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O tempo e a narrativa

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II.2 Além das aporias: o mundo do mito

II.2.2 O tempo e a narrativa

Ao trabalhar com os conceitos de criação, revelação e redenção – motivado pela lei- tura em Rosenzweig – Ricoeur adota a expressão “camadas de linguagem”.396 Tal expressão denota, com precisão, a intenção da dobra da religião: são “estratos empilhados”, nos quais temas filosóficos e preocupações religiosas constituem camadas superiores, intermediárias e outras mais profundas. A dobra da religião não se refere à um substrato submerso em signi- ficados imperceptíveis, mas trabalha com diferentes níveis de camadas de sentidos. Trata-se de um traço homogêneo com camadas heterogêneas. A primeira camada é a aporia do tem- po. Nesta camada, criação, enquanto origem e fundamento, carrega, na gênese da religião, a heterogeneidade das camadas. Segundo Ricoeur, ao refletir sobre a temporalidade na reli-

394 “the real nature of the question has been overshadowed by hasty conclusions concerning similarities and

differences between the so-called Greek thought and the alleged Hebrew thought”. RICOEUR, Paul. “The History of Religions and the Phenomenology of Time Consciousness”. In: KITAGAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions: Retrospect and Prospect, p. 14.

395 “My first section will be devoted to the contribution of the phenomenology of time-consciousness to a criti-

que of the notions of ‘the cyclical’ and ‘the linear’ applied to time”. RICOEUR, Paul. “The History of Reli- gions and the Phenomenology of Time Consciousness”. In: KITAGAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions: Retrospect and Prospect, p. 14.

396 Cf. RICOEUR, Paul. “A ‘figura’ em L’Étoile de la Rédemption, de Franz Rosenzweig”, In: Leituras 3: Nas

gião de A Estrela da Redenção, “poderíamos ter começado por aqui. Mas retardei o seu acesso, pois é uma via cheia de armadilhas”397. A aporia do tempo deve ser situada no recor- te da dobra. Seu início encontra-se na finitude398 e no cogito quebrado [brisé]399. A finitude, na figura involuntária (ao lado da culpabilidade e do mal), configura o problema da tempo- ralidade. “A morte, o medo da morte, incita todo conhecimento do Todo”400. A consciência finitude está na gênese do processo da identidade pessoal e da identidade narrati va.

A força que move a dobra da religião, na aporia da temporalidade, mediada pelo teô- nimo, encontra-se na fenomenologia da consciência do tempo. A criação das coisas – ou, parafraseando Rosenzweig, no “fundamento perpétuo das coisas”401 – tem na religião uma criação original, primeira, simbólica e metafórica. O processo narrativo, tanto na religião como nas grandes literaturas das comunidades, são motivados pela aporia do tempo. Ri- coeur carrega influências de Agostinho na questão da distensão da alma – a ideia do interva- lo.402 Conforme a primeira parte do primeiro volume de Tempo e Narrativa, sobre as aporias da experiência do tempo, na qual Ricoeur apresenta o confronto da alma humana da intentio e distentio animi, o tempo se torna “palpável” para o ser humano, i.e., o ser humano começa a se relacionar com o tempo de modo mais direto, em face à intriga, de Aristóteles, referen- ciando-se ao tempo através da narrativa.403 Se a originalidade de Agostinho reside na refle- xão da intentio-distentio, a de Ricoeur, aplicada à dobra da religião, pressupõe a identidade do si que acontece pela tarefa da narrativa. “Narramos coisas que consideramos verdadei- ras”404, escreve Ricoeur acerca da aporia do tempo. Em outras palavras, a narrativa mostra o tempo, sobretudo o tempo das coisas importantes. Enquanto o tempo fenomenológico se atém à consciência individual, o tempo cosmológico aborda o início do tempo com as coisas criadas, i.e., a origem de sentido na finitude. O tempo, em nenhuma das duas abordagens, não é visível nem palpável. O sensível se apresenta no movimento das coisas, mesmo que não seja possível a apreensão total do que é o tempo. Entretanto, a percepção subjetiva e

397 RICOEUR, Paul. “A ‘figura’ em L’Étoile de la Rédemption, de Franz Rosenzweig”, In: Leituras 3: Nas fron-

teiras da filosofia, 1996, p. 74.

398 Cf. RICOEUR, Paul. Philosophie de la volonté I: Le volontaire et l’involontaire, Paris: Aubier, 1988 399 Cf. RICOEUR, Paul. Philosophie de la volonté II: Finitude et culpabilité, Pais: Aubier, 1998.

400 “From death, it is from the fear of death that all cognition of the All begins.” ROSENZWEIG, Franz. The Star

of Redemption, 2005, p. 9.

401 “The everlasting primordial world”, ROSENZWEIG, Franz. The Star of Redemption, 2005, p. 9. 402 PELLAUER, David. Compreender Ricoeur, 2009, p. 100.

403 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, vol 1, 2010, pp. 14-15 e p. 21. 404 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, vol 1, 2010, p. 21.

objetiva do tempo é possível pala tarefa do reconhecimento de si na narrativa. Pela narrativa há uma nova compreensão do tempo.405 Para Ricoeur, portanto, “o tempo torna-se tempo humano na medida em que está articulado de modo narrativo, e a narrativa alcança sua significação plenária quando se torna uma condição da existência temporal”406. Com efei- to, a narrativa torna o tempo pensável e, na especificidade da tese, o mito é a narrativa ori- ginal de uma percepção temporal pensada, cíclica ou linearmente, que coloca no cerne da filosofia e da teologia a abertura de um mundo possível. Diferentemente do estilo da feno- menologia do tempo de Husserl ou do tempo ontológico de Heidegger407, a contribuição de Ricoeur enfatizada para este momento está no tempo se tornar pensável pela narrativa. Em outras palavras, a narrativa levanta o véu do tempo. Sendo ela a chave para a identidade de si e a chave para o reconhecimento do si no tempo408, a hermenêutica do si, interpelada na esfera da temporalidade, possibilita à reflexão do tempo estar além de qualquer impensável ou abstrata ao ponto de um fluir sem relação com o si.409 O tempo é percebido existencial- mente devido a vivência do antes e do depois, de modo a formar uma narrativa. Portanto, a narrativa, para Ricoeur, é chave para a temporalidade.

A aporia do tempo permite a compreensão da função da narrativa, sobretudo na des- crição de mundo que os mitos pretendem.410 Tal compreensão, após a apresentação dos as- pectos centrais do tempo e da narrativa, possibilita explicitar, nesta pesquisa, a questão da religião como narrativa. Para tal tarefa, é mister analisar a fenomenologia da consciência do tempo, em Ricoeur.

405 A dialética do vir a ser, do ter sido e do se fazer presente. Cf. RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, vol 1,

2010, p. 61.

406 RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, vol 1, 2010, pp. 14-15 e p. 93. 407 PELLAUER, David. Compreender Ricoeur, 2009, pp. 101-102. 408 Cf. RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa, vol 1, 2010, p. 81.

409 Husserl caminha pela intuição do instante, que esconde uma mediação. Não há inteiramente uma intuição do

passado; há a lembrança do passado. O caminho de Ricoeur procura ir além do caminho de Husserl, como também além do caminho de Heidegger (que segue Husserl apontando para as êxtases do tempo). A concei- tuação de Husserl e Heidegger esconde algumas aporias do tempo, enquanto Ricoeur explicita o que é, para ele, realmente a relação com o tempo.

410 BLUNDELL, Boyd. Paul Ricoeur between Theology and Philosophy: Detour and Return. Bloomington:

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