• Nenhum resultado encontrado

Fundamentos de meditações bíblicas

No documento Download/Open (páginas 129-132)

III.1 Hermenêutica e pensamento bíblico

III.1.1 Fundamentos de meditações bíblicas

Feita uma introdução geral da hermenêutica bíblica em Ricoeur, a polissemia do símbolo implica em diferentes descrições míticas, as quais coexistem entre si. Tratam-se de incursões no percurso da narrativa. O cativeiro da liberdade, na narrativa adâmica, a título de exemplo, é o resultado da escolha humana, i.e., não se refere à manifestação da natureza humana, tampouco a apresentação de um mal substancial ou originário. Isto porque, de mo- do semelhante, a fé cristã, segundo Ricoeur, é entendida como ato, um ato de confiança e de crédito à uma história, uma narrativa fundamental: a narrativa dos Evangelhos.565 O volun-

trabalho da interpretação (possível) é uma outra intepretação (possível). Portanto, o essencial da hermenêuti- ca não é fechar o conjunto de obras (como é importante para Northrop Frye ou Milton Schwantes), mas pos- sibilitar a interpretação de um cânone aberto.

563 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, p. 229.

564 Para outras informações sobre a noção do distanciamento na hermenêutica teológica de Ricoeur, cf.:

BÜHLER, Pierre. “Ricoeur’s Concept of Distanciation as a Challenge for Theological Hermeneutics”, In: VERHEYDEN, J.; HETTEMA, T.L.; VANDECASTEELE, P. (Org.) Paul Ricoeur: Poetics and Religion. Uitgeverij Peeters: Leuven/Paris/Walpole, MA, 2011, p. 151-165.

tário não apenas configura a relação do indivíduo com os textos de sua tradição como tam- bém denotam a postura meditativa da religião que possibilita a convivência das diferenças. Diante dos Evangelhos e a diversidade de narrativas bíblicas, Ricoeur interessa-se, sobretu- do, enquanto filósofo, pelos escritos que a tradição judaica classificou como nebiim, i.e., aqueles que foram diferenciados da Torá: Provérbios, Salmos, Eclesiastes. Para ele, esses textos, no ato religioso da crença e descrença, podem ser lidos em contraste com Homero, Hesíodo, os poetas trágicos e os pré-socráticos – ou seja, os textos fundadores da cultura helenística em contraposição à cultura hebraica. Este movimento é possível ao leitor que conhece os limites de cada abordagem literária. “É indispensável”, declarou Ricoeur em uma entrevista, “quando penetramos no universo da interpretação bíblica, distinguir bem os diferentes tipos de leitura e de abordagem, sem o que temos a impressão de um constante diálogo de surdos”566. As diferentes leituras e interpretações feitas do texto bíblico, a des- peito da preferência individual e da predominância de alguns símbolos, apontam para obje- tivos diferentes, como também partem de pressupostos que não são apenas distintos, mas opostos. Ademais, as oposições e a preferência de cada leitor por uma determinada escola bíblica não coíbem a leitura e a interpretação do texto sagrado.

A meditação bíblica parte da teoria das quatro fontes do Antigo Testamento (javista, eloísta, deuteronômica e sacerdotal).567 A hipótese considerava que estas fontes se estende- ram durante sete ou oito séculos de composição do texto das narrativas bíblicas. A partir de tal hipótese, pôde-se estabelecer uma identidade nas proclamações e querigmas judaicos – contrapondo judaísmo e helenismo. Entretanto, como aponta Ricoeur, possivelmente as es- crituras tiveram um lugar num tempo mais curto, como também sua unificação pode ter si- do, de certo modo, imposta pelas autoridades persas.568 Entretanto, a meditação bíblica não se restringe na questão das fontes. Há um problema mais específico: o texto bíblico possui o estatuto de inspiração divina. Emmanuelle Lévy destaca três possibilidades para esta ques- tão: (1) o texto bíblico é literalmente inspirado e ditado por Deus; (2) o texto bíblico não é literalmente inspirado, mas há uma relação com a Palavra de Deus; (3) o texto bíblico não é

566 RICOEUR, Paul. A Crítica e a Convicção, 2009, pp. 222-223.

567 Vale notar que a teoria das fontes recebeu contestações e avançdos, de modo que sua hipótese não é mais

exclusiva hoje. Cf. RENDTORFF, Rolf. The Canonical Hebrew Bible: A Theology of the Old Testament. Blandford: Deo Publishing, 2005.

