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O desmembramento linguístico

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II.1 Situação hermenêutica

II.1.2 O desmembramento linguístico

A questão da linguagem não é uma resposta definitiva para o mal. Antes, ela lança luz na aporia para que outros caminhos sejam pensados. Nesta tarefa, a língua, em sua con- dição criativa e criadora, desmembra novos sentidos. Novas formas de dizer algo são possí-

316 RICOEUR, Paul. “A ‘figura’ em L’Étoile de la Rédemption, de Franz Rosenzweig”, In: Leituras 3: Nas fron-

teiras da filosofia, 1996. p. 68.

317 RICOEUR, Paul. “A ‘figura’ em L’Étoile de la Rédemption, de Franz Rosenzweig”, In: Leituras 3: Nas fron-

teiras da filosofia, 1996. p. 69.

318 Cf. RICOEUR, Paul; LaCOQUE, André. Pensando Biblicamente, 1998, p. 86-77.

319 A temnporalidade se faz presente por todo o corpo desta tese, uma vez que ela é eixo articulador da dobra da

religião no pensamento de Paul Ricoeur e em outros autores que o influenciaram.

320 “A silently reposing permanence by the movement of a blink ofthe eye.” ROSENZWEIG, Franz. The Star of

veis. Segundo Aristóteles, o ser pode ser dito em diversas maneiras [pollakhôs legetai].321 A variedade é dita na linguagem criativa ou poética, cuja expressão alarga o ser para o sentido. Dentre as várias narrativas, para Ricoeur as mais significativas estão no mito e na metáfora, pois estas são as primeiras formas de ver o ser humano no mundo.322 A metáfora e o mito, ao desdobrar o ser, possibilitam a criação semântica. A narrativa criadora de sentidos funda mundos e aponta para sentidos bons (a primeira letra bet, de bereshit, “princípio”, de barah, “criar”, de bênção, preservada na maioria dos idiomas ocidentais, enquanto a queda promo- ve a confusão dos sentidos, inibindo o sopro criativo (o pecado, i.e., a quebra linguística). Se diabólico é o movimento de dividir e espalhar, simbólico é juntar e lançar. A fratura lin- guística, na dinâmica da separação e espalhamento, impossibilita a semântica da criação. A tradição bíblica hebraica e cristã vivencia a invenção linguística do pecado nas erupções existenciais da consciência da culpa da fratura linguística.323 Toda experiência de separação, falta e culpa carrega em si a sabedoria que busca desembocar na linguagem as saídas para a experiência viva. Torna-se necessário, portanto, a hermenêutica da suspeita e a hermenêuti- ca da inovação na condição de guias do labirinto da linguagem. Na esfera simbólica, o ato de união e ação remetem para sentidos profundos do ser a partir da linguagem que implicam em gestos bons.

A dobra da religião promove desmembramentos linguísticos de narrativas míticas e implica, pelo agir engajado e justo, numa poética.324 A linguagem, ao mesmo tempo que é meio e patrimônio da humanidade, segundo Heidegger, é a atitude central e inauguradora do ser, tempo e sentido, segundo Ricoeur. Iniciado no estudo do símbolo, passando pela metá- fora, narrativa e alcançando o testemunho, fundamental para a tese é a subordinação da pre- ocupações epistemológicas da hermenêutica para as preocupações ontológicas. “Compreen- der deixa de aparecer como um simples modo de conhecer para tornar-se numa maneira de ser e relacionar-se com os seres e com o ser”325. Os pressupostos das preocupações ontoló-

321 “Aristote note que ‘l’être se dit de multiples façons’”. RICOEUR, Paul. “Ontologie”, In: Encyclopaedia uni-

versalis. XII, Paris, Encyclopaedia Universalis France, 1972, p. 96.

322 Cf. VANHOOZER, Kevin J. Biblical narrative in the philosophy of Paul Ricoeur: A study in hermeneutics

and theology. Cambridge University Press: Cambridge, 1990, p. 8.

