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O horizonte da dobra

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I.1 Demarcando os domínios da filosofia e da teologia

I.1.5 O horizonte da dobra

Os problemas que têm relação com a realidade podem estar mistificados em suas formulações. Com esta tese não é aspirada a mística nem a espiritualidade, a despeito dos méritos e contribuições oriundos de ambas; muito menos o equívoco elementar da identifi- cação geral de Paul Ricoeur com o religioso. Conforme foi apresentado, há em Ricoeur a dupla fidelidade159. A exploração da dupla fidelidade, ou dupla adesão, se pensarmos em termos de aposta filosófica, exige um trabalho de pensamento que privilegie a originalidade que dela advém. Propõe-se, portanto, dobra, justamente para evitar a centralização das in- terpretações e poder abrir as possibilidades interpretativas – assim como Ricoeur preferiu em suas tarefas filosóficas.

156 Cf. RICOEUR, Paul. “A unidade do voluntário e do involuntário como ideia-limite”, In: Boletim da Socie-

dade Francesa de Filosofia, Universidade de Coimbra: Unidade I&D LIF, Sessão de Sábado, 25 de Novem-

bro de 1950. Disponível em:

http://www.uc.pt/fluc/lif/publicacoes/textos_disponiveis_online/pdf/a_unidade_do_voluntario3

157 Cf. RICOEUR, Paul. “Philosophy and Religious Language”, In: Figuring the Sacred, pp. 35-37.

158 BLUNDELL, Boyd. Paul Ricoeur Between Theology and Philosophy: Detour and Return. Bloomington:

Indiana University Press, 2010, p. 65.

A dobra é o acesso crítico ao círculo do pensamento de Ricoeur proposto pela tese. Partimos, inicialmente, do conceito de dobra de Gilles Deleuze160, sem a pretensão de fazer referências aos seus conteúdos – um empréstimo que se trata mais de uma sugestão do que uma apropriação, dá-se no uso bruto do termo dobra, enquanto conceito filosófico. A dobra na arte representa as ações e as mudanças na vida, movimentos que se referem à uma função operatória; um traço, ao invés de uma essência.161 A dobra é uma perífrase que prolonga o sentido e o significado de símbolos e narrativas. Os movimentos são dobrados de inúmeras maneiras, circulares ou transversais, denotando dobras infinitas em cima de um mesmo as- pecto. Segundo Leibniz, ao comentar sobre a flexibilidade e elasticidade de um determinado corpo ou assunto, há coerência nas partes que formam a dobra, uma vez que elas não se se- param em partes das partes, mas se dividem até o infinito em dobras menores, cada vez me- nores, preservando a coesão entre elas.162 Em Hamlet, a primeira indagação na estória é res- pondida com outra: stand and unfodlf yourself, algo como, “pare e desdobre-se” – hoje, po- deríamos traduzir por, “pare e identifique-se”.163 Assim sendo, a dobra se anuncia como um recurso hermenêutico, uma vez que o movimento do texto implica na reflexão da existência e caracteriza a identidade.

O texto forma uma textura que encobre outro texto. No movimento do encobrimento, cria-se uma nova vertente interpretativa, em suma, outra leitura. Um texto sob o texto, mesmo que apenas assinalado de passagem. Tal é a dinâmica da dobra. Do latim plicō, cuja raiz encontra-se na língua protoindo-europeia pleḱ-, significa dobrar.164 É a mesa origem para o grego πλέκω, plékō.165 A dobra possui alguns cognatos no latim, dos quais comparti- lham a mesma raiz pli, de plico. A saber, applicō, aplicar: o ato de dobrar, dobra em ato; complicō: complicar: promover dobras, algo com dobras; explicō: explicar: abrir as dobras, evidenciar as dobras; implicō: implicar: colocar na dobra, alterado pela dobra; multiplicō: multiplicar: acrescentar dobras, muitas dobras; replicō, replicar: dobrar em outra dobra, do-

160 Cf. DELEUZE, Gilles. Le pli: Leibniz et le baroque. Paris: Lés Éditions de Minuit, 1988.

161 “Le Baroque ne renvoie pas à une essence, mas plutôt à une fonction opératoire, à un trait”. DELEUZE,

Gilles. Le pli: Leibniz et le baroque, 1988, p. 5.

