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Uma ontologia no nome

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I.2 A ontologia da dobra: a nomeação de Deus

I.2.1 Uma ontologia no nome

Na obra O Único e o Singular Ricoeur propõe a reflexão acerca da nomeação do di- vino sob o título “Deus sem nome...”. As reticências não são ocasionais: denotam a herme- nêutica de outros nomes divinos. Enquanto Tomás de Aquino faz defesa da nomeação narra- tivo-bíblica e da nomeação filosófico-metafísica de Deus com base na analogia do ser, a hermenêutica de Ricoeur tem como base a analogia metafórica, abandonando pressupostos gnosiológicos de natureza metafísica.197 Diferente de Aquino, para Ricoeur as referências antigas e variadas dos nomes de Deus carregam a dimensão da metáfora ao invés de resol- ver um problema dogmático. Ricoeur transitou pela filosofia grega, a arqueologia bíblica e a

(2012), pp. 151.

196 “La thèse de Ricoeur est que toute pensée possède à la fois un versant personnel et un versant impersonnel,

une dimension subjective et une dimension objective.” VALLÉE, Marc-Antoine. “Le premier écrit philoso- phique de Paul Ricoeur: Méthode réflexive appliquée au problème de Dieu chez Lachelier et Lagneau”, In: Études Ricoeuriennes / Ricoeur Studies, Vol 3, No 1 (2012), pp. 151.

197 Cf. SALLES, Sergio. “Nomear Deus: Tomás de Aquino e Paul Ricoeur.” In: Aquinate, n°. 12, Niterói:

teologia sistemática com igual competência. Inspirado em Heráclito de Éfeso, absorveu a aporia do fragmento 67: “O deus é dia noite, inverno verão, guerra paz, saciedade fome; mas se alterna como fogo, quando se mistura a incensos, e se denomina segundo o gosto de cada”198. O pensamento grego ilustra o interesse de Ricoeur em uma compreensão do nome divino antes de qualquer confissão religiosa na filosofia. Deste fragmento, Ricoeur comenta: “é um texto extraordinário porque são os múltiplos perfumes, talvez dos sacrifícios que, por suas fragrâncias, colorem o deus com diversos nomes”199. Nota-se a variedade de expres- sões do teônimo no horizonte de Ricoeur e a possibilidade de dobras que dela advém.

A outra referência forte é encontrada no pensamento hebraico. Os nomes de Deus na Bíblia são variados. A pesquisa etimológica e filológica no assunto elucida sobre a plurali- dade e o uso de nomes divinos na Bíblia.200 As narrações do livro de Gênesis carregam teô- nimos nascentes em cada patriarca. O caso mais comum é o “Deus de Abraão” (‘elohê ‘abraham, Gn 31,42:53). Alguns pesquisadores, segundo John Bright, sugerem a tradução deste termo como “Escudo de Abraão” (cf. Gn 15,1) ou “O Benfeitor de Abraão”.201 ainda “Temor de Isaac” (pahad Yishaq, Gn 31,42:53) que, além de “temor”, pode significar “homem sábio”.202 Há, também, o “Poderoso de Jacó” (‘abir Ya’qob, Gn 49,24). Ricoeur vai além e menciona203, para aprofundar o exemplo, o livro de Isaías, Capítulo 9: “E lhe foi dado este nome: Conselheiro-maravilhoso, Deus-forte, Pai-eterno, Príncipe-da-paz”204. Ri- coeur utiliza uma tradução francesa e fala em “Conselheiro Magnífico, Pai Todo-Poderoso, Príncipe da Paz” – termos que, segundo ele, não combinam entre si para montar uma unida- de do nome de Deus.205 Há ainda outras atribuições espalhadas ao longo do texto bíblico: “Deus dos exércitos” (I Samuel 1:3), “Deus Misericordioso” (Hebreus 2:17), “Deus justiça” (Jeremias 23:6). Em suma, são nomes opostos mas que comungam no mesmo livro.

Uma das interpretações bíblicas a fim de evitar contradições no nome é sugerida por John Bright: quando alguém faz um juramento ao Deus do outro (ver Gn 31,36-55, Jacó

198 HERÁCLITO. In: Os Pensadores: Os Pré-Socráticos. São Paulo: Nova Cultural, 2005, p. 94. 199 RICOEUR, Paul. O Único e o Singular, p. 19.

200 Para um trabalho que apresenta a solução encontrada pelos judeus acerca do problema da variedade dos

nomes divinos, fechando a interpretação no nome Javé, conferir as obras Julius Wellhausen, Hugo Gress- mann e, principalmente, Werner H. Schimidt, com seu livro A fé do Antigo Testamento (São Leopoldo: Sino- dal, 2004).

