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Linguagem em origem

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II.1 Situação hermenêutica

II.1.1 Linguagem em origem

Diante da inversão acusada pela hermenêutica da suspeita, a religião, para Ricoeur, tem como função inicial a inserção da Palavra no mundo. Qualquer outra abordagem, so- bretudo a dualidade entre Paraíso e vida secular, reporta à ideologia anunciada por Marx.288 A Palavra é central na Bíblia e na filosofia de Ricoeur e tem a ver com a noção de início e origem. A centralização da palavra é herança da teologia da criação, na qual se insere a apo- ria do mal. No caso, o mal, no plano ético-jurídico, implica na ideia de justiça e de ordem. A existência humana conhece a dualidade. O tom da injustiça do mundo, desde os registros mais antigos, abrem o hiato entre a justiça e a injustiça. Há, como observa Hans-Heirich Schmid, uma discordância (al., Diskrepanz) própria da criação.289 Franz Rosenzweig, que influenciou Ricoeur, sobretudo na relação da linguagem com a experiência religiosa, deno- minou a dualidade inerente no mundo de “totalidade quebrada”.290 No sentido cósmico de início e de origem, ao carregar o elemento da justiça, a discordância e a quebra do mundo percorrem pelas narrativas míticas e implicam na necessidade do entrelaçamento das coisas primeiras. É pela ordem das ideias de contingência e necessidade que a ordenação amplia seu sentido do plano cósmico para o plano humano de justiça e de direito.291

287 "The hermeneutics of doubt may in this way be preserved and also supplemented by a hermeneutics of inven-

tion.” KEARNEY, Richard. On Paul Ricoeur: The Owl of Minerva, 2004, p. 78.

288 “That religion... reverses the relation of heaven and earth, signifies that it is no longer religion, that is, the

insertion of the Word in the world, but rather the inverted image of life. Then it is nothing more than the (nar- row) ideology denounced by Marx. But the same thing can happen, and undoubtedly dos happen, to science and technology as soon as they claim to scientificity masks their justificatory function with regard to the mili- tary-industrial system”. RICOEUR, “Science and Ideology”, p. 236.

289 RICOEUR, Paul; LaCOQUE, André. Pensando Biblicamente, 1998, p. 76-77.

290 Cf. ROSENZWEIG, Franz. The Start of Redemption. Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 2005,

pp. 32-34.

A centralidade da palavra no mundo se insere nesse contexto. É na dinâmica da dis- cordância, ou da totalidade quebrada, que a aporia aparece.292 A aporia permanece, contudo, em conflito, ao invés de ser absolvida. A tensão aponta para a criação. Ricoeur faz notar que a tradição cristã ensina que houve uma condescendência do Espírito Santo na literatura das Sagradas Escrituras – e.g., Deus no humano em Cristo. Essa condescendência nasce da apo- ria e sua ação, em motivação justa, é boa. A inspiração divina, no caso da Bíblia, diante das ideologias, resultou em um livro sagrado. Deus, novamente, para a tradição cristã – tradição a qual Ricoeur pertence –, cria o mundo mediante palavras e narrativas. A palavra, segundo Santo Agostinho, é “palavra criadora”293. “No princípio era o logos, e o logos estava com Deus, e o logos era Deus” [Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος, καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν θεόν, καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος], registra a sabedoria helenista no prólogo de João.294 Deus está no começo e no iní- cio, de modo que a criação refere-se a um processo de narração que dá origens – e tal pro- cesso criativo narrativo é, em seu julgamento, bom. Trata-se de uma ação boa, o mitzvah, a ação correta da ética judaica.

Há a ideia de início, i.e., o começo temporal, o primeiro evento de uma série de eventos que se darão na temporalidade. Há, também, a ideia de origem, ou seja, a fundação (de algo) na perspectiva atemporal, fora da temporalidade. Tal distinção, segundo Ricoeur, não se aplica à Bíblia.295 Em Gênesis 2.4b não aparece explicitamente a preocupação tempo- ral ou atemporal.296 Há uma outra preocupação, que se encontra na síntese das duas. “No princípio Deus criou o céu e a terra” (Gn 1.1). Após cada etapa da criação, a narrativa in- forma: “e viu Deus que era bom”297. A Cabala, nos primórdios do Gênesis, inicia o relato da criação com a primeira letra ב [bet], de ב ְּרֵ ארִׁי [bereshit, “princípio”]. Tanto princípio quanto o verbo criar, ֵ ָּרָּי, barah, iniciam-se com o bet. A noção de início, segundo Ricoeur, já es-