162 “C’est ce que Leibniz explique dans un texte extraordinaire: un corps flexible ou élastique a encore des par-

ties cohérentes qui forment un pli, si bien qu'elles ne se séparent pas en parties de parties, mais plutôt se di- visent à l'infini en plis de plus en plus petits que gardent toujours une certaine cohésion”, LEIBNIZ, Gottfried apud DELEUZE, Gilles. Le pli: Leibniz et le baroque, 1988, p. 9.

163 Cf. SCHMIDT, Lawrence. Understanding Hermeneutics, 2010, p. 12.

164 BRÉAL, Michel, BAILLY, Anatole. Dictionnaire étymologique Latin. Paris: Librairie Hachette et Cie, 1914,

p. 270.

bras subsequentes; supplicō, suplicar: dobrar em cima de uma dobra, elevar a dobra; sim- plex, simples: uma dobra; duplex, duplo: duas dobras.166 Em algumas vertentes da fenome- nologia, inspiradas em Paltão167, encontra-se συμπλοκή, simploke, i.e., o entrelaçamento, uma coisa na outra, um pelo outro, a totalidade.168 A dobra possui implicações para a vida, cuja existência requer desdobramentos.

Na hipótese da tese, seguindo Richard Kearney, o pensamento de Ricoeur é multifa- cetado e polivalente.169 O pensamento de Ricoeur, segundo a tese, possui dobras. Se a análi- se do percurso filosófico do autor demonstra os desvios de suas obras, tanto em sua biogra- fia intelectual como em seu esforço laboral, a reflexão das principais aporias apontam para novas problemáticas no pensamento do autor. François Azouvi e Marc de Launay relatam, a respeito da sequência do trabalho filosófico de Ricoeur, sobre uma “espécie de quebra em seu percurso”170, “sentimentos de linhas quebradas”171, i.e., desvios e superações assimila- das sucessivamente em sua filosofia e, consequentemente, em suas publicações. Tal proce- dimento, segundo Edmond Blattchen, é essencialmente antropológico, histórico e humanís- tico.172 O procedimento denota as características das questões e respostas presentes na obra de Ricoeur: ele situa-se no “terreno das interpretações de si”173, de modo que seus caminhos não valem mais que os do leitor. Há linhas tortas e mudanças de direções em Ricoeur – sem cair na alternativa contínuo/descontínuo. Para Ricoeur, há urgências a serem atendidas em diferentes temas – os quais ele buscou responder em esforços e elaborações de livros. Nas palavras de Ricoeur: “Quando escrevo um livro sobre um assunto, não volto a falar nele, como se houvesse cumprido o meu dever e estivesse livre para continuar o meu caminho. Foi assim que abandonei o problema da psicanálise, mas também o da metáfora após A Me- táfora Viva”174. Esta declaração demonstra um pensamento plural e diverso em Ricoeur na

166 CHATELAIN, Émile. QUICHERAT, Louis-Marie. Dictionnaire Latin-Français. Paris: Librairie Hachette et

Cie, s/d, p. 1038.

167 Cf. soph. 259.

168 Cf. SOKOLOWSKI, Robert. Phenomenology of the Human Person. Cambridge: Cambridge University Press,

2008, pp. 281-282.

169 Cf. KEARNEY, Richard. On Paul Ricoeur: The Owl of Minerva. Ashgate Publishing Limited: Burlington,

2004, p. 38.

170 In: RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 126. 171 In: RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 132.