323 Cf. RICOEUR, Paul. A Símbólica do Mal, 2013, p. 25.

324 Vale notar a noção de poética para a perspectiva desta pesquisa. A poética, poiesis, como referência indireta,

i.e., que diz algo original, que não poderia ser de outro modo. Não temos a prentensão de elaborar uma poéti- ca da religião em Ricoeur, mas apontar que a reflexão religiosa leva à poética. Portanto, sempre que o termo poética se fizer presente, trata-se da poiesis.

gicas envolvem movimentos de desregionalização, os quais levam o leitor para atitudes de desconfiança e distanciamento. Tanto em Deleuze, conforme sua obra de referência, como na tese da dobra da religião em Paul Ricoeur, a dobra é superficial. Isto é, na superfície das narrativas emergem sentidos que dizem algo dobre o ser. Ricoeur caminha pelas superfícies de suas especulações, ao invés de invocar uma profundidade de significados escondidos [sens cachés]. O empreendimento hermenêutico da interpretação correta (ou justa) e a dobra acontecem na linguagem. Não há pretensão metafísica na tese da dobra da religião. Sua condição de origem se insere no chão da hermenêutica ricoeuriana. Segundo Olivier Abel, a dobra da religião explicita apropriadamente a passagem do símbolo para a metáfora na obra de Ricoeur. Diferente de Eliade, que busca um sentido no próprio símbolo326, Ricoeur ela- bora seu pensamento a partir do símbolo. O Lebenswelt é outro fator determinante na filo- sofia de Ricoeur que abre a força polissêmica do símbolo. Sendo o símbolo o elemento que dá o que pensar, parte-se do símbolo para a vida. É nesse movimento reflexivo, na superfí- cie, que acontecem os turnos, desvios e, em destaque, a dobra.

Motivado pela analogia operada no símbolo327, pode-se falar que a dobra da religião abraça a ambiguidade – a começar pela opção de Ricoeur à referência dupla328, i.e., a não mistura dos gêneros teológicos e filosóficos por precaução metodológica e, principalmente, por não esgotar as aporias. A dupla adesão, enquanto faceta da contingência e do significa- do, denota as diversas adesões – como também as oposições – que se integram num hori- zonte comum. “A leitura mais interessante parece ser uma leitura às avessas”329, escreve Ricoeur sobre a leitura da Bíblia, sobretudo o Antigo Testamento. A teologia do nome divi- no dá lugar à uma teologia narrativa – uma leitura às avessas – ao invés de uma teologia dogmática ou uma onto-teologia sobre Deus. O nome divino carrega metáforas que configu- ra tradições, das mais variadas, e formas de expressão, das mais diversas. O auge desta in- terpretação está na poética que promove a compreensão do mundo diante do texto. A prática de vivência da fé do nome divino é transferida do texto para a vida. A essência poética pos- sibilita refazer o mundo segundo a visada essencial da relação do sujeito com a narrativa bíblica. A palavra Deus torna-se numa expressão-limite que leva à uma experiência-limite.

326 Cf. ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos, São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 55.

327 Cf. a dialética entre alegoria e hermenêutica no estudo do símbolo, In: RICOEUR, Paul. A Simbólica do Mal,

p. 32-33.

328 Cf. RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 221. 329 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 224.

A influência de Kant a respeito dos limites é fundamental em Ricoeur. A despeito de Kant responder aos seus problemas com a teleologia, Ricoeur busca algo além – a questão do além do ser.330 Kant é o autor privilegiado por Ricoeur para a filosofia da religião e Ricoeur acompanha as reflexões de Kant no que diz respeito ao Denken (pensar) que não se esgota no Erkennen (conhecer).331 A experiência-limite, sendo o atrito entre as coisas vividas e as coisas pensadas e conhecidas, trata-se da superação da ética e do político para a mudança do mundo que é inaugurado pelo texto.

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