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O problema Deus

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I.2 A ontologia da dobra: a nomeação de Deus

I.2.2 O problema Deus

Paul Ricoeur não se preocupou com os discursos da existência de Deus – como se preocuparam outros filósofos da religião. Ricoeur se interessou, originariamente, pelas no-

212 Cf. RICOEUR, Paul. Pensando Biblicamente. Bauru: EDUSC, 2001, p. 50.

213 RICOEUR, Paul. “Ricoeur Comments after Jeanrond’s ‘Hermeneutics and Revelation’, In: JUNKER-

KENNY, Maureen, KENNY, Peter. (Org.) Memory, Narrativity, Self and the Challenge to Think God, p. 62.

214 RICOEUR, Paul. O Único e o Singular. São Paulo: UNESP, 2002, p. 18. 215 VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, p. 127.

216 VALLÉE, Marc-Antoine. “Le premier écrit philosophique de Paul Ricoeur: Méthode réflexive appliquée au

problème de Dieu chez Lachelier et Lagneau”, In: Études Ricoeuriennes / Ricoeur Studies, Vol 3, No 1 (2012), p. 153.

meações bíblicas de Deus. Os teônimos apontam para narrativas sobre o ser que está em relação com a nomeação do divino. Em suas observações, é possível nomear Deus pela fé porque os textos religiosos que a tradição comporta e transmite já o nomearam. A nomeação de Deus, na perspectiva da dobra da religião, possui uma função elementar no pensamento religioso, sobretudo cristão (que diz respeito ao Sitz im Leben de Ricoeur): a narrativa bí- blica funda a nomeação de Deus e torna possível a experiência religiosa mediada pelos textos bíblicos que comportam o nome divino. Inicialmente, há nas escrituras do antigo Isra- el um vasto e profundo trabalho teológico desenvolvido e disseminado nas narrativas bíbli- cas. Devido a Bíblia não ter se servido da linguagem especulativa, como os gregos, o pen- samento bíblico se exprimiu em gêneros diversos, como o gênero narrativo, legislativo, pro- fético, hímnico e sapiencial.217 A Bíblia, em sua diversidade de gêneros literários, é uma biblioteca heteróclita. Todos os gêneros falam sobre Deus – e é por este “dizer Deus” varia- do, característico em cada gênero, que há a possibilidade de uma crítica interna e externa presente na Bíblia. Além disso, para Ricoeur, o pensamento grego – a cultura helenística, da qual a carreira filosófica é herdeira – não se opõe, necessariamente, à leitura compreensiva da Bíblia que Ricoeur almeja. No caso, a oposição com a teologia confessional evidencia os desvios interpretativos acumulados pelas grandes tradições históricas do judaísmo e do cris- tianismo. Se a leitura crítica da Bíblia utiliza o método histórico-crítico, o método compre- ensivo, diante de sua multiplicidade de interpretações, permitiu centros organizadores nor- mativos. O cristianismo dos primeiros anos reformulou a escola rabínica com uma leitura particular. A constante releitura e reescrita da tradição permitiu o advento das teologias. É a ordenação conceitual e descritiva das narrativas bíblicas que, conforme Karl Barth, consti- tuiu a dogmática. Para Ricoeur, a teologia é a relação de uma “palavra considerada fundado- ra com um juízo circunstanciado sobre o presente e o futuro das comunidades confessio- nais”218. Por isso Ricoeur prefere não discursar sobre as dogmáticas, mas dirigir-se ao texto bíblico com o instrumental que lhe cabe: a hermenêutica fenomenológica.

Há na leitura de Ricoeur uma outra leitura além da descritiva e da confessional: a lei- tura de uma teologia que é caracterizada pela ênfase na narrativa, a qual poderíamos deno- minar por teologia narrativa.219 A teologia narrativa, enquanto reflexão da religiosidade na

217 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 225. 218 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 226.

linguagem, é o resultado da última redação do texto bíblico conforme o conhecemos e o recebemos. A leitura que dá ênfase à narrativa do texto tem na codificação bíblica feita pe- las autoridades eclesiásticas o seu paradigma de leitura. A título de exemplo, podemos men- cionar Northrop Frye e The Great Code220, como também Paul Beauchamp e L’un et L’autre Testament221. Os autores privilegiam em suas hermenêuticas a leitura canônica de encontro às interpretações das autoridades eclesiásticas. Estas hermenêuticas concordam e tentam reproduzir “a mensagem que os últimos redatores das últimas composições da Bíblia quiseram transmitir”222. Ricoeur, sem ignorar o método histórico-crítico, alerta ser funda- mental para qualquer leitura bíblica levar em consideração a estrutura do próprio texto como também as interpretações propostas por rabinos, pela hermenêutica cristã dos padres e dos medievais. Comumente o Novo Testamento é lido pelas autoridades eclesiásticas como a sequência do Antigo Testamento, ao passo que ele pode ser apenas um “outro” Testamento, seguindo a proposta de Paul Beauchamp (com quem Ricoeur compartilha afinidades teoló- gicas)223. Indicamos, portanto, a preocupação de Ricoeur, cuja leitura tende a ser não dog- mática, pois não deseja limitar o texto bíblico à um dogma – movimento que impediria a percepção de outras interpretações, outras reinterpretações, outras reformulações, como uma teologia do nome divino.224

É necessário, segundo a tradição ricoeuriana, que exista, inicialmente, um contato da exegese com outras sensibilidades das pesquisas em humanas. No caso, o próprio cânone deveria se tornar na mediação por excelência. O resgate da leitura canônica é dar ao texto a autonomia que lhe pertence, de modo que tal autonomia é também a abertura para novas reflexões. “É, segundo penso, ao nível desta exegese canônica que começam a cindir-se o teológico e o filosófico”225, conclui Ricoeur.

ology”: Debate and Beyond”. In: HEINEN, Sandra; SOMMER, Roy. Narratology in the Age of Cross- Disciplinary Narrative Research. Berlin, 261-285pp.

220 FRYE, Northrop. The Great Code: The Bible and Literature. Boston: Mariner Books, 2002. 221 BEACUHAMP, Paul. L’un et L’autre Testament. Vol 1 & 2. Paris: Édition Seuil, 1990. 222 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 227.

223 Para mais detalhes sobre a relação de Ricoeur com Beauchamp, conferir: BEAUCHAMP, Paul; RICOEUR,

Paul. Testament Biblique. Bayard: Paris. 2001.

224 Cf. RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 227. 225 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 227.

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