292 O totalitarismo é o pensamento que impõe uma regra independente da fratura. Não há possibilidades diante da

imposição do totalitarismo. A anti-ética do totalitarismo é a totalidade antecipada em uma situação ainda não própria. A fratura, por outro lado, é uma possibilidade de lidar com a realiadade na qual dispensa os julga- mentos prematuros de qualquer totalitarismo para encarnar na ontologia quebrada a tarefa do reconhecimento do ser.

293 Santo Agostinho, Confissões, p. 314. 294 Cf. João 1:1.

295 “O sentido temporal de iníco não estava completamente excluído, mas estava virtualmente subordinado ao

sentido atemporal de origem compreendida como fundação”. RICOEUR, Paul; LaCOQUE, André. Pensando Biblicamente, 1998, p. 82.

296 RICOEUR, Paul; LaCOQUE, André. Pensando Biblicamente, 1998, p. 78. 297 Cf. Gn 1:10, 1:12, 1:18, 1:21, 1:25, 1:31.

tava presente no bet.298 Jorge Luis Borges, em tradução livre (“No princípio, criou deuses os céus e a terra”) faz notar a necessidade da primeira letra da narrativa ser o b – letra inicial da palavra bênção, בָּר ָּרִׁי, que também começa com b – como na maioria dos idiomas oci- dentais (bênção, em português; bendición, em espanhol; blessing, em inglês; bénédiction, em francês; benedizione, em italiano).299 O princípio se inicia pelo bet – letra que também é inicial do verbo ֵ ָּרָּי, [barah, “criação”, por ordem divina]. Princípio e criação significam, em suma, na herança da teologia da criação, bênção. A bênção acontece através da narração – que é genuinamente bom. A criação, deste modo, celebra uma eucaristia da linguagem: a prática da hermenêutica da inovação em face das ideologias dominantes e imaginárias. De acordo com Kearney, a ideologia trabalhada por Ricoeur, em sua própria representação so- cial, é um fenômeno insuperável [unsurpassable] da existência histórico-social que tem pressupostos na constituição simbólica, onde interpreta em imagens e representações o lado social do si.300 A reflexão de Ricoeur aponta, portanto, para uma hermenêutica da invenção que acontece pela narrativa, cujo ato de narrar é bom.301

A invenção na narrativa se dá também na tradução. Na língua grega, o conceito de bereshit foi traduzido em ἀρχῇ [gr. arché], i.e., a noção de primeiro (temporal) e primordial (fundação). No latim, na traução da Vulgata de Jerônimo, tornou-se principium. “É aqui que intervém a mais importante decisão teológica, a de assimilar este ‘princípio’ à Palavra”, escreveu Ricoeur.302 Trata-se de uma via existencial na qual a narração de algo é a pretensão de uma criação. O prólogo de João, neste caso, é uma réplica de Gênesis 1.1: “Na princípio havia o logos/Palavra”. A assimilação do início e da Palavra tem raiz hebraica nos escritos de sabedoria303 e, não obstante, na leitura feita por Ricoeur em Rosenzweig. A sabedoria é importante para a dobra da religião e a compreensão da linguagem religiosa. A aporia do tempo, motivado pela distensão de Agostinho e inspirado pelo pensamento de Ro- senzweig304, situa a tensão das coisas principais na fundação do mundo diante da ontologia quebrada. A criação, deste modo, antes da sua figura, é uma linguagem filosófico-teológica

298 Cf. RICOEUR, Paul; LaCOQUE, André. Pensando Biblicamente, 1998, p. 82. 299 BORGES, Jorge Luis. Borges oral & sete noites, p. 186.

300 KEARNEY, Richard. On Paul Ricoeur: The Owl of Minerva, 2004, p. 83.

301 “Toward a hermeneutic of invention”. Cf. KEARNEY, Richard. On Paul Ricoeur: The Owl of Minerva,

2004, p. 89.

302 RICOEUR, Paul; LaCOQUE, André. Pensando Biblicamente, 1998, p. 81. 303 Cf. RICOEUR, Paul; LaCOQUE, André. Pensando Biblicamente, 1998, p. 82.

