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Tempo e mito: a aporia da dobra

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II.2 Além das aporias: o mundo do mito

II.2.1 Tempo e mito: a aporia da dobra

Tempo e Narrativa, A Metáfora Viva e Memória, História e Esquecimento são traba- lhos que registram a preocupação com o tempo e configuram a filosofia hermenêutica e fe- nomenológica acerca do aspecto temporal da condição humana. Ao lado destas obras mo- numentais, Ricoeur escreveu inúmeros estudos e textos sobre a religião e o papel da filoso- fia para o pensamento teológico. O símbolo e o mito ilustram a opção metodológica de Ri- coeur acerca da compreensão formar par com a explicação e a crítica. A defesa à compreen- são, diferente de Heidegger e Gadamer, Ricoeur recorre a Mircea Eliade e seu conceito cen- tral da dialética do sagrado para abrir a explicação e crítica do símbolo religioso.383 No caso do símbolo, há uma espécie de paixão envolvida, tanto no mundo religioso, encantado, co- mo para a linguagem em si, que evoca uma relação na qual a credulidade (do símbolo) ga- nhou a confiança.384 Símbolo e mito, para a primeira abordagem da dobra da religião, são praticamente sinônimos, uma vez que ambos se referem, fundamentalmente, à linguagem da religião. O interesse central neste estágio da pesquisa se localiza na relação da linguagem religiosa com a fenomenologia do tempo.385

O ofício da reflexão sobre a religião e, sobretudo, as questões do mito e do tempo em Ricoeur, deve incluir, conforme registra David Rasmussen no prefácio de sua obra Mythic-Symbolic Language and Philosophical Anthropology: A Constructive Interpretation of the Thought of Paul Riceur, dois pontos fundamentais: (1) Ricoeur trabalha com uma fenomenologia hermenêutica e (2) Ricoeur foi profundamente influenciado e motivado por

383 VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 54. 384 Cf. VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 55.

385 Para um aprofundamento específico acerca do tempo e da hermenêutica bíblica, cf. RICOEUR, Paul. “Bibli-

Mircea Eliade, quem estimulou os interesses de Ricoeur para o mito e o símbolo.386 Nas palavras de Ricoeur, “Gabriel Marcel e Mircea Eliade (...) são dois exemplos de homens que tiveram sobre mim uma grande influência nas relações de amizade, mas sem que me tenha alguma vez submetido às obrigações intelectuais de um discípulo. Esses homens tornaram- me livre”387. Além da admiração recíproca, Ricoeur já conhecia o trabalho de Eliade no iní- cio de sua carreira filosófica, citando o autor romeno na obra A Simbólica do Mal, de 1960.388

Deve-se destacar que a hermenêutica da dobra da religião tem sua linguagem no mi- to. A ênfase à tipologia do mito não é ocasional. Igualmente relevante, Ricoeur é cauteloso ao tocar no trabalho com a história das religiões e, ao mesmo tempo, modesto, principal- mente quando apresenta suas impressões, descrições e interpretações sobre este campo de pesquisa. Ele denomina sua reflexão, neste assunto, de meditação de segunda ordem, i.e., “uma reflexão crítica aplicada às questões que se direcionam aos nossos documentos ao invés das respostas que tiramos deles”389. As questões não estão livres dos valores da época atual: elas comportam os conceitos contemporâneos à pesquisa que coloca as questões. Ri- coeur não trabalhou especificamente com a história das religiões, mas a atitude comparativa da disciplina da história das religiões – e de tantas outras ciências humanas –, uma vez que é uma faculdade interpretativa e dialoga textos passados e culturas diferentes, é torna-se num instrumental importante, sobretudo na aporia do tempo. A pesquisa em história das religi- ões, deste modo, realizada na dinâmica das questões/respostas (da qual Ricoeur toma em- prestado de Collingwood) é, propriamente, uma investigação.390 Uma investigação cuja ca- racterística se dá ao valorizar sobretudo a questão e qualquer indagação interpretativa que dela advém.

Qual a pretensão do mito? Qual a contribuição de Ricoeur sobre o mito, principal- mente para a reflexão da dobra da religião? Explicitada a proposta fenomenológica da rela-

386 Cf. RASMUSSEN, David M. Mythic-Symbolic Language and Philosophical Anthropology: A Constructive

Interpretation of the Thought of Paul Riceur. The Hague: Netherlands, 1971.

387 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 47. 388 Cf. RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal, 2013, p. 31.

