• Nenhum resultado encontrado

Aplicação direta da lei estrangeira

APLICAÇÃO DO DIREITO ESTRANGEIRO

7.2 Aplicação direta da lei estrangeira

Está pacificada na doutrina a questão de ser a lei estrangeira recepcionada como tal e não como fato. Isto traz consequências benéficas para os interessados (ficam livres do ônus da prova) e torna o direito estrangeiro equiparado ao nacional, sem a antipatia de considerá-lo inferior.

Poderá a lei estrangeira ser aplicada, ex officio, entendimento também admitido pelo Código Bustamante (art. 408).

São exemplos de casos em que se aplica a legislação de outro Estado: capacidade de pessoa física domiciliada em outro país, contrato firmado no estrangeiro ou sobre bem lá situado, e demanda sobre moeda do país considerado.1

A norma estrangeira poderá ser invocada, como direito que é, em qualquer instância, mesmo em

recurso extraordinário ou em ação rescisória.

Como não seria razoável esperar que os magistrados tenham ciência prévia das leis estrangeiras, o artigo 14 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro preceitua que “não conhecendo a lei estrangeira, poderá o juiz exigir de quem a invoca prova do texto e da vigência”. O Código de Processo Civil, artigo 337, dispõe que “a parte que alegar direito municipal, estadual, estrangeiro ou consuetudinário provar-lhe-á o teor e a vigência, se assim o determinar o juiz” (grifo acrescido).

O conhecimento da lei estrangeira pelo magistrado poderá ocorrer de várias formas: pessoal, judicial, extrajudicial, documental, pericial e até testemunhal (salvo o simples juramento). Ainda pode ser conhecida pela apresentação de cópia autêntica de publicação oficial, pela citação de obra jurídica

conceituada, por parecer ou depoimento de juristas especializados, de advogados militantes e de consulta a associações dedicadas à matéria, inclusive por meio de carta rogatória.2

Normalmente se faz prova com códigos, certidões, revistas, livros ou jornais. Toda e qualquer lei estrangeira poderá ser invocada – Constituição, leis ordinárias, decretos, regulamentos e costumes. O Código Bustamante, no artigo 409, admite a justificação do direito estrangeiro por certidão de dois

advogados em exercício no país de cuja legislação se trate.

Na total impossibilidade de inteirar-se do teor da lei estrangeira, busca-se outra regra de DIPr do foro, subsidiária, da conexão mais próxima, ou aplicação da própria lei do foro.3 Nesse contexto, Jacob Dolinger refere casos interessantes, relatados por autores franceses, nos quais foi impossível o conhecimento da lei estrangeira, e o tribunal parisiense aplicou a lei francesa: acidente automobilístico em Andorra; litígio entre americano e polonês na Mandchúria, território sob ocupação soviética; e tunisino contratado por empresa francesa para trabalhar na Líbia, lá morrendo em acidente de serviço.4 Trata-se de processos em que, ante a dúvida, deu-se preferência à lei interna, caso do in dubio pro lege

fori.5

Esse princípio não deixa de ser paradoxal, pois seria, de certa forma, uma exceção, facultada ao magistrado, ao que estipula o art. 3.º da LINDB: Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não

a conhece.

Quanto à interpretação da lei estrangeira, não difere das formas usadas no ordenamento jurídico brasileiro, como a sociológica, a sistemática, a lógica, a analógica, a declarativa, a restritiva e a extensiva.

Lembra Dolinger a adaptação ou aproximação, interpretação do direito estrangeiro adequado às circunstâncias locais (como desquites de nipo-brasileiros no anterior direito brasileiro, já que o Japão admitia o divórcio).6 Refere-se, ainda, a chamada interpretação construtiva ou aproximação

excepcional: pedidos de divórcio extrajudicial deferidos em nome do Rei da Dinamarca e dos prefeitos do Japão, em cujos países essas autoridades do executivo têm competência para concedê-lo. Salienta-se que o processo segue a lex fori, ou seja, as regras processuais do juízo, sendo que a lei estrangeira observada é apenas a lei material, substancial. Conforme o artigo 13 da LINDB, os meios de prova são os da legislação estrangeira quanto ao ônus e aos meios de produzi-los, desde que não sejam desconhecidos pela lei brasileira.

7.3 Retorno

Retorno é a operação pela qual o juiz do foro volta ao seu próprio direito ou vai a um terceiro

direito, seguindo a indicação feita pelo Direito Internacional Privado da jurisdição cuja legislação consultara de acordo com a norma de DIPr de seu país,7 segundo Osíris Rocha.

