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Um filósofo sem absoluto

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I.1 Demarcando os domínios da filosofia e da teologia

I.1.2 Um filósofo sem absoluto

Por razões culturais e institucionais, Ricoeur evitou, ao longo de décadas de trabalho filosófico, envolver aspectos do religioso em seu pensamento filosófico. “Eu queria”, decla- rou em sua autobiografia intelectual, “permanecer fiel ao antigo pacto que fizera, no qual as fontes não-filosóficas da minha convicção não seriam misturadas com os argumentos do meu discurso filosófico”124. Presidente honorário do Instituto Internacional de Filosofia, na França, e professor de teologia na Faculté de théologie protestant de Paris (hoje Institut Protestant de Théologie), Ricoeur poupou o movimento cometido por Paul Tillich a respeito de uma certa união entre ontologia (filosofia) e religião (teologia). Ricoeur descobriu, logo cedo, nos círculos de estudantes protestantes que ele frequentava, as obras de Karl Barth e sua defesa à separação entre fé e razão, teologia e filosofia.125 Por conta disso encontramos em suas obras a fidelidade explícita à filosofia. O engajamento de Ricoeur na teologia, en- quanto esforço de não-filosofia, não propõe a religião como um fim ou uma meta da própria filosofia, mas coexiste em termos reflexivos dentro da própria ambiguidade.126

Acerca desta ambiguidade radical, Ricoeur diz: “estou a pensar, por exemplo, nos domínios do religioso e do filosófico, que mantive firmemente afastados por razões que sempre procurei justificar”127, declarou numa entrevista datada entre os anos de 1994 e 1995. Ricoeur foi filósofo e cristão. Ele distinguiu escrupulosamente suas análises filosófi-

Indiana University Press, 2010, p. 65.

124 “I wanted to remain faithful to the old pact I had made that the non philosophical sources of my conviction

would not be mixes together with the arguments of my philosophical discourse.” RICOEUR, Paul. “Intellec- tual Autobiography”, In: The Philosophy of Paul Ricoeur. The Library of Living Philosophers XXII, ed. Lewis Edwin Hahn. Chicago: Open Court, 1995, p. 50.

125 Cf. VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 41.

126 A não-filosofia tem um espaço importante no pensamento de Ricoeur. A maioria das crônicas em Leituras 3 –

Nas Fronteiras da Filosofia são iniciadas com a importância do discurso não-filosófico para a filosofia (mo- vimento pelo qual Ricoeur chama de “retomada”) Cf. RICOEUR, Paul. Leituras 3 – Nas Fronteiras da Filo- sofia. São Paulo: Loyola, 1996, p. 115.

cas e suas convicções religiosas. Ao mesmo tempo que é um filósofo, ele é, por ou tro lado, em suas palavras, “um cristão de expressão filosófica, assim como Rembrandt é um pintor e cristão de expressão pictural simplesmente e Bach é um músico e cristão de expressão mu- sical simplesmente”.128 Ricoeur é, portanto, um filósofo e cristão de expressão filosófica.

Não é rara esta dualidade na história da filosofia. A relação de Ricoeur nessa duali- dade poderia ser comparada a de Emmanuel Levinas: enquanto Levinas circulou entre o judaísmo e Heidegger, Ricoeur transitou entre a razão filosófica e a reflexão religiosa. “Tive a preocupação – ao viver uma espécie de dupla fidelidade – de não confundir as duas esfe- ras, de fazer justiça a uma negociação permanente no seio da polaridade bem instalada”129, esclareceu Ricoeur sobre a relação filosofia e teologia. Na teologia, “Ricoeur é conhecido como um leitor da Bíblia”130. Na filosofia, apesar de Jean-Paul Sartre, em tom debochado, referir-se, ocasionalmente, a Ricoeur como “o pastor da fenomenologia”131, Ricoeur se de- nominava agnóstico. “Sou agnóstico no plano filosófico”132, esclarece sobre sua relação com a tradição religiosa. Uma vez posto o problema da existência de Deus – cujo problema das provas da existência de Deus o levaram a tratar a filosofia como uma antropologia –, Ricoeur reformula a sua abordagem religiosa. Durante trinta anos, sob a influência de Karl Barth, conforme confessou numa entrevista133, radicalizou o dualismo, a ponto de negar qualquer estada relativamente a Deus na filosofia. Há, portanto, uma “dupla fidelidade” [double allégeance]134, i.e., um conflito interior no início de sua licenciatura que contrastou As Duas Fontes da Moral e da Religião, de Bergon, de um lado, e o regresso radical e anti- filosófico ao texto bíblico, de Barth, por outro lado. Identificou esse estágio de sua forma- ção como o conflito entre a filosofia religiosa de tipo bergsoniano, cujo interesse era genuí- no, e o radicalismo barthiano, que o seduzira de igual modo. Tal estágio foi denominado,

128 “Je ne suis pas un philosophe chrétien, comme la rumeur en court, en un sens volontiers péjoratif, voire dis-

criminatoire. Je suis, d’un côté, un philosophe tout court, même un philosophe sans absolu, soucieux de, voué à, versé dans l’anthropologie philosophique. Et, de l’autre, un chrétien d’expression philosophique, comme Rembrandt est un peintre tout court et un chrétien d’expression picturale et Bach un musicien tout court et un chrétien d’expression musicale.” RICOEUR, Paul. Vivant jusqu’à la mort: suivi de fragments, 2007, p. 24.

129 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 17.

130 MANDRY, Christof. “The Relationship Between Philosophy and Theology in the Recent Work of Paul Ri-

coeur”, In: JUNKER-KENNY, Maureen, KENNY, Peter. (Org.) Memory, Narrativity, Self and the Challenge to Think God, p. 63.

131 Cf. REAGAN, Charles. “Conversatiosn With Paul Ricoeur”, In: VERHEYDEN, J. HETTEMA, T. L., VAN-

DECASTEELE, P. Paul Ricoeur – Poetics and Religion. Uitgeverij Peeters: Leuven-Paris-Walpole, MA, 2011, p. 229.

132 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 237. 133 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 236-237.

por Ricoeur, como justaposição conflitual e caracterizou as intervenções relativas à filosofia da religião em seu pensamento.

Em suma, a justaposição conflitual é a preservação da aporia na encarnação da tarefa negativa. Em diversos textos, no âmbito do agnosticismo e da atestação, o outro, enquanto elemento de reflexão em O Si-mesmo como um outro, é uma aporia.135 Ao refletir sobre a dificuldade de uma resposta ao mal, Ricoeur levantou a hipótese: “a sabedoria não seria reconhecer o caráter aporético?”136 Segundo Boyd Blundell, a aporia em Ricoeur é inaugu- rada pela fenomenologia do tempo.137 A diversidade de aporias denotam conflitos e com- plexidade no pensamento de Ricoeur e apontam para uma filosofia antropológica.

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