Então, eu sou a favor do alargamento da ontologia em vez de uma re- versão da passagem da ontologia do domínio grego ao domínio hebraico700.

Importante destacar o excesso de significação implícito no têonimo. Esse excesso, segundo Ricoeur, “cria uma situação hermenêutica excepcional: a abertura para uma plura- lidade de interpretações do verbo usado”701, no caso, o verbo de Deus. A ontologia do nome divino no Sinai, a despeito dos comentários e tentativas de tradução do nome ao longo da história do pensamento, adianta a ontologia do possível, a qual, segundo Ricoeur, o “eu sou o que sou” contém a dimensão da promessa, da esperança e, consequentemente, da possibi- lidade, do ser possível. A revelação do nome divino, em sua dimensão ontológica, tornar-se, deste modo, em um advento do presente e do futuro.702 É pela possibilidade de ser, que aponta para uma promessa e uma esperança, que há dinamismo no nome divino, notou Ri- coeur no capítulo “Da interpretação à tradução”, em Pensar a Bíblia703. Pelo dinamismo do

nome divino, no exercício criativo e humilde da interpretação, vieram inúmeras interpreta- ções sobre o verbo de Javé, a exemplo, “eu sou a vivência”, relacionado ao verbo divino ao verbo arcaico hawah, jahwesh, i.e., o vivente, aquele que vive, conforme notou Abraham Heschel; ou, ainda, “eu sou o que serei”, como propõe Martin Buber em sua tradução do Antigo Testamento para o alemão. São traduções dinâmicas e que envolvem mundos, mun- dos que receberam a narrativa do nome divino e traduziram-na para suas respectivas cultu- ras. Outra tradução convincente, segundo Ricoeur, é a de Harmut Gese, em O Nome de Deus no Antigo Testamento: “Eu me mostrarei no que me mostrarei, como aquele que se

trimestrelle. L’homme capablre – Autour de Paul Ricoeur, p. 45

700 “Il y a une sorte d’élargissement du sens du verbe être, c’est le sens de l’être-avec, de l’être-fidèle, c’est l’être

de l’accompagnement d’un peule, mais c’est vraiment une autre dimension de l’être. Quand Aristote a di qu’il y a une variété de significations de l’être il n’avait pas prévu l’être de l’Exode 3.14. Donc, moi je suis pour cette sorte d’élargissement de l’ontologie plutôt que pour un renversement de l’ontologie en passant du domaine grec au domaine hébraïque”. RICOEUR, Paul. Colloquio, p. 254. apud KEARNEY, Richard. “L’homme capable – Dieu capable”. In: Rue Descartes, Hors série, Revue trimestrelle. L’homme capablre – Autour de Paul Ricoeur, p. 45

701 RICOEUR, Paul. Pensando Biblicamente, 2001, p. 359.

702 Cf. KEARNEY, Richard. “L’homme capable – Dieu capable”. In: Rue Descartes, Hors série, Revue trimes-

trelle. L’homme capablre – Autour de Paul Ricoeur, 2006, p. 45

703 Título traduzido ao português no Brasil como Pensando Biblicamente. Cf. RICOEUR, Paul. “De

mostrará”704. É na variedade da extensão polissêmica que o nome divino é recebido em uma determinada sociedade e cultura, onde é compreendido, traduzido e vivenciado pelas pesso- as que se permitem mediar através dos conteúdos deste nome. Tal dinâmica de transmissão e recepção, a despeito das limitações ou interpretações de cada pensador, denota um modo de ser, que é o modo de ser interpolado pela narrativa do nome divino.

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