De início, cumpre esclarecer que a expressão direito estrangeiro pode significar apenas as normas

substantivas ou materiais, ou incluir as regras de Direito Internacional Privado estrangeiro. Quando

adotado esse último significado, surge a possibilidade do retorno, chamado de primeiro grau, e o reenvio, de segundo grau. A regra de DIPr desse segundo país, por seu turno, poderia direcioná-lo para um terceiro ordenamento jurídico, no qual nova indicação o conduziria a um quarto e assim sucessivamente, com prejuízos para a solução da lide e para a segurança jurídica.

Caso ocorrido na Justiça francesa ilustra essa teia indesejável: para determinar a capacidade de um inglês domiciliado nos Estados Unidos, que celebrara contrato na Bélgica, o juiz francês deveria aplicar a lei inglesa (nacionalidade da pessoa), mas essa o remeteu ao direito norte-americano (seu domicílio),

que, por sua vez, encaminhou-o ao direito belga (lugar da celebração do ato), o qual, por fim, reenviou-o ao direito inglês (lei nacional, por indicação do Código Civil belga).8

Segundo Beat Rechsteiner, em muitos países, caso da Inglaterra e dos Estados Unidos, o direito estrangeiro abrange apenas o direito substantivo ou material; para outros, como Alemanha e Áustria, o direito estrangeiro abrange normas materiais e normas de Direito Internacional Privado estrangeiro; e alguns terceiros, como a Suíça, cuja lei aceita o reenvio em matéria de estado civil, adotam posição intermediária ou mista.9

Os termos retorno, devolução, reenvio e remissão, entre outros, têm sido usados como sinônimos pelos autores, com prevalência de retorno e reenvio. Na doutrina francesa é renvoi, e para os ingleses,

remission. Entendemos mais racional o emprego de retorno para o chamado retorno de primeiro grau

(devolução da lide à ordem jurídica da qual proveio) e reenvio para os demais (segundo ou terceiro graus).

O direito positivo brasileiro, que era silente sobre o retorno, em 1942, com o advento da Lei de Introdução ao Código Civil, excluiu-o explicitamente, pois o artigo 16 prescreve que “quando, nos termos dos artigos precedentes, se houver de aplicar a lei estrangeira, ter-se-á em vista a disposição desta, sem considerar-se qualquer remissão por ela feita a outra lei” (grifo acrescido).

É interessante registrar que Clóvis Beviláqua, Eduardo Espínola, Lafayette Pereira e, mais enfaticamente, Haroldo Valladão, são favoráveis ao retorno. Já Oscar Tenório e o Grupo Mineiro (Amílcar de Castro, Osíris Rocha e Agenor Pereira de Andrade) sempre se colocaram contra, sob alegações teóricas e práticas, estando seus posicionamentos de acordo com a vigente legislação brasileira sobre o retorno. Nosso entendimento é pela recusa ao retorno.

7.3.1 Caso Forgo

Tornou-se clássico, na doutrina de Direito Internacional Privado, e foi um marco na jurisprudência sobre o retorno, o chamado caso Forgo, ocorrido na França do final do século XIX.

Um cidadão nascido na Baviera, François-Xavier Forgo, filho natural, migrou com a mãe, aos cinco anos de idade, para a França, onde fez fortuna, especialmente em bens móveis, vindo a falecer aos 68 anos de idade, na cidade de Pau, sem descendentes e sem testamento. Um casal, parentes colaterais de sua mãe, reivindicou a sucessão, alegando a lei bávara, pela qual eles seriam os herdeiros. Pela lei francesa, apenas irmãos herdavam em caso de filiação natural, com o que o patrimônio de Forgo passaria ao Tesouro francês, como herança vacante.

Como Forgo nunca oficializara o seu domicílio na França, pela norma de Direito Internacional Privado francês, sua sucessão seria baseada no direito da Baviera, uma vez que nesse Estado alemão era seu domicílio (elemento de conexão). Ocorre que o DIPr bávaro não distinguia domicílio de fato de domicílio de direito. Para a lei da Baviera, em matéria de estatuto pessoal dever-se-ia aplicar a lei do domicílio ou da residência habitual, e em matéria de estatuto real, a lei da situação dos bens, móveis ou imóveis.

Aceitando essa norma do Direito Internacional Privado bávaro, Forgo tinha domicílio na França, e pela legislação francesa deveria ser processada a sucessão. A justiça francesa voltou-se, então, para a lei do foro, e por suas instâncias superiores confirmou finalmente a decisão, em 1878, sendo a herança atribuída ao Tesouro francês.