304 Cf. “A temporalidade”, In: “A ‘figura’ em L’Étoile de la Rédemption, de Franz Rosenzweig”, RICOEUR,

que situa a exteriorização no princípio das coisas e a criatividade que desta exteriorização advém. Em outras palavras, “o começo não é um início superado, mas, em um sentido, um começo incessantemente continuado”305. O começo exteriorizado que continua presente é guardado na sabedoria da narrativa bíblica, na qual a vocação de Abraão, em Gênesis 12, correlaciona o passado da memória com a expectativa do futuro do outro, tornando , assim, o presente em uma revelação. Pelo texto, a criação assume um sentido existencial na evocação dos mandamentos bíblicos e na exteriorização dos instantes da incidência que abrem uma perenidade.306

Seguindo a via existencial da religião enquanto a inserção da Palavra no mundo, em resposta à totalidade quebrada, o pecado, para Ricoeur, é uma fratura linguística.307 A lin- guagem é o lugar da esfera humana. Se há uma fratura, trata-se de uma fratura de princípio: algo fundamental não está adequado, não está harmônico. Este conflito implica no peca- do.308 O pecado, membro de um conjunto quebrado de sua totalidade, é a separação linguís- tica entre Deus e o homem, entre Deus e a natureza. A linguagem, nesta perspectiva da via existencial, emerge um universo dentro do Universo, enquanto o pecado se dá na separação destes dois universos, de modo que a própria linguagem não consegue mais falar sobre Deus no seu universo. A fratura – que provém da ontologia quebrada – acontece em todos os ní- veis da realidade. Entretanto, a sua questão mais originária está na linguagem. A linguagem humana, no quiasmo humano, ao fazer um todo com a natureza, sofre com a fratura. A cria- ção, que é linguagem, é estabelecida pela linguagem fraturada. Se “o milagre é que, sob a linguagem da experiência viva, haja camadas de linguagem cada vez mais fundamentais que precedem cada sujeito falante”309, o pecado, por outro lado, trata-se da impossibilidade lin- guística da criação.310 O milagre é que haja um dizer da criação311, um dizer da revelação,

305 RICOEUR, Paul. “A ‘figura’ em L’Étoile de la Rédemption, de Franz Rosenzweig”, In: Leituras 3: Nas fron-

teiras da filosofia, 1996. p. 75.

306 Este parágrafo ilustra bem o sentido de arché aplicada à filosofia de Ricoeur.

307 A fratura linguística é um pouco a fratura ética do bem e do mal, mas no plano linguístico. O tema da fratura

se insere no contexto do trágico, no âmbito da finitude e da culpabilidade. Cf. RICOEUR, Paul. “Culpabilité tragique et culpabilité biblique”, In: Revue d'histoire et de philosophie religieuses, 1953, pp. 285-287.

308 A exemplo da fratura, na medida em que as religiões, e sobretudo a Bíblia, tratam do diálogo de Deus com o

ser humano, como Adão, Caim ou a narrativa Torre de Babel, como diálogos quebrados, onde a fratura é uma fratura linguística. Cf. a carta de Tiago, capítulo 3, da língua nascem todos os males, inclusive a guerra. A linguagem deve ser situada na fratura linguística.

309 RICOEUR, Paul. “A ‘figura’ em L’Étoile de la Rédemption, de Franz Rosenzweig”, In: Leituras 3: Nas fron-

teiras da filosofia, 1996. p. 69.

310 Vale notar que a fratura não é a impossibilidade total, a criação está aí, fraturada, mas está aí. Há a possi-

um dizer da redenção, mesmo na fratura, enquanto o pecado é a totalidade quebrada que impede o dizer a pesar de qualquer ação justa. A totalidade quebrada implica num Deus desconhecido (por isso, precisa-se nomeá-lo), num mundo auto-explanatório (precisa-se, assim, de identidade narrativa) e numa espécie humana entregue à tragédia do mal e da mor- te (consequentemente, o trabalho da simbólica do mal).312 A narrativa criadora – ou a teolo- gia da criação – possibilita uma rede de entrelaçamentos que envolve a criação, a revelação e a redenção. Além das leituras em Agostinho, a influência de Rosenzweig em Ricoeur é ainda mais importante para a dobra da religião no contexto da linguagem. Estes três entrela- çamentos (criação, revelação e redenção) situam a linguagem religiosa no âmbito da ontolo- gia quebrada e preparam a hermenêutica ricoeuriana para o desmembramento linguístico no qual a dobra terá efeito.