172 BLATTCHEN, Edmond. In: RICOEUR, Paul. Paul Ricoeur: o único e o singular, 2002, p. 13. 173 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 132.

imagem da dobra – sem perder a centralidade de cada empreendimento que ele se dispõe a fazer. Podemos exemplificar com a seguinte afirmação:

Eis a verdade da minha relação com a psicanálise, pois é verdadeiramente de A Simbólica do Mal que procede o Ensaio sobre Freud. Havendo adop- tado uma linha que era, em traços largos, a de fenomenologia da religião, próximo de Eliade, tinha efectivamente a sensação de que, em Freud, Ni- etzsche e Marx, existia um pensamento adverso com o qual tinha de me explicar.175

Se por um lado há simetria e harmonia no itinerário filosófico do autor, por outro há coerência em suas preocupações e métodos – a destacar, a filosofia da religião que já lhe era presente desde o início de suas obras. Cada empreendimento de Ricoeur é determinado por um problema fragmentário, mas que se insere no movimento da dobra.

Gosto muito da ideia de que a filosofia se dirige a determinados problemas, a embaraços de pensamento muito delimitados. Assim, a metáfora é, antes de mais, uma figura de estilo; a narrativa é, em primeiro lugar, um gênero literário. Os meus livros tiveram sempre um caráter limitado; nunca abordo questões maciças do tipo ‘O que é a filosofia?’. Trato de problemas parti- culares: a questão da metáfora não é a da narrativa, embora observe que, de uma à outra, há a continuidade de inovação semântica.176

Nessa citação invocamos os conceitos da especificidade e particularidade de uma abordagem e a sua implicação com a continuação e o todo da pesquisa filosófica. São mo- vimentos de dobras que perpassam pelo trabalho de Ricoeur e que encontram na religião a sua dobra mais original. A dobra da religião pede por um trabalho de pensamento. Ricoeur não esgotou o tema da religião em uma obra ou um livro – ele não escreveu um tratado acerca da religião. Mesmo assim, de acordo com Gilbert Vincent,

se nós reuníssemos todos os textos de Ricoeur consagrados ao estudo do horizonte da crença (do crer) — afinal, este é, provavelmente, no que diz respeito à religião, o objeto principal de suas preocupações — nós chegarí- amos a um volume tão importante (grande) que indicaria uma produção que exceda de longe, nem que fosse (pelo menos) quantitativamente, a de qualquer outro filósofo.177

175 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 126. 176 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 132.

177 “Si l’on rassemblait tous les textes consacrés par Ricoeur à l’étude de l’horizon de la croyance – car tel est

probablement, en matière de religion, l’objet principal de ses préoccupations –, on parviendrait à un volume si important qu’il indiquerait un production dépassant de loin, ne serait-ce que quantitativement, celle de tout autre philosophe.” VINCENT, Gilbert. La religion de Ricoeur, 2008, p. 12.

O trabalho de Ricoeur na religião e na teologia é comum e vasto. Segundo ainda Vincent, dizer que há uma virada religiosa nas obras de Ricoeur seria excessivo.178 Falar em dobra da religião é mais razoável, pois não sugere uma virada radical como um percurso que se virou para outra direção e abandonou o caminho original. A dobra é uma intersecção possível no próprio caminho, enriquecendo-o. A citar, os estudos de Ricoeur sobre a metá- fora (dos idos de 1975) representam um momento teórico decisivo e que teve repercussão na tradição hermenêutica e no estudo do fenômeno religioso.179 Neste sentido, preservamos a dobra da religião enquanto um desdobramento da existência humana – horizonte no qual pretendemos alcançar no desenvolvimento da pesquisa.

Inicialmente, há o momento da separação entre filosofia e teologia, situando a aporia e preservando a tensão.180 Posteriormente, há a repercussão da produção da aporia no pen- samento de Ricoeur: a dobra realizada no diálogo entre a filosofia e a teologia. No cruza- mento das duas áreas surgem pontos de intersecção. Em justaposições conflituais, inaugu- ram-se dobras. Da primeira dobra – o teônimo – advém um trabalho de pensamento que implicará numa reflexão original da ontologia quebrada na proposta hermenêutica do autor.

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