201 BRIGHT, John História de Israel, 2003, p. 131. 202 BRIGHT, John História de Israel, 2003, p. 131.

203 RICOEUR, Paul. O Único e o Singular. São Paulo: UNESP, 2002, p. 18. 204 BÍBLIA DE JRESUALÉM, Isaías 9:5, p. 1268.

jurou pelo Poderoso de Isaac), significa que o juramento foi jeito pelo “Deus do clã de seu pai”206. Há uma tendência inicial ao monoteísmo, o qual concentra em um nome todas as demais nomeações. Para Albrecht Alt, seguindo esta tendência, o Deus dos Pais foi relacio- nado com muitos outros deuses e nomes. Sua referência é mencionada, sem inibições, “tanto na obra javista como na obra eloísta”207, de modo que passa a estar presente em ambas ca- madas literárias. O Deus dos Pais, portanto, vive nas obras históricas e nos diversos gêneros literários bíblicos. Assim, Milton Schwantes, em sua magistral pesquisa sobre a teologia do Antigo Testamento, concluiu que o Antigo Testamento nos fala de “um só e mesmo Deus: Javé”208. No entanto, Ricoeur, profundo conhecedor da exegese bíblica, propõe um outro caminho – um caminho filosófico – para a compreensão do nome de Deus.

Segundo Gilbert Vincent, ao analisar a questão do nome divino em Ricoeur,

se nós observamos que o nome aparece em vários tipos de discurso, é de admitir que essa pluralidade é equivalente à uma pluralidade de perspecti- vas, que Deus só vem à linguagem de cada aspectos particulares; mas tam- bém não há nenhum tipo de discurso capaz de sobrepor ou envolver todas as outras coisas, que esses diferentes aspectos não permitem que se fundem em um todo, que poder-se-ia dizer: esta é a verdade última e definitiva de Deus!209

Ao invés de buscar uma verdade última e definitiva de Deus, Riceour, na dinâmica da tarefa negativa, mantém a tensão da nomeação do divino e procura compreender a força da nomeação. “Deus”, para ele, “é aquele que é anunciado, invocado, questionado, suplica- do e agradecido”210. Há uma dimensão da compreensão do nome divino que escapa ao dog- matismo. “O termo ‘deus’ circula o sentido entre todos os modos de discurso, mas, além de cada modo, conforme a visão da sarça ardente, ele é de alguma forma o ponto de fuga”.211 O

206 BRIGHT, John História de Israel, 2003, p. 131.

207 ALT, Albrecht, O Deus Paterno, In: GERSTENBERGER, Erhard Gerstenberger (Org.), Deus no Antigo

Testamento, 1981, p. 40.

208 SCHWANTES, Milton. Teologia do Antigo Testamento: anotações, 1982, p. 2.

209 “Si donc l’on observe que ce nom apparaît dans plusieurs types de discours, force sera d’admettre, cette plura-

lité équivalant à une pluralité de perspectives, que, de Dieu, seuls viennent au langage des aspects chaque fois particuliers; mais force également sera d’admettre, puisqu’il n’existe aucun genre de discours capable de sur- plomber ou d’englober tous les autres, que ces différents aspects ne se laissent pas fondre en un tout, dont on pourrait dire: telle est la vérité ultime et définitive e Dieu!” VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 101.

210 “Dieu est celui qui est annoncé, invoqué, interrogé, suppléé, remercié” RICOEUR, Paul. “Herméneutique de

l’idée de révélation”, In: La révélation (collectif), Bruxelles: Faculté Saint-Louis, 1977, p. 31.

211 “Le terme ‘dieu’ fait circuler le sens entre tous les modes de discours, mais, échappant à chacun, selon la

vision du buisson ardent, il en constitue en quelque sorte le point de fuite”. RICOEUR, Paul. “Herméneutique de l’idée de révélation”, In: La révélation (collectif), 1977, p. 35.

corpo bíblico, imbricado por narrativas plurais, ecoa os diversos gêneros literários que for- mam a fé – em suma, que tornam na linguagem uma experiência de crença possível. O que não cabe no dogmatismo é abraçado pela ontologia e questões de finitude e capacidade hu- mana.

A hipótese levantada por Ricoeur traduz-se no sinal bíblico da retirada de problemas conceituais no nome de Deus e levanta o mistério inominável e o enigmático – profunda- mente interpretativo – de Êxodo 3:14: “Eu sou aquele que sou”. Dentre as dificuldades da recepção do nome de Deus no Monte Sinai, há o problema da tradução do nome. No capítu- lo “Pensando a Criação”, em seu livro Pensando Biblicamente, Ricoeur intitulou esse pro- blema por Da interpretação à tradução.212 Isso significa: não há tradução antes da interpre- tação. Havia disponível apenas o verbo grego e latino ser, fonte das traduções. Para Ri- coeur, a despeito da fraqueza da tradução, é possível reorientar o estudo do nome divino e do verbo ser ao colocar tal estudo em um novo contexto.213 Apesar do título “Eu sou o que sou” ser uma espécie de redundância sobre o verbo ser e que não diz nada214, Deus, para Ricoeur, não é um “ponto de fuga” [point de fuite], mas, a “fonte dos possíveis” [source des possibles].215 No início de sua formação filosófica, Ricoeur estudou o problema de Deus em Lachelier e Lagneau com o intuito de compreender melhor o pensamento humano por in- termédio de um movimento reflexivo acerca do tema de Deus, a alteridade e a capacidade humana.216 A questão ontológica enraizada no nome divino é, portanto, o trabalho de uma aporia com repercussões no pensamento da justaposição conflitual, assumindo, ao mesmo tempo, uma dupla adesão e uma aposta filosófica.

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