Através da criação, Deus se exterioriza num mundo, mas ele é referido, en- tão, apenas na terceira pessoa e na linguagem da narrativa. Através da re- velação, Deus se dirige a uma alma individual e diz: “Você, ama-me!” O diálogo nasce a partir de ser assim dirigido. Através da redenção, uma es- perança é aberta para um nós, que é uma comunidade histórica.313

Ricoeur, ao pensar a criação, conceitua suas ideias sobre o pensamento metafórico de Rosenzweig. Antes de Heidegger e sua obra Ser e Tempo cujo situar o tempo na sucesso de eventos, Rosenzweig apresenta reflexões de profundidade temporal, irredutíveis a qual- quer cronologia ou representação linear. Trata-se, segundo Ricoeur, de uma sequência de estratos314, a qual corresponde às descontinuidades temáticas do aparato bíblico e compor- tam uma verdade. Escreveu ele: “O elo temporal não abole esses rompimentos, ao invés disso, ele os incorpora numa verdade que não tem outra expressão além das três figuras da criação, revelação e redenção”315. É importante estas três figuras, pois representam a ideia de temporalidade bíblica, de acordo com Ricoeur. A criação, ao possibilitar a linguagem, refere-se a um início incessantemente continuado. A revelação, ao instaurar o diálogo, é a

311 Cf. os breves, mas importantes, ensaios sobre a linguagem e a criação, In: GUARDINI, Romano. The World

and the Person. Washington: Henry Regnery Publishing, 1965. As questões de diálogo, alteridade e ética correspondem ao início da linguagem com Deus e os deuses (guardados nos mitos).

312 Para Ricoeur, o fim da tragédia é a celebração e a glória, i.e., a sabedoria grega do “sofrer para aprender”e a

dimensão bíblica do “perdão de Deus” tornam possíveis novas aberturas pelo trabalho do reconhecimento de si nos eventos trágicos e na literatura mítica que promove a dialética da finitude e da culpabilidade. RI- COEUR, Paul. “Culpabilité tragique et culpabilité biblique”, In: Revue d'histoire et de philosophie religieu- ses, 1953, p. 306.

313 RICOEUR, Paul; LaCOQUE, André. Pensando Biblicamente, 1998, p. 85. 314 Cf. RICOEUR, Paul; LaCOQUE, André. Pensando Biblicamente, 1998, p. 86. 315 RICOEUR, Paul; LaCOQUE, André. Pensando Biblicamente, 1998, p. 86.

transição entre o futuro da esperança e o passado da memória. A redenção, ao proporcionar a fundação das coisas na linguagem, propicia a renovação e o prolongamento dos funda- mentos. É nesta dimensão que acontece o “novo pensamento”316, i.e., o discurso da fé onde filosofia e teologia são quase indiscerníveis. O traço do novo pensamento, sobretudo em Rosenzweig, rompe com o discurso do saber absoluto para um outro discurso ser possível. É neste sentido que o milagre se torna na teologia filosofante chamada de novo pensamento.317 O vínculo linguístico é, afinal, a ponte entre os pontos de intersecção da dobra – como os temas religiosos que apelam para a filosofia no dizer das coisas vividas.

Portanto, a relação da linguagem é primeira e trata-se mais de uma meditação exis- tencial do que especulação teológico-filosófica.318 A temporalidade319 é um lugar no qual a criação denota uma unidade rítmica e possibilita pensar a separação em narrativas míticas de origem com a irrupção de múltiplos inícios. Segundo Rosenzweig, trata-se de uma aber- tura de uma perenidade que repousa em silêncio durante o movimento de um piscar de olhos.320 A linguagem só encontra sentido na existência e no momento: no piscar de olhos rosenzweigeriano, no instante kierkegaardiano, no Ereignis heideggeriano. A figura desta dimensão encontra-se na proclamação Bíblica mais profunda e enigmática, “Eu sou o que sou” (Êxodo 3.14), ao colocar o ser em situação de linguagem a partir da totalidade quebra- da.

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