inspirado de qualquer forma.569 Lévy acompanha a dialética entre história e verdade de Ri- coeur e afirma que os extremos devem ser evitados. No caso, em termos teológicos, o fun- damentalismo da inspiração literalmente atribuída à Deus seria uma opção indefensável, uma vez que as afirmações propostas pelo fundamentalismo são perigosas à reflexão primei- ra. A posição de Ricoeur, não diferente, declara: “não são as palavras que são inspiradas, mas a proposição de mundo feita pelo texto que é a Palavra de Deus”.570

Ainda sobre a inspiração que implica na revelação, escreve Ricoeur:

Colocar acima de tudo a “coisa” do texto é deixar de colocar o problema da inspiração das escrituras nos termos psicologizantes de uma insuflação de sentido a um autor que se projeta nos textos, ele e suas representações; se a Bíblia pode ser dita revelada, isso deve ser dito da “coisa” que ela diz; do novo ser que ela desdobra. Eu diria, então, que a Bíblia é revelada na me- dida em que o novo-ser de que se trata é, por sua vez (ele mesmo), relevan- te para o mundo, para toda a realidade, incluindo a minha existência e a minha história. Em outras palavras, a revelação, se a expressão deve ter um sentido, é um traço do mundo bíblico.571

A meditação bíblica incorpora a revelação no texto, do texto e pelo texto. É neste sentido que Ricoeur afirma: “A linguagem religiosa faz sentido pelo menos para a comuni- dade de fé, quando ela a usa para compreender a si mesma ou para ser compreendida por um público de fora”572. A linguagem religiosa, na dinâmica da mito-poética, revela conteúdos e, principalmente, um mundo aos leitores. Os pressupostos ontológicos da filosofia e da lin-

569 Cf. LÉVY, Emmanuelle. “Le statut de texte biblique à la lumière de l’herméneutique de Ricoeur.” In: Revue

de Théologie et de Philosophie. Genève-Lausanne-Neuchâtel: Atar Roto Press S.A. Vol. 138. 2006/IV, p. 361.

570 “Ce ne sont pas les mots que sont inspirés, mais la proposition de monde faite par le texte qui est Parole de

Dieu.” RICOEUR, Paul. “Herméneutique philosophique et herméneutique biblique”, In: BOVON, F. ROUILLER, G. (Eds) Exegesis. Problèmes de méthode et exercices de lecture. Neuchâtel: Paris, Delachaux & Niestlé, 1975, p. 222.

571 “Mettre au-dessus de tout le ‘chose’ du texte, c’est cesser de poser le problème de l’inspiration des écritures

dans les termes psychologisants d’une insufflation de sens à un auteur qui se projette dans le texte, lui et ses représentations; si la Bible peut être dite révélée, cela doit Être dit de la ‘chose’ qu’elle dit; de l’être nouveau qu’elle déploie. J’oserais dire alors que la Bible est révélée, dans la mesure où l’être-nouveau dont il s’agit est lui-même rélevant à l’égard du monde, de la réalité toute entière, y compris mon existence et mon histoi- re. Autrement dit, la révélation, si l’expression doit avoir un sens, est un trait de monde biblique”. RIC- OEUR, Paul. “Herméneutique philosophique et herméneutique biblique”, In: BOVON, F. ROUILLER, G. (Eds) Exegesis. Problèmes de méthode et exercices de lecture. Neuchâtel: Paris, Delachaux & Niestlé, 1975, p. 222-223.

572 “Le langage religieux est sensé, a un sens, au moins pour la communauté de foi, lorsque celle-ci en use pour

se comprendre elle-même ou pour se faire comprendre par une audience étrangère”. RICOEUR, Paul. “La philosophie et la spécifité du langage religieux”, In: BÜHLER, Pierre. FREY, Daniel. (Org.) Paul Ricoeur: un philosophe lit la Bible. A l’entrecroisement des herméneutiques philosophique et biblique, 2011, p. 236.

guagem religiosa implicam na revelação do discurso religioso originário. A revelação é uma forma de discurso que implica em outras aporias do ser, tal como o testemunho.573

No documento Download/Open (páginas 129-132)