389 “By a second-order meditation I mean a critical reflection applied to the questions that we address to our

documents, rather than the answers that we get from them”. RICOEUR, Paul. “The History of Religions and the Phenomenology of Time Consciousness”. In: KITAGAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions: Retrospect and Prospect. Macmillan Publishing Company: London, 1985, p. 13.

390 Do inglês (texto original), inquiry. RICOEUR, Paul. “The History of Religions and the Phenomenology of

Time Consciousness”. In: KITAGAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions: Retrospect and Prospect, p. 13.

ção entre questão e interpretação, Ricoeur propõe a aproximação ao tema, em modos gerais, pelo tempo mítico.391 Ou seja, Ricoeur traz reflexões, na dobra do teônimo, como também à disciplina da história das religiões, como um todo, ao realizar um empreendimento filosófi- co acerca do tempo e daquilo que ele conclui ser um tempo mítico.

Assim como Mircea Eliade, Ricoeur se interessou pelo aspecto linear e pelo aspecto circular da temporalidade nas práticas ritualísticas antigas. Ele trabalha inicialmente com a famosa relação entre tempo cíclico e tempo linear, que se tornou popular, sobretudo, após a obra Hebrew Thought Compared with Greek, de Thorleif Boman.392 Neste trabalho, Boman apresenta a ideia na qual a história ocidental, inspirada pela Bíblia, estaria fundamentada em uma consciência linear de tempo, enquanto a antiguidade teria a configuração da percepção temporal instalada em moldes cíclicos. Ricoeur não assume extremidades, assim como não esgota os temas de início (começo temporal) e origem (fundação de algo). Ele acompanha os esclarecimentos de Arnaldo Momigliano sobre o assunto. Segundo Momigliano, a base das suposições do confronto entre o tempo grego e hebreu, que foram sustentadas até então, estariam erradas. Nos pressupostos deste conflito há dois equívocos elementares: (1) no lad o grego, esqueceu-se que havia diferentes concepções de tempo inerentes no pensamento gre- go (e.g., entre Homero, Hesíodo e os trágicos há divergências na visão do mundo, como também na teorização do tempo, contraposta a Platão, Aristóteles, Demócrito e os Estoicos); e (2) no lado hebreu, subestimou-se a diversidade de manifestações temporais tais quais os ritos, os festivais, os ditos proféticos, os ideais deuteronomistas e os movimentos escatoló- gicos. Deste modo, poder-se-ia comparar apenas pequenos fragmentos bíblicos, como Sa- muel ou os Reis, aos escritos literários gregos. Arnaldo Momigliano conclui sua reflexão alegando que, “acima de tudo, os textos bíblicos não contém uma especulação sistemática sobre o tempo que seja merecida a comparação aos filósofos gregos”393.

O contraste entre o pensamento grego e hebreu, seguido por Oscar Cullmann e Gilles Quispel, ofuscou, segundo Ricoeur, a verdadeira natureza da questão com conclusões apres-

391 Cf. RICOEUR, Paul. “The History of Religions and the Phenomenology of Time Consciousness”. In: KITA-

GAWA, Joseph M. (Ed.) The History of Religions: Retrospect and Prospect, p. 14.

392 Cf. BOMAN, Thorleif. Hebrew Thought Compared with Greek. New York: W. W. Norton & Company,

1970.

393 “Above all, biblical writings contain no systematic speculation about time worthy of being compared with

that of Greek philosophers”. MOMIGLIANO, Arnaldo. “Time in Ancient Historiography”, In: Essays in An- cient and Modern Historiography, Middleton, Conn,: Wesleyan Univ. Press, 1977, p. 80.

sadas sobre a relação proposta.394 Ricoeur, com a sua característica postura pronta ao diálo- go, apresenta um outro caminho ainda: para trabalhar a história das religiões ele propõe dois passos metodológicos. O primeiro é a contribuição da fenomenologia da consciência do tempo para a crítica das noções do tempo cíclico e linear. Faz-se notar que, na aporia do tempo, a questão da temporalidade é fundamental para a dobra da religião, uma vez que se insere no centro da relação entre tempo e narrativa. Neste projeto, herda-se os ensinamentos decisivos da fenomenologia da consciência do tempo, desde Agostinho, Bergson, Husserl até Heidegger, que nos evidencia a consciência do tempo enquanto um produto final da cul- tura científica e, ao mesmo tempo, esvazia a riqueza da referida reflexão. Neste âmbito, Ri- coeur sugere outros caminhos – que estariam, portanto, no segundo passo metodológico de Ricoeur: a contribuição de Ricoeur acerca de um caminho que propõe o estudo dos diversos sentidos e significados dos conceitos usados em religiões comparadas, evitando a univoci- dade do conceito de tempo.395

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